As portas duplas do hospital se abriam e se fechavam ininterruptamente. Em um curto — ou para outros, longo — período de trinta minutos, algumas pessoas saíam por aquelas portas sorrindo e distribuindo apertos de mão e agradecimentos aos médicos e enfermeiros, enquanto outras choravam inconsolavelmente. Alguns médicos passavam por aquelas portas conversando entre si calmamente sobre as amenidades do dia a dia, enquanto outros corriam desesperadamente como se suas vidas — ou no caso, a vida de seus pacientes — dependessem disso. E dependiam mesmo.
Alec estava lá. Ou pelo menos ele estava lá fisicamente.
Os funcionários do hospital apenas diziam “Aguarde um pouco, senhor” ou “Espere, por favor.” Mas... Esperar pelo quê? Ao esperar pelo ônibus, você não quer que ele se atrase muito, pois você precisa chegar a tempo para a aula ou para o trabalho. Ao ligar para uma pizzaria, você espera ouvir a buzina do motoboy o mais rápido possível, pois você está com fome. Você pode esperar por essas coisas, pois sabe que uma hora ou outra elas irão acontecer. E mesmo que não aconteçam, o estrago não vai ser tão grande e sempre haverá outra alternativa.
Porém, é algo completamente diferente ter que “esperar” quando não se sabe o que vem pela frente. Você não sabe o que esperar quando seu filho de sete anos de idade passa por aquelas portas, desacordado e deitado em uma maca, sendo empurrado através de um longo corredor. Nessa situação, Alec não sabia como agir. Não sabia o que pensar, não sabia o que sentir e, principalmente, não sabia o que esperar. A única coisa capaz de fazer era inspirar e tentar mandar a maior quantia de ar possível para dentro dos pulmões, mas por mais que tentasse, nunca parecia o suficiente. Ironicamente, o ar que respirava parecia sufocante.
— O senhor está bem? O senhor está pálido... A Doutora Lightwood me pediu pra te administrar isso... — Um enfermeiro baixinho e rechonchudo diz, oferecendo a ele água em um copo plástico e um comprimido pequeno e redondo. Alec olha para o rapaz quase sem acreditar e se afasta daquela combinação entorpecente com uma certa repulsa. Izzy não iria sedá-lo, se era o que pretendia.
— Eu não quero isso. Eu não preciso disso. Você sabe do que eu preciso? Eu preciso de respostas! Eu preciso saber como o meu filho está! — Alec clama por informações de forma quase arrogante e agressiva. Ele sabia que o enfermeiro só estava ali para trabalhar e cumprir com suas obrigações, mas o advogado estava desesperado demais para se preocupar com qualquer outra coisa que não fosse a saúde de seu filho. — E, por favor, não diga a palavra esperar! Eu não aguento mais ouvir isso!
O enfermeiro apenas respira fundo e lhe lança um olhar cheio de pesar. Em sua profissão, ter que lidar com pessoas em um estado de puro desespero era algo cotidiano e a forma como aquele pai estava agindo era compreensível.
— Apenas es... — O rapaz balança a cabeça para os lados e respira fundo mais uma vez. Não havia muito o que dizer. — Ele está em boas mãos...
Após isso, o enfermeiro apenas se retira e some pelos corredores do hospital. Alec até mesmo havia pensado em passar por aquelas malditas, ver tudo com os próprios olhos e finalmente obter as respostas que tanto necessitava. Mas havia algo que o puxava para trás, impedindo-o de fazer isso. Ele estava com medo. Uma parte dele queria as respostas, mas outra parte temia tudo o que poderia encontrar atrás daquelas portas.
Ele resolve se sentar, com medo de que suas pernas tão trêmulas e capengas pudessem ceder de vez. Confundindo o próprio corpo, Alec se levanta abruptamente assim que vê Simon espiando através das portas. O médico pediatra cerra as portas, como se estivesse postergando a situação, mas reaparece após alguns segundos com Izzy ao seu lado. Alec encara o par de rostos, tentando decifrá-los. Porém, o moreno nem precisou se esforçar muito: Os sentimentos dos dois eram óbvios e palpáveis. Eles estavam com medo.
— Alec... — A morena inicia a frase, mas não sabe como finalizá-la. As palavras que havia ensaiado tanto pareciam dançar ao redor de sua cabeça, debochando dela. Era tão difícil dizer.
— Isabelle. — O advogado diz roucamente. Aquele momento de espera e incertezas era tão doloroso. O que o afligia mais ainda era saber que a verdade que estava prestes a ouvir dos lábios da irmã poderia causar ainda mais dor. Os médicos se encaram, apenas para confirmar o que já haviam combinado. Era Izzy quem iria dizer.
— Alec... — A irmã mais nova respira fundo e então abre um sorriso que visava transmitir conforto, mas seus olhos contavam uma história completamente diferente. — Os gêmeos estão bem. Eles estão acordados, estão conversando... A Anne até comeu gelatina e o Max está assistindo um desenho na TV. E a Laurinha está perfeitamente bem. Realmente só veio aqui pra deixar todas as enfermeiras babando por ela! Os três estão bem. Os três estão ótimos... Já podem ir pra casa.
— Eles estão bem...Eu já sei que eles estão bem, Izzy. Graças à Deus, eles estão bem. Eu sei que eles não são o problema. Eu estou falando sobre o Raphael... Eu preciso saber como ele está...
Não foi apenas o rosto banhado pelas lágrimas ou a voz embargada do irmão que fizeram com que Izzy tivesse vontade de se esconder atrás do balcão da recepção para chorar. Foi também o medo estampado em seus olhos, misturado à incerteza, à culpa, ao medo, assim como à esperança e ao amor que possuía pelo filho. Ele parecia tão delicado. Tão frágil. Como se o mais simples toque pudesse quebrá-lo em pedacinhos miúdos. A morena o olha com firmeza. Internamente, ela sofria como irmã e tia, mas externamente, deveria agir como a médica que era.
— Raphael Lightwood... Ok. — Ela diz, tentando manter a voz firme, enquanto analisa a ficha médica. Talvez se ela fingisse que o pequeno paciente em questão não fosse seu sobrinho, tudo poderia ser menos doloroso. — Ele ingeriu vinte miligramas de Diazepam... O que é quase o dobro da quantia que um adulto costuma ingerir. Nós já realizamos uma lavagem estomacal e iniciamos o tratamento com carvão ativado. Nós... Nós estamos tentando...
O rosto de Alec se contrai, como se tivesse recebido um soco. Um não, talvez dois. Em cada lado de sua face. Izzy apenas permanece ali olhando para o irmão, engolindo em seco e piscando vez ou outra, a fim de espantar as lágrimas teimosas e insistentes. Simon apenas encara o chão, se sentindo cada vez mais pequeno e impotente.
— Vocês... Vocês estão tentando... — A voz de Alec não era mais do que um sussurro, mas foi ganhando força e entonação gradativamente. — Vocês estão tentando? Mas eu não entendo... Você ainda não respondeu à minha pergunta. Como o Rapha está?
O advogado pronuncia a última frase pausadamente. Simon e Izzy trocam um rápido olhar, como se estivesse se comunicando telepaticamente, o que só faz com que Alec fique ainda mais nervoso. A situação era extremamente delicada e ter que dizer aqueles fatos dolorosos em voz alta e bem na cara de Alec só piorava tudo. A morena se culpa mentalmente por se sentir tão fraca. Que tipo de médica era ela?
— É um cenário muito delicado, Alec. Eu não posso dizer que ele está muito mal, porque ele não está! Mas também não posso dizer que ele está bem! Eu só posso dizer que nós estamos tentando... Ele está tentando. Ele é um menino forte, saudável, não tem nenhuma outra complicação ou problema da saúde... Nós estamos fazendo de tudo pra que ele melhore.
As últimas palavras de Izzy soaram abafadas aos ouvidos de Alec. Tudo ao seu redor parecia borrado, opaco e embaçado, assim como o vidro de um carro fica quando chove, impossibilitando-o de ver o que viria pela frente. Raphael não estava bem. Raphael não estava mal. Era algo no meio disso. A ideia de que a balança poderia pender para qualquer um dos lados o aterrorizava. Ele poderia sair daquele hospital sorrindo e beijando seu filho mais velho, da mesma forma que poderia perdê-lo para sempre. Esse pensamento ameaçava sua sanidade mental. O moreno respira fundo, ou pelo menos tenta.
— Eu já liguei pra mamãe e pro papai. Eles estão vindo... Eles vão ficar com Laura e com os gêmeos... — A morena diz suavemente, apertando o braço de Alec com delicadeza e em busca de demonstrar apoio, mas evita encarar os olhos do irmão.
— Eles estão vindo, eles... Porque eles estão vindo? Tem alguma outra razão pra eles estarem vindo?! — Alec pergunta, suspeitando de tudo. “A mamãe e o papai estão vindo”. A frase dita pela irmã havia lhe proporcionado as piores lembranças. Ela já havia dito essa mesma frase, alguns meses antes. Quando Will morreu.
— Eles estão vindo pra ajudar a gente, apenas isso...
— E nós vamos precisar de ajuda? E-Eu vou precisar de ajuda? — Alec vocifera, enquanto uma nova leva de lágrimas começa a fluir pelo seu rosto. Izzy solta um arquejo quando compreende o que o irmão estava querendo dizer.
— Alec... Não foi isso o que eu quis dizer, eu...
A conversa é interrompida quando alguém entra no hospital de forma repentina. O rapaz jovem, loiro e encharcado pela chuva caminha em direção aos três. Jace estava ofegante e tremia incontrolavelmente, tanto pelo frio quanto pela adrenalina.
— Eu peguei ele. Eu peguei aquele desgraçado! Ele tentou fugir, mas eu encontrei ele! Ele vai ter o que merece! Isso não vai ficar assim! — Jace esbraveja, sem se importar com os olhares que estava recebendo. — Eu vou acabar com a raça dele, Alec! Você só precisa dizer que sim e eu acabo com ele!
— Jace, agora não é a hora pra isso! — Isabelle o repreende, sabendo que aquilo não ajudaria em nada no momento. Muito pelo contrário.
Alec encara Izzy, Simon, Jace. E faz isso diversas e repetidas vezes. E então encara as portas. Malditas portas. E então encara a chuva, o chão molhado pela chegada de Jace, as luzes ofuscantes do hospital. Tudo parecia girar em sua frente, deixando zonzo, enjoado. Ele sentia que precisava de ar. Ar puro e refrescante, que encheria seus pulmões e o acalmaria. O reconfortaria. O reconstituiria. Ele atravessa as portas da entrada do hospital até sentir os primeiros pingos de chuva entrarem em contato com sua pele.
Alec pega o celular em seu bolso, encara a tela e disca o número já tão conhecido. Ele precisava de um suporte. Alguém para acalmá-lo, reconfortá-lo e reconstituí-lo. Alguém que, assim como ele, pudesse sentir e entender plenamente a dor e o medo daquela situação. Só havia uma pessoa. A voz suave, mas já um pouco preocupada, serve para acalentá-lo, ao mesmo tempo em que faz com ele chore ainda mais.
— Eu preciso de você...
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— O que você fez?! — Alec esbraveja desesperadamente. Andrew arregala os olhos, aparentando estar tão confuso e assustado quanto ele. O que havia dado errado?
— A-Alec, eu não sei...
— Hoje de manhã ele estava bem e agora ele não acorda. O que aconteceu?! — O moreno questiona novamente, sentindo as primeiras lágrimas rolarem pelo seu rosto. Andrew se aproxima e também sacode os ombros do menino, apenas para comprovar sua imobilidade. Ele havia se certificado de não exagerar na quantidade de medicamentos que havia colocado no copo de Raphael. Porém, parando para analisar melhor a situação, ele pensa que talvez tenha exagerado um pouco sim. De fato, Raphael era o mais agitado dos quatro filhos de Alec. O loiro imaginou que ele precisaria de uma dose um pouco maior do que a dos gêmeos. Apesar de não ter a intenção, sua atitude extremamente inconsequente teve resultados catastróficos.
— Alec... Eu juro que não foi a minha intenção... Eu... Eu só queria passar um tempinho à sós com você, sem nenhuma criança atrapalhando... — Andrew despeja, mas ainda sem confessar o que havia feito de fato. O moreno se aproxima e segura seus ombros com uma força desmedida, ocasionando um gemido de dor vindo do outro.
— Andrew... Só me responde! O que você fez?!
Em duas frases breves Andrew resume o ato inconsequente. Alec leva suas duas mãos trêmulas à cabeça, se sentindo ainda mais zonzo, enjoado e atordoado. Prontamente, o moreno agarra o celular que estava em seu bolso, quase deixando-o cair devido ao suor de puro nervosismo que escorria de suas mãos.
— O Rapha... O Max... A Anne... Você drogou os meus filhos?! — O homem berra, fazendo o outro se encolher e dar passos para trás.
— Eu já disse que eu só queria ter um tempinho à sós com você, Alec... Só isso... — O loiro explica, usando o mesmo tom que uma criança usaria para justificar a bagunça que fez para o pai. Como se houvessem desculpas plausíveis para justificar tal atitude.
Alec chama a ambulância rapidamente e corre para checar os gêmeos enquanto aguarda, naquela espera arrastada e excruciante, que parecia quase interminável. Diferentemente de Raphael, os gêmeos murmuram e se mexem durante o sono, e se não estivesse tão desesperado pelo filho mais velho, Alec poderia se sentir mais aliviado. Quando retorna para o quarto, Andrew ainda está ali, observando Raphael com um olhar distinto nos olhos, mas Alec não diria que aquilo que se tratava de tristeza ou arrependimento. Ele apenas parecia chateado por seu plano não ter saído como planejado. Apenas por isso.
— Acho que você deveria ficar mais preocupado com ele. — Andrew afirma, apontando para o menino inconsciente. — Eu coloquei mais pra ele...
Alec poderia ter gritado. Ou poderia ter socado Andrew. Ou até mesmo, socado a si próprio. Mas tudo o que faz é se ajoelhar ao lado do filho, permitindo que suas pernas tão bambas finalmente cedessem. E, com mãos trêmulas, tenta se agarrar com firmeza aos últimos fios de esperança que consegue encontrar.
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Magnus corre para dentro do hospital, sentindo o pânico que crescia em seu peito se espalhar por cada parte de seu corpo. Seus tênis ensopados pela água da chuva praticamente deslizavam pelo chão, enquanto ele varria o ambiente com o olhar à procura de rostos familiares. Alec não havia dado muitas informações ao telefone, mas o pouco que comunicou já havia sido o suficiente para deixar o asiático completamente aturdido.
E então ele vê: Os cabelos negros e sempre sedosos de Maryse balançado sobre seus ombros. Ele se sente imediatamente aliviado, mas esse sentimento se dissipa rapidamente assim que a mulher se vira. Medo e apreensão estão claramente expostos em seu rosto. Ao seu lado está Robert, que afaga as costas da esposa de forma reconfortante. Jace está ao lado deles, sentado em um banco. Sua expressão se mantém firme, mas a forma como suas pernas balançam descontroladamente entrega seu puro estado de nervosismo. E, ao seu lado, está Alec. O moreno não parecia exatamente triste ou preocupado. Ele parecia mais confuso. O grande ponto de interrogação que estampava seu rosto refletia muito bem o caos que predominava em sua mente.
— Querido... — Maryse diz suavemente. Sua voz comumente doce agora era acompanhada por um fundo de dor. Robert, Maryse e Jace lançam ao asiático olhares melancólicos e cheios de pesar. E Magnus simplesmente odeia aquilo.
Por fim, os olhos esverdeados e desorientados captam a figura de Magnus. Como se houvesse recebido um sopro de ar puro para dentro dos pulmões após longos e sufocantes minutos de asfixia, Alec se levanta do banco e caminha ao seu encontro. Ele queria tocá-lo, abraçá-lo, beijá-lo, desejando que todo o amor, conforto e afeto que Magnus lhe transmitia pudesse sumir com as incertezas inquietantes que ele sentia no momento. Mas ele apenas se mantém parado em sua frente. Poucos centímetros os distanciavam.
— O que aconteceu? — Magnus pergunta, deixando todo o medo que sentia transparecer claramente em sua voz. Alec observa os traços suaves e delicados do rosto do asiático, sentindo o impulso de delineá-lo com a ponta dos dedos, mas o sentimento de não se sentir nenhum pouco merecedor de desfrutar daquilo o impede. Ele temia contar a verdade para Magnus, não apenas pela gravidade da situação, mas também porque sabia que aquilo tudo, de uma forma ou de outra, era culpa sua.
— É o Rapha... Ele... Ele está muito mal... E é tudo minha culpa... — O homem mais velho confessa, com a voz tão quebrada quanto seu coração. Magnus arregala os olhos e instintivamente segura os braços do outro com firmeza, como se quisesse trazer suporte ao outro não apenas emocionalmente, mas também fisicamente. Alec observa a cor do rosto do asiático se desvanecer conforme ele explica a situação: Andrew. Remédios. Raphael. Inconsciente. Mal.
Magnus arfa profundamente, à medida que as lágrimas inundam seus olhos. Ele se lembra de quando Anne caiu da escada. Se lembra do medo, do desespero e da culpa que sentiu cair em cima de seus ombros, praticamente o esmagando. Então percebe que Alec estava na mesma situação naquele momento. Sentindo as mesmas coisas. O mais velho passa as mãos pelos cabelos nervosamente, puxando-os com força, como se pudesse espantar os pensamentos que assombravam sua mente com aquele gesto. Magnus segura suas mãos e as puxa para baixo com cuidado. Temia que o moreno pudesse arrancar os próprios fios de cabelo a qualquer momento.
— Raphael... Meu menino... Magnus, o que eu fiz?! — Alec deplora, sentindo o medo e o desespero tomarem conta de si ao imaginar os piores desfechos para aquela situação. Ele nunca se perdoaria. A culpa o corroeria. “A culpa que é toda minha”, ele remoía. — Se alguma coisa acontecer com ele... Vai ser tudo minha culpa.
Magnus sente sua dor. Segura as mãos do moreno e as aperta com força, de uma forma que poderia até mesmo ser dolorosa. A intenção não era machucá-lo. O asiático apenas queria mantê-lo firme. Presente. Também queria mostrar a ele que estava ali, ao seu lado, e não pretendia abandoná-lo. Magnus respira com mais facilidade quando o aperto é retribuído. Então os dois estavam ali: Compartilhando aflição, medo, desespero, mas também apoio, suporte e consolo.
— Para com isso... Ele vai ficar bem. Ele é o nosso menino. Ele é forte, saudável, corajoso... Ele vai ficar bem! — O indonésio diz com firmeza, como se tentasse convencer a si mesmo daquilo. Apesar da convicção que emprega em suas palavras, o desespero pode ser nitidamente sentido em sua voz. O moreno assente conforme as lágrimas brotam de seus olhos e deslizam pelo seu rosto. Magnus reprime cada indício de lágrimas que ameaçassem surgir. Ele não se permitiria chorar. Ele seria forte por Alec.
Maryse, Robert e Jace apenas permanecem ao redor dos dois, observando-os com pesar. Sentiam a mesma dor, mas sabiam que ocupavam apenas o papel de coadjuvantes naquela situação. O verdadeiro sofrimento se concentrava em torno do advogado e do babá. Em um determinado momento, Izzy se aproxima silenciosamente. Quando é interrogada sobre a situação de Rapha, a morena apenas balança a cabeça para os lados, indicando que não havia ocorrido nenhuma melhora. A apreensão continuava ali, cada vez mais densa.
Magnus levanta a cabeça lentamente e encara Alec. E então pergunta, quase sussurrando:
— Podemos ver ele?
Ele pode ver claramente quando os músculos do rosto de Alec se tensionam. Queria ver o filho, sem sombra de dúvidas, mas não sabia se conseguiria juntar coragem o suficiente para isso. Não nessa situação. Mas então sente o aperto de Magnus ao redor de sua mão novamente, puxando-o de seus medos e incertezas e o trazendo de volta ao chão. Percebe que, desde que Magnus estivesse ao lado, tudo seria mais fácil e possível.
Eles acompanham Izzy pelos corredores gélidos do hospital. Quando finalmente passa pelas portas duplas, Alec sente seu coração saltar cada vez mais rápido e agressivo dentro do peito. Após uma longa e enervante caminhada, Izzy para em frente à uma porta. A médica abre apenas uma brecha, lentamente, e o rosto de Simon pode ser visto em seguida. Assim que vê Magnus e Alec, o médico pediatra engole em seco.
A morena olha para o colega de trabalho e muito mais que amigo com olhos suplicantes. Sussurra algo a ele e os dois parecem discutir algo por telepatia mais uma vez. O médico assente negativamente e comprime os lábios.
— Só os dois, Simon, por favor... — Isabelle suplica, com uma fragilidade que não costumava aparentar com frequência. — Só os dois...
O moreno encara o chão, ponderando a situação. Sabia que além de ter que lidar com questões que englobavam a saúde de seus pacientes, também havia os sentimentos das pessoas que os amavam em jogo. A mistura de medo, amor, apreensão, esperança. Sabia que, na sua profissão, a racionalidade deveria ser priorizada na hora de tomar decisões. Mas isso não significava que os sentimentos reais como empatia e intuição devessem ser ignorados.
E então, com um leve manejo de cabeça, Simon concorda.
Raphael estava dormindo profundamente, apenas isso. Era o que Magnus se forçava a pensar. Ignorando o bip constante do monitor de batimentos cardíacos e o respirador pulmonar vinculado ao nariz do menino, o asiático se aproxima. Tentando se acostumar com a experiência intragável de ver o próprio filho deitado naquela cama de hospital e cercado por diversos aparelhos, Alec também se aproxima com relutância.
Os dois respiram fundo, tentando manter o mínimo de sanidade mental que podiam. Nesse momento, Simon e Izzy também viram meros coadjuvantes. Aquilo não era sobre eles. Era sobre Rapha, Alec, Magnus e o amor que eles compartilhavam.
O asiático toca a mão do menino cuidadosamente. O medo, a aflição e todas as incertezas diminuem e se tornam apenas um pano de fundo, dando lugar para algo ainda maior e mais forte surgir no coração do rapaz. Todos os sentimentos negativos são substituídos por amor e esperança. O mais puro amor e a mais forte esperança. Aquele era Rapha. Seu menino. Ele não queria e nem podia perdê-lo. E naquele momento, promete a si mesmo que não iria.
— Meu menino...
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Quando escuta o barulho de passos subindo os degraus da escada, o menino se esconde rapidamente dentro do armário no quarto dos meninos. O medo de ser levado contra à sua vontade por pessoas desconhecidas fazia-o tremer dos pés à cabeça. Mesmo sendo tão novinho, o menino já sabia o quanto as pessoas poderiam ser ruins.
Até aquele momento, a senhora Penhallow havia sido muito boa para ele. A mulher havia o recebido com refeições saborosas, uma cama quentinha e até mesmo havia lhe oferecido alguns brinquedos. Jia Penhallow era realmente muito boazinha e seu perfume fazia com que o garoto se lembrasse de sua mamãe. Ela era muito legal mesmo. Menos quando aparecia acompanhada por pessoas estranhas que queriam “conhecê-lo”. Raphael não gostava disso. Nenhum pouco.
O coração do menino se acelera cada vez mais, à medida que os passos se tornam mais próximos. Pela brecha da porta do armário, o menino podia ver uma figura feminina se aproximando. Raphael se encolhe ainda mais dentro do armário, agarrando seu ursinho e acreditando que, dessa forma, poderia passar despercebido. “Ela nunca vai me encontrar aqui”, ele pensava.
— Rapahel? Querido? Cadê você? — A mulher o chama. Jia olha debaixo das camas, atrás da porta e até mesmo dentro do baú de brinquedos. Raphael era bem pequeno magrinho e a cuidadora não iria subestimar sua capacidade de se esconder em lugares minúsculos. Quando conclui que era o armário de roupas que estava servindo de esconderijo para o menino, Jia respira fundo e se aproxima com cautela. Não queria assustá-lo e também não queria fazer nada contra a sua vontade. Mas também sabia que morar em uma casa confortável ao lado de uma família que lhe desse amor e carinho era bem melhor do que ficar em um abrigo razoavelmente estável, mas ainda assim muito precário em alguns quesitos.
Ela se aproxima do armário e espia dentro dele pela brecha. Raphael realmente estava lá, e tremia como um filhotinho assustado. Pobrezinho. Com um sorriso leve e triste no rosto, ela abre a porta do armário vagarosamente. O menino está de costas para ela e agarrado ao seu ursinho como se sua vida dependesse disso. O passado provavelmente sofrido do menino explicava essa reação.
— O que você está fazendo aí, Raphael? Deve estar muito quente aí dentro... — A mulher opina, segurando a porta do armário com uma das mãos enquanto a outra está apoiada em sua cintura. O menino continua ali, imóvel, como se não tivesse ouvido nada. A cuidadora olha para a porta, observando o casal que aguardava com entusiasmo, mas ao mesmo tempo com paciência.
— Tem duas pessoas muito legais aqui que querem te conhecer, querido. Eles são muito bonzinhos, meu amor. Eu já conversei bastante com eles. Os dois sonhar em ter um menino muito bonito, educado e simpático como filho. Bom... Na hora eu já me lembrei de você... — Jia tenta mais uma vez, mas Raphael não demonstra nenhuma reação, apenas se encolhe mais ainda, como se quisesse virar uma bolinha, e abraça o ursinho fortemente.
A mulher suspira com frustração e olha para a porta, dando de ombros. O enorme sorriso que estampava o rosto do casal se enfraquece um pouco, mas não desaparece por completo. Construir uma família era o sonho de Alec e Will. E mesmo com as dificuldades, o casal não pensava em desistir. Sabia que teriam que ter paciência e não poupariam amor, carinho, respeito e compreensão para adotar o tão sonhado filho, que tanto queriam.
— Nós podemos voltar outra hora, senhora Penhallow. Não se preocupe. Nós entendemos muito bem a situação. — Alec afirma, lançando um olhar ao marido.
— Com toda certeza. Nós temos muita paciência e não queremos forçar nada... — Will comprova, entrelaçando seus dedos com os do moreno. Eles não podiam negar que se sentiram um pouco tristes, sim, o que era muito compreensível. Eles estavam muito animados e mal podiam esperar para finalmente verem o rostinho do menino e talvez até mesmo poderiam conversar um pouco com ele. Mas então, quando o menino se escondeu no armário e não quis mais sair, o casal percebeu o quanto aquilo seria difícil. Mas também decidiram que não iriam parar de tentar.
— Ele é um garoto muito doce e muito inteligente também. Infelizmente, nós sabemos muito pouco sobre ele. Só sabemos que o nome dele é Raphael e que tem quatro anos de idade. Ele deve ter passado por momentos muito difíceis antes de vir pra cá, porque ele está sempre muito assustado e quase não fala nada. Ele chegou aqui muito magrinho, ainda mais do que agora. Ele perdeu a mãe e... provavelmente o pai também. Nós procuramos muito, mas não encontramos nenhum sinal de tios, avós, primos... Parece que ele não tem ninguém. Ele está sozinho...
O casal troca um olhar cheio de tristeza e compaixão. A parte mais difícil de se adotar uma criança é que ela sempre possuiria um passado e, na maioria dos casos, um passado bem difícil e cheio de sofrimento. É por esse motivo que muitos casais priorizam adotar bebês recém-nascidos ou, pelo menos, com a menor idade possível. Mas a idade não era um problema para Alec e Will. Eles estavam dispostos a adotar qualquer criança, contanto que sentissem uma conexão com ela. Ambos odiavam a ideia de adotar uma criança como quem adota um filhote de cachorro, levando em consideração a idade, o sexo ou aparência física. Aquilo era sobre seres-humanos. Crianças. Os dois sabiam que, quando finalmente olhassem para seu futuro filho, eles iriam sentir.
Naquele dia eles não conseguiram nenhum avanço, mas então voltaram depois. E depois. E depois do depois. Raphael permanecia extremamente fechado e inacessível. Sempre se escondendo dos dois e de qualquer pessoa que aparecesse no abrigo com a intenção de conhecê-lo. Durante essa luta pela atenção do menino de cabelos cacheados, o casal conheceu várias crianças diferentes. Eram todas adoráveis, brincalhonas, algumas meio tímidas e receosas, mas sempre brincando e interagindo muito com os dois. Porém, por alguma coincidência ou coisa do destino, não conseguiram adotar nenhuma delas.
Em um sábado de manhã, os dois chegam ao abrigo cabisbaixos e quase sem esperanças, mas tudo melhora quando encontram Raphael brincando na caixa de areia do parquinho. O menino estava muito concentrado em construir um castelo de areia que nem nota a presença dos dois ali. Sorrateiramente, Alec e Will se sentam ao lado dele e também começam a construir um castelo, ou pelo menos tentam. Em um certo momento, Raphael olha para os lados, como se estivesse procurando por algo. Então finalmente levanta e se vira, dando de cara com um homem alto, loiro, sorridente e de olhos claros.
— Está procurando por isso? — Will pergunta, mostrando-lhe uma pazinha. — Seu castelo ficou lindo! Olha só o nosso! A gente tentou construir um também, mas não deu muito certo. Mas o seu ficou demais! Eu estava pensando se você não poderia dar uma mãozinha pra gente, talvez? Quer ser nosso amigo? Nós somos bem legais e...
Will não queria assustar o menino, muito pelo contrário! Estava tão empolgado para finalmente conhecê-lo que nem percebeu o quanto estava sendo exagerado ao despejar uma enxurrada de palavras sobre ele. “Ótima forma de abordar uma criança tímida, Will! Nota dez!” o loiro se xinga em pensamento. Os olhos castanhos do menino se arregalam e ele começa a dar passos para trás, quase tropeçando nos próprios pés. No segundo seguinte, Raphael já havia voltado para dentro do abrigo para se trancar no armário, provavelmente, de onde não sairia por um bom tempo. O loiro leva a mão à cabeça e solta um longo suspiro.
— Eu assustei ele! Caramba, eu estraguei tudo! — Will lamenta, arremessando a pazinha pra frente, que acaba se fincando na areia úmida do parquinho. Alec também se levanta, tentando limpar a calça suja de areia com a palma das mãos. Pequenas gotas de chuva caem do céu nublado, que coincidentemente se parece muito com o olhar de Will naquele momento: Cinza, triste e encoberto.
— Tudo bem, amor. De verdade. Eu tenho certeza de que da próxima vez vai ser bem melhor... — Alec o consola, fazendo um leve carinho em seu ombro. Will balança a cabeça para os lados, ainda se sentindo muito decepcionado consigo mesmo.
— Isso se tiver uma próxima vez, né? E se eu assustei ele pra sempre?! Eu falo demais, não falo? — O loiro indaga, lançando um olhar ao marido, que nada responde, apenas sorri com o canto da boca. Will realmente era uma matraca. Discrepando-se muito de Alec, que sempre fora monossilábico. Era de se esperar que as diferenças afetassem o convívio diário dos dois, mas, de uma forma ou de outra, acabava funcionando muito bem. Era o equilíbrio perfeito.
— Imagina, querido! É que você é bem simpático e comunicativo... Só isso... — O moreno garante, tentando colocar panos quentes na situação. Quando o marido abre um enorme sorriso ele não encontra outra alternativa à não ser sorrir também, de orelha a orelha. Ver um sorriso genuíno no rosto de Will era tudo o que queria.
— Tá bom, então. Mas da próxima vez eu vou ficar de bico fechado pra não assustar ele... — O loiro afirma, passando os dedos sobre os lábios e “fechando” a boca com um zíper imaginário. O gesto arranca risadas do moreno. —Tadinho, ele deve achar que eu sou meio maluco...
Quando retornam na próxima semana, eles não vão à procura de Raphael de imediato. Não queriam pressioná-lo e muito menos fazer com que aquilo parecesse uma perseguição. Ambos queriam que tudo acontecesse de forma muito natural e esperariam o tempo que fosse preciso. Os dois se acomodam sobre o tapete de EVA que forrava o chão do pátio e, juntando-se às crianças, também escolhem um brinquedo.
Raphael chega ao pátio dando pulinhos de alegria. A hora de brincar no pátio era com certeza sua parte favorita do dia. Ele não gostava muito de brincar com as outras crianças: Preferia ficar no seu canto, desenhando ou montando quebra-cabeças. Extremamente entusiasmado, o menino vai em direção ao seu brinquedo favorito, LEGO. Porém, é surpreendido ao ver que o brinquedo já estava sendo utilizado.
— Caramba, Will, você é um arquiteto! Como é que você não consegue montar um jogo feito pra crianças de cinco anos? — O moreno o questiona, rindo de forma provocativa.
— Ei! Você sabe que eu trabalho mais com a parte estética e criativa! E esse jogo é mais difícil do que parece!
Os dois continuam tentando unir as peças do jogo, mas não obtêm muito sucesso: apenas conseguem montar a base do quartel general de bombeiros. Will lê o manual do brinquedo em voz alta, enquanto Alec tenta encaixar duas peças que claramente não pertenciam uma à outra. Raphael os observa pelo canto dos olhos, sentindo-se levemente irritado. Aqueles dois não eram grandinhos demais pra ficarem brincando de LEGO? Primeiro a pazinha, na caixa de areia, e agora isso?! O menino suspira pesadamente e tenta se concentrar no desenho que estava colorindo com giz de cera.
Apesar de estarem seguindo as instruções do manual, Alec e Will seguiam sendo um completo desastre. Vez ou outra, Raphael espiava o que eles estavam fazendo e balançava a cabeça para os lados em um sinal de reprovação ao perceber que eles estavam fazendo tudo errado. Sem conseguir esconder sua irritação por nem mais um segundo, o menino dispara:
— Não tá certo!
À princípio, o arquiteto e o advogado olham para os lados, assustados, em busca do pequeno dono daquela pequena, fofa e zangada voz. Um enorme sorriso se abre no rosto de ambos quando percebem de quem se trata. Raphael solta um pequeno arquejo ao notar o que havia feito e volta a pintar seu desenho, mas pode sentir o rubor ardente dominar sua face.
O casal troca um olhar de entusiasmo ao constatarem que o menino estava começando a se abrir, ainda que de uma forma levemente irritada. Will ajeita a coluna e Alec coça a garganta, tentando chamar a atenção do garoto novamente:
— É... Você tem toda a razão! Estamos fazendo um trabalho horrível, somos dois desastrados! Acho que precisamos da ajuda de um especialista...
O moreno respira fundo, sentindo seu coração palpitar. Tinha que manter o equilíbrio em suas palavras para conquistar a atenção do menino, e ao mesmo tempo, não o assustar. Raphael permanece calado e absorto por mais alguns segundos, mas então, surpreendendo ao casal e a si mesmo, ele se levanta e se aproxima dos dois.
Com cautela, o pequeno se senta ao lado do casal. Alec e Will até tentam disfarçar, mas o brilho no olhar dos dois exprime com clareza a felicidade que estavam sentindo. Pra não falar do amplo sorriso que não abandonava suas faces por nem um só segundo. Raphael separa as peças em três montinhos e começa a montar o quartel de bombeiros por partes. Os dois se impressionam com a habilidade e também com a facilidade do menino para montar o brinquedo. Poderiam facilmente se sentir envergonhados pelo trabalho desastroso que estavam fazendo anteriormente, comparado com a assertividade que o menino de quatro anos demonstrava. Porém, o sentimento que predominava entre eles no momento era o amor.
A tarde se passa brevemente, em meio à muitas risadas e brincadeiras. No fim das contas, os três acabam se dando muito bem. Naquele dia, Alec e Will vão embora do orfanato com relutância e com um aperto no peito. Raphael também não queria que os dois fossem embora, e passou o resto do dia tristinho e ainda mais calado do que de costume.
Quando o casal retorna, logo no dia seguinte, o menino vibra: Pula, dá gargalhadas e corre para os braços de seus mais novos amigos:
— Meus amicos!!! — O pequeno os recebe com alegria. Alec rodopia com o menino em seus braços e Will sorri tão largamente à ponto de que os cantos de sua boca comecem a doer.
As visitas do casal se repetem por vários e vários dias, tornando-os cada vez mais próximos do menino. Eles brincavam com Raphael no parquinho, no pátio, no jardim e até mesmo jantaram com o menino em uma das noites. O menino mudou, e mudou pra melhor: Ficou mais alegre, mais falante, mais aberto para amizades com seus coleguinhas. Também passou a se alimentar melhor na hora das refeições e o medo que sentia ao estar na presença de pessoas desconhecidas se dissipou quase por completo. Will e Alec notaram isso. Jia notou isso. E, ao notar com clareza o motivo para o menino ter progredido tanto, uma ideia surge na cabeça da mantenadora:
— O Raphael melhorou muito... Ele está mais alegre, mais sorridente. Vocês fizeram muito bem pra ele... — A mulher afirma convictamente e com um sorriso no rosto. Will busca a mão de Alec por debaixo da mesa e os dois trocam olhares carinhosos. — Meninos... Acho que chegou a hora de o Raphael passar um tempo com vocês... Fora do orfanato, eu quero dizer.
O casal sorri e sorri mais um pouco, com um ofuscante brilho nos olhos. Agradecem à Jia e já começam a bolar vários planos, sentindo o sonho se tornar cada vez mais real. A de cabelos pretos passa as instruções necessária para os dois, levando em consideração as responsabilidades que aquela situação envolvia. O casal toma nota de tudo que por ela é dito, com a intenção de fazerem tudo certinho, como deveria ser.
— Seria apenas por um fim de semana. Ele poderia ficar um pouco na casa de vocês, e se vocês quiserem levá-lo para um passeio, também é possível. — A moça sugere, e o casal já começa a debater sobre várias ideias de lugares que poderiam ir e atividades que poderiam fazer. — Também preciso alertá-los que a ideia de sair da zona de conforto de forma tão repentina pode assustá-lo um pouco. Acontece muito de as crianças não conseguirem passar a noite em um ambiente estranho, em que elas não estão familiarizadas. Se algo assim acontecer, vocês podem me ligar...
Quando o casal faz o convite, Raphael aceita na hora. Arruma sua mochila com antecedência e conta os minutos até que Alec e Will finalmente aparecessem para buscá-lo. Os dois adultos se encontravam igualmente ansiosos, ou até mais do que o garoto. Faxinaram a casa toda, como se um menino de quatro anos realmente fosse reparar se o lugar estava arrumado ou não. Compraram alguns lanchinhos e outros petiscos que acreditavam que ele pudesse gostar. Alec havia comprado ingressos pro cinema, para um musical infantil na Broadway e agora navegava pelo site do Zoológico de Nova York quando Will percebeu que aquilo poderia ser um exagero.
— Sabe amor, eu estava pensando... Você não acha que isso tudo pode ser um pouco demais? — O loiro questiona enquanto prepara o almoço. Confuso, Alec estreita os olhos. — Sei lá... É claro que eu quero que ele se sinta bem e feliz com a gente, mas... Ele só tem quatro anos e eu não quero que ele seja influenciado por passeios extravagantes, presentes, guloseimas... Eu sei como uma criança pode ser uma influenciada por essas coisas. Eu quero que ele goste da gente. De quem a gente realmente é no dia a dia. Entende?
Alec estreita os olhos novamente, mas dessa vez, um sorriso satisfeito aparece no canto de seus lábios. O argumento de Will fazia muito sentido. Era óbvio que os dois queriam dar o melhor para o menino, mas se Raphael não apreciasse a vida genuína e cotidiana que os dois levavam, não iria adiantar nada. O loiro pensa que os três poderiam ficar em casa, assistindo um filme ou nadando na piscina. Algo mais simples, mas ainda assim divertido. Então Raphael poderia conhecê-los melhor e decidir se os dois poderiam ser seus novos pais ou não. Alec e Will desejavam intensamente que a resposta fosse “sim”.
— Você tem razão. — O moreno afirma, abraçando o marido por trás e depositando vários beijos estalados em sua bochecha. Will revira os olhos e tenta fazer uma cara de convencido, mas cora em um tom profundo de vermelho ao sentir os carinhos da Alec transferindo-se para seu pescoço.
— Ah, é claro que eu tenho...
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No meio da noite, Jia acorda com o barulho de seu celular tocando. Ela solta um suspiro ao identificar o número que brilhava na tela. Afastando-se dos lençóis ela atende a chamada.
Raphael simplesmente adorou a casa de Alec e Will. Era muito bonita, espaçosa e ainda por cima tinha uma piscina! Demais! Os três passaram o dia todo se divertindo: Nadaram, desenharam, assistiram filmes na TV e assaram um bolo de chocolate. Tudo estava correndo muito bem... Até a hora de ir dormir. O menino estranhou o ambiente novo e se sentiu meio perdido quando o sol se pôs e a escuridão da noite prevaleceu. E pra piorar, se deu conta de que havia esquecido seu ursinho no orfanato! Dormir sem ele não parecia algo possível. O coração do casal se apertou quando, em prantos, o garoto pediu para voltar ao abrigo. Essa noite foi difícil, mas não se repetiu mais:
Demorou um tempo para que Raphael pudesse se adaptar, mas à cada novo fim de semana que passava na casa de Alec e Will o menino ia ficando cada vez mais à vontade e o vínculo entre os três, cada vez mais forte. Ansioso, Raphael já deixava sua mochila pronta nas noites de sexta-feira e nos sábados, pela manhã, o casal aparecia para buscá-lo. Isso já havia virado uma rotina entre eles e Alec e Will já não conseguiam mais se lembrar de como era a vida antes de o garotinho de cabelos cacheados e sorriso radiante aparecer nela.
Como Jia havia dito, Raphael era inteligente e doce. Também era muito simpático, e em detrimento ao seu passado de menino calado e arredio, ele pareceu desabrochar de alguma forma, tornando-se um menino tagarela e caloroso. Alec e Will realmente se tornaram seus melhores amigos e, a cada dia, caminhavam para se tornar algo à mais do que isso. O garoto de cabelos cacheados os chamava carinhosamente de “tio Alec” e “tio Will”, o que já fazia com que os dois adultos se derretessem por completo. Estariam mentindo se dissessem que não ansiavam para que o menino os chamasse de “papai”.
— Que lindo está o meu menino! — O rapaz loiro exclama ao pentear os fios de cabelo cacheados e volumosos de Raphael. O menino abre um enorme sorriso, repleto de pequenos dentinhos de leite. Observa sua própria imagem no espelho, admirando-se e comprovando se o elogio de tio Will era verdadeiro. Como um aspirante à profissional da moda, William adorava roupas e acessórios e se sentia na liberdade de montar looks para todos ao seu redor. Alec era a sua principal cobaia. E agora, o pequeno Raphael.
— Relâmpado Maquin! — O baixinho diz, apontando para a camiseta estampada com o carrinho vermelho que vestia. Will solta uma gargalhada melodiosa e beija as bochechas fofinhas do pequeno.
— Sim, meu amor! Relâmpago McQueen!
De longe, Alec observa os dois com um sorriso no rosto. Então... Era essa a sensação de se construir uma família? O moreno sempre considerou superestimado o conceito de se casar e criar uma família, que tantas pessoas sonhavam e almejavam tanto. Para ele, era apenas um detalhe ou uma consequência da vida, pois sempre acreditou que haviam coisas mais importantes para se preocupar. Porém, quando conhece Will, suas ideias começam a mudar. Agora ele via, sentia e entendia a felicidade genuína que a união de pessoas que se amavam e moravam sob o mesmo teto poderia oferecer. Uma família. Um porto seguro. Onde sempre haveria amor, carinho, cuidado, afeto. Não querendo criar expectativas, mas já criando — e criando muito — o advogado sonhava em ter Raphael como seu primeiro filho. Seu coração já havia o escolhido.
— E aí, estão prontos? Já faz mais de uma hora que vocês estão aí dentro! — Alec os provoca propositalmente, sorrindo com o canto dos lábios. Will revira os olhos, mas sorri também.
— Fala pro tio Alec parar de encher o saco, Rapha! — O loiro rebate, arrancado risadas do menino. Alec e Will adoravam fazer palhaçadas e provocar um ao outro, só para verem um enorme sorriso estampando o rosto do menino.
Foi em uma noite de domingo que Raphael os escolheu também. Os três estavam prontos para sair de casa e levar o menino de volta para o abrigo, como era parte do combinado que fizeram com Jia. Porém, quando vê Alec e Will arrumando sua mochila, Rapha sente um vazio angustiante preencher seu coraçãozinho. O garoto não sabia como traduzir o que estava sentindo em palavras, só sabia que voltar para o abrigo sem o tio Alec e o tio Will parecia ser algo extremamente doloroso. Ele queria continuar ali, com os dois. O casal se assusta quando repara nas lágrimas grossas e abundantes que escorriam pelo rostinho da criança.
— Rapha, o que foi? Nós já estamos voltando pro orfanato, querido, não se preocupe... — Will o acalenta, acreditando que o motivo do choro era saudade de Jia e dos amiguinhos do abrigo. Ao ouvir a afirmação, Rapha arregala os olhos e balança a cabeça para os lados com veemência. Não era isso o que ele queria.
— Não... — Raphael arqueja em meio aos soluços. — Não quero...
O choro do menino era tão sofrido e cheio de desespero que os dois ficam preocupados. Alec afaga as costas do menino com a intenção de confortá-lo e cessar seu choro. Will se agacha em sua frente e seca suas lágrimas com a ponta dos dedos, tentando entender o motivo de toda aquela angústia.
— O que você quer, meu anjinho? Está com alguma dor? Está com fome, frio, o que é? — Will o questiona. A resposta do menino o pega de surpresa. Mas é uma surpresa muito agradável.
— Eu... Eu quero ficar aqui. Com vocês. Pra sempre.
O menino confessa o seu mais genuíno desejo em um baixo tom de voz, mas ainda sim cheio de convicção. Apesar de sua tenra idade, Raphael possuía discernimento o suficiente para entender o que queria. Em seus quatro curtos, mas ainda sofridos anos de idade, o garoto nunca havia sido tão feliz como estava sendo naquele momento. A saúde frágil de sua mãe não permitiu que Raphael pudesse desfrutar muito de seus afetos maternais. A agressividade advinda da bebedeira do pai apenas serviu para proporcionar a ele momentos de dor e desamparo. Em contraste à isso, os momentos que passava com Alec e Will eram repletos de amor, carinho, compreensão, diversão, felicidade e mais uma infinidade de adjetivos positivos que o menino não era capaz de dizer, mas que podia sentir – e sentia muito.
O casal permanece em silêncio por algum tempo, apenas tentando captar a informação. Lentamente, um sorriso bobo aparece no rosto dos dois e lágrimas carregadas de emoção chegam aos seus olhos. Era o que eles queriam, desde o começo. Queriam que Raphael se sentisse feliz, em paz e à vontade com eles, à ponto de revelar, por livre e espontânea vontade que queria viver ali, com eles, pra sempre, como ele mesmo havia dito. As palavras do menino soaram claras, mas ainda assim, o casal passou os quinze minutos que se sucederam enchendo-o de perguntas, apenas para garantir que sua decisão seria bem pensada.
— Então você está dizendo que quer ficar aqui... Comigo e com o tio Alec... Pra sempre.... — O loiro repete as palavras pausadamente, recebendo um aceno de cabeça do menino como resposta, seguido da afirmação: Eu quero. Ou melhor: Eu quelo. Isso bastou para derreter os dois adultos como manteiga na panela quente. Eles não conseguiam parar de sorrir.
— Então... Eu e o tio Will... podemos ser os seus papais? — O moreno questiona cuidadosamente, temendo estar sendo muito apressado e assim assustar o menino como consequência. Porém, ao ouvir a palavra “papais” o rosto do menino se acende de imediato e seus olhinhos castanhos brilham como duas lantejoulas. A resposta silenciosa se expressou através de seu olhar, mas o menino fez questão de completar com um “sim” vibrante e decidido.
Naquela noite, o casal chorou de alegria. Com dor no coração, eles tiveram que levar Raphael de volta ao abrigo, de acordo com o compromisso que estabeleceram com Jia. O menino chorou, sentindo-se descartado, o que resultou nas lágrimas ainda mais aflitas de Alec e Will. Por meio de uma promessa inquebrável, o casal garante ao menino que voltariam para buscá-lo, e que não seria apenas para uma visita, mas sim, para viver com eles oficialmente e para sempre.
O processo de adoção foi lento e burocrático, e consequentemente angustiante para os três, que almejavam se tornar uma família o mais rápido possível. Porém, ao fim do quinto de mês de muitos papéis assinados, documentos apresentados e visitas ao lar dos Lightwood, Raphael é oficialmente adotado e oficialmente se torna o filho primogênito de Alexander e William. Os dois não poderiam estar mais felizes e apaixonados pelo menino e esse sentimento era recíproco. Eles eram uma família! Uma família. O casal não se cansava de repetir essa palavra. A família de ambos também estava na mesma situação: Não haviam avós mais babões e nem tios mais orgulhosos do que os de Raphael.
— Afinal, ele não era um patinho feio, mas um belo e jovem cisne! A partir desse dia, não houve mais tristezas, e o patinho feio que agora era um belo cisne, viveu feliz para sempre!
Ao final da história narrada pelo papai Alec, Raphael bate palmas. Suas bochechas logo são atacadas por beijos carinhoso de pais babões que se desmanchavam de amor por qualquer coisa que o menino dissesse ou gesto que fizesse. Então aquilo era o amor, em sua mais pura forma. Quando o menino se ajeita no meio da cama, sendo acolhido pelos braços protetores dos dois, começa a dormir e ressonar quase que imediatamente. O casal o observa com carinho, desfrutando daquele momento tão doce e especial.
Ao perceber que o marido começa a devanear, Alec pergunta o motivo. Will sorri abertamente.
— Nada não, amor... Só estou pensando nos futuros irmãozinhos do Raphael... — O loiro revela, tornando visível o desejo que ambos sentiam. Alec arregala os olhos, espantado, mas logo sorri também.
— Calma, homem! Muita calma!
— Vai me dizer que não é isso que você quer também? — O loiro rebate com as sobrancelhas arqueadas. O moreno assente e busca os lábios do marido, depositando nele um beijo breve, mas ainda assim carinhoso.
— Eu quero sim! E muitos! Eu quero uns quatro... Ou melhor: cinco!
Will solta gargalhadas com o exagero do marido, que na verdade não era exagero nenhum: Era a mais pura verdade. Era o que realmente queria. Os dois se aninham para mais perto do filho e sono profundo não demora para aparecer.
Antes de cair no sono, Alec promete a si mesmo que protegeria sua família, principalmente seu filho, Raphael, em todas as situações, a qualquer custo, e daria sua própria vida em troca se fosse preciso.
Agora, olhando para seu filho mais velho, inconsciente e deitado em uma cama de hospital, o advogado se pergunta em que momento sua promessa começou a se quebrar. Com lágrimas nos olhos e com um sentimento de culpa apertando seu peito, Alec sente suas esperanças se esvaindo aos poucos, como grãos de areia escapando entre seus dedos.
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