Strangers waiting
Up and down the boulevard
Their shadows searching in the night
Streetlights, people
Living just to find emotion
Hiding somewhere in the night
Don't stop believin'
Hold on to the feelin'
Streetlights, people
Journey
Teria sido um almoço bem esquisito não fosse Ivan e sua infinita gama de histórias. Claire participava ativamente da conversa, porém toda vez que eu dizia alguma coisa ela me ignorava completamente. Já Dimitri fazia apenas uma ou outra observação, mantendo quase todo o tempo uma postura neutra e quase indiferente. Não sabia se ele era desse jeito todo o tempo ou se só estava assim porque eu estava ali. E, realmente, não fazia ideia qual era a pior opção.
Após a refeição, Ivan e eu nos despedimos e ele me levou para casa.
- Eu te falei que você conseguiria – o loiro disse já dentro do carro. – Eu conheço Dimitri.
- Tenho a impressão de que ele não foi muito com a minha cara – acabei comentando.
- Ah, relaxa, ele é assim mesmo. Não fica muito a vontade com estranhos.
- Muito reconfortante.
Então ele realmente estava agindo daquela forma taciturna por minha causa. Isso não me ajudava em nada a relaxar.
- Por que está com essa cara? – Ivan perguntou após me observar por alguns segundos. – Ânimo, mulher! Você conseguiu o emprego. Não era o que queria?
- Era – suspirei. – Só estou me questionando se conseguirei fazer o trabalho. Eu realmente não sei nada sobre crianças, a não ser cuidar de uma doente.
- Se você sabe lidar com elas nessa situação, vai ser fácil lidar com uma incrivelmente saudável, Rose. Não se preocupe.
- Espero que você esteja certo.
- Vocês vão se dar bem, garanto – ele sorriu. – Logo vocês vão enlouquecer a Kirova juntas.
- E qual é a daquela mulher? Ela é esquisita, parece uma alma penada de um filme de terror.
- Ah, agora tenho mais do que certeza de que vocês duas vão se resolver rapidinho.
- Quem? Eu e a alma penada? – perguntei confusa. Duvido que aquela mulher possa ser agradável.
- Não, você e a Claire – Ivan riu e então me jogou um olhar condescendente. – Apenas seja você mesma, Rose. Seja aquela garota forte e obstinada que eu conheço e não se deixe intimidar nem por ela nem por Dimitri que tudo dará certo.
Sorri para ele antes que voltasse novamente sua atenção para a estrada. Era incrível como Ivan me conhecia há tão pouco tempo e já me via daquela forma. Ou isso era apenas a sua pseudo-atração por mim falando mais alto. Mas, de qualquer forma, aquilo me deixou momentaneamente confiante enquanto seguíamos ao prédio da Lissa em um silêncio confortável.
- Tem certeza que não quer que eu te espere para levá-la de volta à casa do Belikov? – ele indagou ao encostar o carro frente a nosso destino.
- Não precisa. Eu vou demorar para arrumar todas as minhas coisas e ainda terei uma conversa com Lissa sobre minha mudança.
- Você não contou nada para ela?
- Não – dei de ombros. – Achei melhor antes ter certeza de que o emprego seria meu pra me poupar de uma discussão desnecessária.
- Então imagino que será uma longa conversa.
- Você não faz ideia – sorri ao me inclinar em sua direção e dei um beijo em sua bochecha. – Obrigada por tudo o que fez por mim. Nunca serei capaz de retribuir apropriadamente.
Algo brilhou no fundo daqueles olhos azuis enquanto eu me afastava e senti sua mão esquerda escorregar por meu braço direito.
- Rose...
- Preciso ir, Ivan – dei meu melhor sorriso já abrindo a porta e me desvencilhando do que quer que ele pretendesse fazer. – Tenho que voltar pra lá ainda hoje. Mais uma vez obrigada.
Entrei no prédio sem olhar para trás e subi ansiosa para arrumar as malas. Sabia que Lissa provavelmente estaria em casa, uma vez que era seu dia de folga e ela não havia me avisado sobre nenhum compromisso. Não ia ser nada fácil explicar pra ela que estou indo embora.
Ao abrir a porta do apartamento a vi na cozinha mexendo em algo no fogão.
- Rose, finalmente você chegou – disse ansiosa. – Eu tentei te ligar, mas seu celular estava desligado.
- Deve ter acabado a bateria.
- Aonde você esteve? Não te vi ontem antes de ir trabalhar e quando acordei hoje você já tinha saído.
- Eu estava em uma entrevista de emprego – suspirei, seguindo para meu quarto enquanto Lissa vinha atrás de mim animada levando uma caneca com alguma coisa fumegante dentro. Só espero que esse líquido não venha parar em cima de mim quando ela começar a surtar com as novidades.
- Foi aquela que o Ivan te chamou pra conversar? – Liss questionou. – Me conta tudo! Onde é?
- É em St. Petersburg – respondi olhando para minha cama onde as minhas roupas estavam espalhadas. Lissa empurrou-as para o lado para se sentar e comecei a dobrá-las calmamente para ganhar tempo.
- E o que mais? – ela insistiu após algum tempo de silêncio, percebendo que eu não ia dizer mais nada. – O estágio é numa clínica? Num centro de reabilitação?
- Na verdade não é bem um estágio... Meio que vou trabalhar fixo para uma só pessoa... – Por que não conseguia dizer tudo de uma vez?
- Você vai atender o paciente particular? – Lissa pareceu entusiasmada. – Então a pessoa deve ter gostado muito do seu trabalho... O que está fazendo?
Ela se interrompeu quando puxei uma enorme mala de sob a cama para colocar as roupas dobradas.
- Eu vou me mudar, Liss – sorri de forma fraca. – Vou morar no meu novo emprego.
- Espera aí, que tipo de emprego é esse? – questionou desconfiada abandonando a caneca semicheia na mesa de cabeceira o que me deixou um pouco mais tranquila. – Você não precisaria se mudar para trabalhar como fisioterapeuta.
- Na verdade eu vou trabalhar como babá – enfim revelei a verdade sem olhá-la, me voltando para o armário para pegar o restante das roupas.
- Como é? Babá? Você está maluca? – Ela pulou em pé e comecei a jogar as vestes sem muito cuidado na mala para poder terminar aquilo o mais rápido possível.
- Liss... – comecei a tentar me explicar, mas ela nem me deixou continuar.
- Não me venha com Liss coisa nenhuma! Rose, você não pode simplesmente se mudar pra casa de completos estranhos. – Lissa começou a andar de um lado para o outro nervosa e tratei logo de puxar outras duas malas e colocá-las abertas sobre a cama para preenchê-las.
- Ele não é um completo estranho – suspirei.
- Ele? ELE? Você vai trabalhar de babá para um homem? Eu achei que era um casal.
- Ele é recém divorciado e está às voltas com uma menina de sete anos. E, como eu disse, não é um completo estranho, Liss. Ele é... – mais uma vez não consegui prosseguir.
- Ah não? Então suponho que você o conheça muito bem? – devolveu com desdém e evitei seu olhar desaprovador me abaixando para alcançar meus sapatos dentro do guarda-roupas. – Por que até onde eu saiba, você não conhece ninguém que tenha filhos.
- Bem, eu o conheci hoje quando... – tentei explicar.
- VOCÊ O CONHECEU HOJE? – Dessa vez ela realmente gritou, tirando os pares de sandálias que estavam em minhas mãos e jogando de qualquer jeito sobre a cama. – O que você fez? Foi passear no parque e resolveu bancar a babá para o primeiro gostosão que aparecesse com uma criança?
- Não foi assim, Liss. E você está começando a me ofender. – Olhei para ela de atravessado, colocando os sapatos largados numa mala antes de ir ao banheiro pegar meus itens de higiene pessoal.
- Será que você não aprendeu nada sobre confiar em estranhos com tudo o que aconteceu? Achei que Nathan havia sido experiência suficiente para uma vida, mas vejo que me enganei.
- Não ouse falar daquele porco pra mim – rosnei agora jogando eu as coisas que estavam em minhas mãos sobre a cama para encará-la. – Você sabe muito bem que o que aconteceu não foi culpa minha. Eu não tinha ideia do que ele era e eu acho que eu paguei muito caro por isso.
Minha voz se quebrou ao dizer a última frase e fechei meus olhos para controlar as lágrimas que ameaçaram brotar ali quando as malditas lembranças retornaram a minha mente. A forma como ele me segurou e me jogou de qualquer jeito sobre a cama, seus punhos batendo em meu corpo...
- Desculpa, eu não devia ter dito isso – Lissa interrompeu meus pensamentos sombrios me fazendo olhar de volta para seu rosto. O arrependimento substituiu a raiva naqueles olhos verde jade e apenas assenti, retomando minha arrumação.
Por alguns minutos ficamos em silêncio. Lissa se ocupou em dobrar as roupas que estavam espalhadas de qualquer forma dentro das malas enquanto eu continuava a trazer tudo que estava no banheiro. Ela parecia estar escolhendo com mais cuidado suas próximas palavras.
- É só que... Eu não entendo como você pode se mudar pra casa de um completo desconhecido assim sem mais nem menos após aquela experiência.
- Liss, se você me deixasse explicar ao invés de surtar talvez entenderia – falei de forma cansada, agora me sentando na cama por um instante
- Explique – Lissa se sentou ao meu lado com uma expressão séria.
- Ele é amigo do Ivan. Eles cresceram juntos e Ivan é padrinho da menina ou algo assim. Você sabe que ele nunca me deixaria ir viver na casa de alguém em quem não confiasse totalmente.
- Rose – ela começou de forma insegura – isso foi pelo o que aconteceu com o Christian? Eu sinto muito, prometo que nunca mais vai se repetir.
- Não tem nada a ver com isso – menti um pouco. Realmente aquele episódio contribuiu muito para minha decisão. – Eu só preciso de um emprego. Não tenho dinheiro para nada, nem para pagar o aluguel quanto mais colocar comida na geladeira.
- Eu estou conseguindo pagar tudo, Rose. Você realmente não precisa se submeter a isso.
- Mas eu não quero que você pague por tudo – exclamei já voltando a ficar exasperada. Será que ela não entende?
- Nós somos um time, lembra? Eu não me importo de te sustentar por um tempo.
- Eu me importo! E você não vai poder pagar meu empréstimo estudantil de qualquer maneira.
- Nós podemos dar um jeito nisso. Tenho certeza que se você falar com seus pais...
- Não, Liss. Isto está fora de cogitação. – Levantei-me para retomar a organização e comecei a pegar alguns pertences que estavam sobre a escrivaninha e dentro das gavetas para enfiá-los numa mochila. – Você sabe muito bem que eu não vou falar com eles.
As coisas até podem ter se resolvido entre meus pais e eu, mas eu jamais iria esquecer das palavras de Janine quando enfim dei a notícia de que não havia feito a vontade deles. Depois de gritos e acusações, ela disse que eu nunca seria capaz de viver sem a sustento e os luxos que Abe me provinha e ela não dava nem um mês para que eu voltasse correndo pedindo abrigo.
Só que eu provei que ela estava errada. Eu me virei até ali sem um dólar do velhote, trabalhando duro como garçonete e outros pequenos empregos que consegui e não era agora que eu ia admitir uma derrota. Apesar de não ter os mesmos mimos, eu descobri que viver da minha própria maneira era realmente libertador.
- Eu disse que me viraria e é isso que eu vou fazer, independente do que for – suspirei terminando de guardar alguns itens de maquiagem e perfumes numa bolsa de mão. – E eu dei minha palavra, não vou voltar atrás. Aliás, tenho que voltar logo para St. Petersburg.
- Você vai embora hoje? – Lissa perguntou surpresa e magoada. – Vai me abandonar assim sem mais nem menos?
- Não seja dramática, Vasilisa – revirei os olhos. – Eu não estou te abandonando, só não vou mais morar com você.
- Não vai ser a mesma coisa, Rose – ela fez um biquinho se colocando de pé enquanto eu começava a fechar as malas.
- Pense pelo lado bom. O tarado do seu namorado pode vir morar aqui e vocês vão poder transar como coelhos em qualquer lugar da casa sem correr o risco de traumatizar ninguém.
Lissa bufou e saiu pisando firme quarto à fora. Aproveitei para trocar de roupa por um vestido mais leve que havia separado e dei uma olhada em todos os cantos a fim de checar se nada havia ficado para trás. Todas as minhas coisas couberam em três malas e uma mochila, fora o que consegui enfiar em minha bolsa de mão.
Minha amiga ressurgiu minutos após eu chamar um táxi trazendo uma sacola de pano com vários pertences meus.
- Eu tinha pegado emprestado – suspirou e começou a me ajudar a carregar as malas para o hall do apartamento.
- Lissa, desfaz essa cara de enterro. Nós vamos continuar nos vendo em nossas folgas.
- Não é por isso que eu estou assim, Rose. Eu só acho que você tem que pensar melhor a respeito. Uma coisa era viver de subempregos antes de se formar, mas agora? Se tiver paciência logo vai arrumar algo na sua área – ela insistiu alguns segundos antes de a porta do elevador se abrir para alocarmos minhas coisas.
- Só que eu não posso mais esperar. E você sabe muito bem que não está assim fácil encontrar emprego.
- Você estudou sete anos da sua vida para terminar como babá? Sério? – Lissa tentou outra abordagem.
- Lembra do David que se formou em fisio ano passado e fazia as nossas unhas nos fins de semana?
- Claro que eu lembro – ela franziu a testa, não compreendendo minha mudança súbita de assunto. – Minhas mãos nunca mais foram as mesmas desde que eu parei de fazer com ele.
- Pois então pode procurá-lo. Ele transformou isso num emprego em tempo integral desde a formatura já que não arranjou nada.
Ela me olhou incrédula.
- Também tem a Marianne que está fazendo faxina em Miami e o George que está vendendo seguros – enumerei. – Ah, sabe o Henry? Está trabalhando como atendente no McDonalds. Também tem o...
- Tá bom, tá bom. Já entendi – Lissa respondeu mal humorada enquanto esvaziávamos o elevador no térreo. – Mas eu ainda acho que você está sendo precipitada. Mesmo que não seja na sua área outra coisa melhor pode surgir.
Melhor do que aquele salário descomunal? Eu duvido.
- Liss, já chega, por favor. Não quero continuar discutindo com você. Eu vou e ponto final. E, além disso, é isso que eu quero.
- Sério? Você quer mesmo ser uma babá? Você tem medo de crianças – ela revirou os olhos.
- Essa garota é... diferente... – respondi saindo para a rua quando vi o táxi encostar na calçada.
- Seu pai vai morrer quando descobrir isso, Rose – Lissa apelou para outro lado. – Ele vai morrer, te matar e depois me matar por te deixar fazer essa loucura.
- Ele não vai nos matar se já estiver morto – falei rindo enquanto observava o taxista tentar encaixar tudo no porta malas. – E ele não vai descobrir se você não contar.
- Aposto que isso vai ser como quando nós entramos na faculdade. Eu quase tive certeza que Abe e Janine iam se teletransportar através da linha telefônica. E ele realmente fez algo perto disso. Nenhum voo da Pensilvânia à Flórida é tão rápido quanto aquele.
- Eles só vão descobrir se você contar e você não vai fazer isso, não é? – eu disse envolvendo-a em um abraço. – Eu te mando uma mensagem assim que chegar lá. Eu vou ficar bem, Liss.
- Eu vou sentir muito a sua falta, Rose – ela choramingou.
- Nós vamos continuar nos vendo com frequência. Eu prometo. A casa dele fica a menos de meia hora daqui.
- E quem é ele afinal? Você nunca me disse.
- Dimitri Belikov – respondi dando de ombros. Duvido que ela vá conhecer.
- Dimitri Belikov? – ela arregalou os olhos. – O Quarterback do Bucs?
- Você o conhece? – perguntei surpresa. Desde quando Lissa acompanha futebol?
- Claro, ele...
- Moça, nós temos que ir – o taxista interrompeu.
- Eu preciso mesmo ir, Liss. Te ligo assim que puder. – Dei mais um rápido abraço nela e entrei no carro deixando uma Lissa espantada para trás.
Indiquei o endereço para ao motorista e passei a viagem inteira pensativa.
Apesar de ter dito à minha amiga que eu queria aquilo, muitas perguntas ainda rondavam por minha mente. O que me aguarda? Eu vou realmente conseguir cuidar da garota? O trabalho vai ser tão simples como Ivan me garantiu?
Antes que qualquer resposta caísse magicamente em meu colo paramos em frente àquela casa gigantesca. O taxista me ajudou a levar as malas até a porta, então paguei pela corrida e toquei a campainha.
Era perto das oito horas da noite e logo o sol iria se por. O horário de verão alongava os dias ao máximo, o que era ótimo, pois eu amava o sol, apesar do verão de Tampa aproximar a cidade de uma sucursal do inferno. Hoje o dia até que teve uma temperatura considerada 'amena' para aquela época do ano, passando dos trinta graus.
- Deus do céu – Kirova exclamou ao abrir a porta e me ver. – Que roupas são essas?
- O quê? – perguntei surpresa. Não era a recepção que eu esperava.
- O senhor Belikov está preparando o jantar da Claire – ela disse sem me responder, abrindo passagem para que eu arrastasse minhas malas para dentro. – Você já sabe qual vai ser seu quarto, certo? Leve suas malas para lá.
Novamente ela me mediu de cima abaixo e eu mesma olhei para meu vestido para ver o que tanto a havia espantado. Não vi nada de inadequado nele.
- Eu já separei seu uniforme de trabalho. Enquanto você cuidar da garota deverá usá-lo. Sem exceção. Já quando não estiver mais de serviço pode usar suas roupas, mas tente se manter mais descente que isso.
- Hein? Eu...
- Você está perdendo nosso tempo aqui. Não pode deixar essas tralhas espalhadas na entrada, leve logo para o seu quarto – a maluca me interrompeu. – Anda logo garota, eu não tenho a noite toda.
Kirova virou as costas e saiu marchando para algum lugar não se dignando a me ajudar com as malas. Equilibrei o que pude da melhor maneira possível e segui o caminho que me lembrava para o quarto. Consegui acertar o cômodo e abandonei o que tinha logo na entrada, voltando para buscar o restante.
Assim que fechei a porta, vi um jogo de uniformes espalhados pela cama. Camisas polo rosa bebê, calças de brim brancas e tênis keds brancos.
É sério que querem que eu use esse negócio? Aquilo era simplesmente horroroso. Fora que calças compridas no calor de Tampa era com certeza a maior sacanagem do mundo
Respirei fundo por um instante e decidi não discutir. Agora eu seguia ordens, então não havia muito o que se fazer.
Gastei um bom tempo guardando minhas roupas no armário e organizando meus pertences pelo quarto e banheiro, então fui tomar um banho. A ducha era maravilhosa. Fazia sete anos que não aproveitava algo assim diariamente e tive certeza que eu poderia me acostumar a viver ali facilmente.
Dentro da casa a temperatura estava bem agradável e, por isso, decidi colocar uma calça jeans e um blusa vermelha de alças largas.
Não sabia se seria apropriado sair do quarto por hora então decidi ficar por ali apesar de começar a sentir um pouco de fome. Fazia pelo menos uma hora que eu estava naquela casa e me sentia totalmente perdida.
Vi que a escuridão tomara o lado de fora da janela do meu quarto e mandei uma mensagem para Liss avisando que cheguei bem. Só não liguei para ela porque não estava a fim de uma rodada de perguntas as quais eu não saberia responder.
Foi então que ouvi uma batida à minha porta.
- Sim? – perguntei desanimada ao ver Kirova ali parada. Essa mulher não vai me deixar em paz?
- O senhor Belikov deseja te ver em seu escritório – ela disse e deu as costas.
- Ei, espera. Eu não sei como chegar até lá.
- Me siga – Kirova revirou os olhos. – E tente não se perder.
Nós andamos silenciosamente pelos corredores e ela me deixou na porta do escritório. Após bater, ouvi Dimitri me mandar entrar com aquele sotaque sexy.
- Senhorita Mazur – ele me cumprimentou e indicou uma cadeira frente à mesa em que estava acomodado. – Por favor, sente-se.
- Só Rose, por favor – pedi mais uma vez após me sentar e observar o local. Era um cômodo pequeno em comparação a outros daquela casa, porém bem aconchegante.
- Conseguiu se instalar devidamente?
- Sim, obrigada – sorri. Aquilo era estranho.
Ele parou um instante me medindo tal qual Kirova, mas não pude identificar se ele aprovava ou desaprovava minha vestimenta por seu olhar neutro.
- Então, Rose, pedi que viesse aqui, pois precisamos discutir alguns detalhes. Primeiramente, aqui está a chave do carro que você vai usar para andar com a Claire e uma cópia das chaves da casa para que possa circular livremente.
- Obrigada – eu disse pegando as chaves que ele me estendia.
- Como lhe disse, minha irmã virá falar com você entre amanhã e depois. Ela é quem administra toda a minha agenda de trabalho e cuida de alguns de meus compromissos financeiros, então quaisquer problemas a esse respeito deverão serem discutidos com ela. Também já pedi a Viktoria que traga uma cópia dos meus horários durante a temporada.
Dimitri fez uma pausa e me observou, talvez para ver se eu estava acompanhando e assenti para demonstrar que sim.
- Por enquanto – continuou – você só deve garantir que Claire não incomode Kirova. Ela está de férias por mais uma semana. As aulas começam na primeira semana de Agosto e você garantirá que ela não falte ou se atrase.
- Sim, senhor.
- Até o início da temporada terei folga aos domingos e portanto até lá esse será também o seu dia de folga. Durante a semana estou ocupado com o trainning camp em alguns dias, mas a maior parte das noites ficarei em casa se não houver nenhum compromisso com meus patrocinadores. Dessa forma poderá haver mais alguns horários livres para você.
- E quando a temporada começa exatamente? – perguntei pensativa. Realmente não sei nada sobre futebol americano.
Como hoje mais cedo, vi uma leve sombra de um sorriso passar por seus olhos castanhos. Ele deve me achar uma lunática. Quem naquele país não acompanhava futebol?
- Setembro – Dimitri respondeu, porém, sem qualquer alteração em sua voz. – Vai até janeiro se nos classificarmos para os playoffs, fora o Super Bowl no primeiro fim de semana de fevereiro. Será quando suas folgas passarão a ser às terças-feiras, com exceção das semanas em que há jogos na segunda e na quinta. Provavelmente minha primeira viagem será apenas no fim de Setembro, o que te dará um bom tempo para se adaptar à rotina da Claire.
- Entendo – devolvi apesar de estar achando aqueles horários meio malucos, mas quem era eu pra discutir?
Espero conseguir realmente me adaptar a isso. Se bem que essa época de jogos era até bem curta. Ele ficava de férias o resto do ano? Isso sim que era vida. Ganhar milhões e ter uns cinco meses de folga.
- Amanhã tenho treino logo pela manhã – o russo me fez voltar minha atenção mais uma vez a ele. – Sairei às sete horas e estarei de volta lá pelas cinco da tarde. Claire deve acordar no máximo até as nove para tomar café da manhã. Kirova te apresentará à Sonya Karp. Ela é a nossa cozinheira. Você tem alguma duvida, Rose?
- Não, senhor. – Na verdade ainda estava curiosa com a questão das suas férias, mas achei que não era adequado perguntar.
- Isso é tudo por hora então – Dimitri obviamente estava me dispensando. – Espero que você tenha tudo o que precisa.
- Tenho sim. Obrigada – dei um leve sorriso antes de me levantar e seguir para fora.
- Rose – ele me chamou quando estava a meio caminho de fechar a porta, me fazendo interromper o movimento para olhá-lo. – Você já jantou?
- Na verdade não – admiti, franzindo a testa, sem entender o que ele queria.
O russo me olhou por alguns segundos como se estivesse pensando no que iria dizer, o que aumentou ainda mais minha confusão por conta de sua pergunta. Por que ele se importaria com aquilo?
- Você pode ficar a vontade para preparar o que quiser na cozinha – disse por fim. – Eu já te falei que quero que se sinta em casa aqui.
- Ah, certo. Obrigada – agradeci novamente um tanto desconcertada e fui embora de vez.
Por um instante tive a impressão que ele ia fazer algum convite, mas acabou mudando de ideia.
Como eu realmente estava faminta, segui a sugestão de Dimitri e me esgueirei até a enorme cozinha. Vasculhei os armários e a geladeira em busca de alguma coisa fácil, já que eu não me arriscaria a cozinhar nada, e acabei requentando um resto de macarrão integral com molho a bolonhesa. Eu realmente detestava qualquer coisa que pudesse ser comprada em lojas de produtos naturais, mas admito que aquilo estava muito gostoso. Se fora essa a refeição que o russo preparara para a filha mais cedo, esse homem definitivamente era uma benção de Deus.
Ao retornar para meu quarto me sentia exausta. Coloquei meu pijama e caí direto na cama após escovar os dentes. Pela manhã acordei ansiosa sem saber se teria ou não um emprego e agora ia dormir empregada e morando em uma casa completamente estranha, cercada de desconhecidos. Isso sim que é uma reviravolta.
Não tive um sono exatamente tranquilo, talvez por estranhar a nova cama, e acordei no outro dia bem cedo. Ouvi Dimitri – provavelmente – passar pelo corredor e descer as escadas.
Segui em direção ao banheiro para fazer minha higiene e então coloquei minha roupa de yoga. Teria tempo suficiente para praticar um pouco antes de encarar minha nova rotina.
Decidi abrir a porta de vidro do meu quarto que dava para um pátio e me estender ali, deixando o sol banhar minha pele. Fiz os exercícios durante quase uma hora então vesti aquele uniforme horrível que Kirova me deu e desci para tomar café da manhã.
Ali não tinha nada que me agradasse, então decidi sair para comprar minha própria refeição. Havia visto uma cafeteria não muito longe dali quando vim ontem e com certeza daria para ir até lá a pé e voltar antes das nove horas.
- Kirova – avisei quando a encontrei a caminho da porta. – Vou sair para comprar alguma coisa para comer e não demoro.
- Espero que não. Você não vai querer se atrasar no primeiro dia morando no seu local de trabalho – ela disse, claramente desaprovando meu plano. Só que eu consegui ir e voltar a tempo.
Cheguei completamente suada pouco antes do horário estipulado por Dimitri para acordar Claire. Aquele uniforme era quente como o inferno, mas decidi respirar fundo e apenas aceitar.
- Você deve preparar o café da manhã de Claire – Kirova me alertou quando passei por ela para ir ao quarto da menina. – A senhorita Karp só chega para o almoço.
- O quê? Eu não tenho ideia do que uma criança come – acabei deixando escapar.
- Então acho que você está no emprego errado, garota.
- Mas que merda! – exclamei. O que uma menina de sete anos come no café da manhã? Cereal?
- Cuidado com a boca perto da Claire. Ela já tem péssimos modos sem precisar de alguém para ensiná-la errado – Kirova me repreendeu. Essa mulher é um verdadeiro pé no saco.
- Tudo bem – murmurei. – Você pode me ajudar só dessa vez?
- Ela come todo dia iorgute com salada de frutas – a mulher disse depois de uma pequena avaliação. – Acho melhor você aprender rápido como funcionam as coisas por aqui.
- Ok. Obrigada.
Corri até o quarto de Claire para acordá-la e ela me olhou mal humorada antes de se trancar no banheiro. Pelo menos a garota consegue se virar sozinha com essas coisas, não é?
Resolvi separar uma roupa para ela então abri seu armário e fiquei instantaneamente surpresa com o que vi ali. Havia uma infinidade de vestidos pendurados em cabides, de todas as cores e para todas as ocasiões. Tinha alguns que pareciam feitos para uma boneca Barbie, mas outros eram bem bonitos.
- Eu uso as roupas que estão nas gavetas – a voz de Claire me sobressaltou e a olhei parada a porta do banheiro com o cabelo preso em um rabo de cavalo. – Nem pense em tentar me convencer a colocar esses vestidos idiotas.
- Por que não? Tem alguns bem legais aqui – falei abrindo a primeira gaveta e tirando dali uma camiseta qualquer. Mostrei o que tinha em mãos à garota e ela revirou os olhos, indo em direção ao guarda roupas para escolher ela mesma o que iria vestir.
Claire não respondeu ao meu questionamento sobre suas roupas. Apenas vestiu o que achou melhor e desceu para a cozinha. Consegui preparar seu café da manhã de forma adequada – pelo menos acho que sim, já que ela não reclamou de nada –, então ela seguiu para a sala e se sentou na frente da tv para continuar assistindo um daqueles vídeos que estava vendo com Ivan ontem.
Por toda a manhã ela ficou ali me ignorando totalmente. Não adiantava nada que eu falasse ou tentasse, ela não deixava eu me aproximar.
Acabei desistindo de puxar algum assunto com Claire e fiquei na cozinha após o almoço observando Sonya Karp organizar a louça na máquina de lavar. Ela foi extremamente gentil comigo desde o momento em que me viu. Devia beirar os trinta e cinco anos e era muito bonita, com cabelos castanho escuros e olhos verdes.
- Qual o problema da garota? – perguntei à cozinheira.
- Claire é sempre assim com babás novas. Pelo menos até ela decidir se gosta ou não da pessoa – Karp disse sorrindo de forma indulgente. – Se ela gostar de você, vai começar a se abrir.
- E se ela não gostar? – perguntei incerta de que queria saber a resposta.
- Então ela vai fazer da sua vida um inferno até você desistir – ela riu e me senti afundar na banqueta em que estava sentada. – Juro que teve babás que duraram apenas três dias.
- Que maravilha – falei desanimada. – E quanto tempo demora até Claire decidir?
Estava óbvio que eu seria a próxima a ser infernizada. Não tem chances de uma criança gostar de mim, eu sou péssima com elas. Simplesmente não as entendo.
- Pode ser algumas horas, pode ser algumas semanas. – A mulher deu de ombros. – Mas não se preocupe, tenho a impressão de que você vai ficar bem.
- Espero que sim – suspirei. – Eu realmente preciso desse trabalho ou terei que admitir para meus pais que sou um fracasso e voltar pra Pensilvânia.
- Isso só vai acontecer se você continuar entregando os pontos como está fazendo, Rose. Só dê uma chance pra ela te conhecer.
Só torcia para que Karp estivesse realmente certa.
Seguindo o seu conselho, fui para a sala onde a garota ainda assistia os tais jogos tentar mais uma vez.
- O que você está fazendo? – questionei me sentando ao lado de Claire.
- Vendo onde meu pai erra nas jogadas pra poder falar pra ele quando chegar – ela respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
- E ele gosta quando você faz isso?
- Você fica ridícula com essa roupa, sabia? – Claire me cortou, olhando de lado para mim.
- Sim, eu sei – murmurei. Está na cara que a garota não vai gostar de mim. Por que ainda estou insistindo? – Você não assiste, sei lá, desenhos?
- Eu tenho cara de uma bebezinha por acaso? – ela perguntou irritada. – Aposto que você vai ser igual a todas as outras babás e querer me obrigar a decorar o nome das princesas da Disney.
- Bem, você não precisa gostar das princesas necessariamente – retruquei pensativa. – Eu nunca gostei.
- Você estava vestida feito uma princesa ontem – Claire me acusou de forma petulante. – Duvido que não goste das princesas e não queira me vestir como uma.
- Não é só porque eu uso um vestido que me visto como uma princesa – devolvi no mesmo tom. Então era por isso que ela não gostava daquelas roupas lindas em seu armário? Por não querer parecer uma boneca ou coisa do tipo?
- Eu não acredito.
- Ok, vamos fazer o seguinte – falei após ter uma ideia. – Eu adoro assistir desenhos e eles nunca envolvem princesas. Posso selecionar os meus favoritos e nós vamos assistir juntas.
- Você não tem cara de quem gosta de desenhos – a menina disse erguendo uma sobrancelha da mesma forma que o pai.
- Ok, eu não gosto, mas posso procurar até achar um que nós duas vamos curtir? O que acha?
- Tudo bem – ela deu de ombros. – Amanhã nós podemos assistir um filme se você conseguir um.
- Ótimo – eu sorri já planejando pegar meu notebook para pesquisar algumas opções.
Finalmente acho que consegui algum mínimo avanço. Ela não estava mais me ignorando pelo menos.
Mas uma coisa Claire tinha total razão: Eu estou patética nessa roupa.
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