Sam se aproximou de maneira silenciosa no fim do dia, quando o sol já estava quase que inteiramente posto no horizonte. Bucky ainda encarava o lago de maneira concentrada, tendo a cabeça contra o tronco da árvore grande e centenária repleta de raízes às suas costas e mantendo os braços cruzados junto ao corpo.
Sem precisar realmente se virar para vê-lo, o ouviu se acomodar fingindo uma postura tranquila e ganhar tempo tomando o café que sempre preparava para o lanche. Não sabia o que ele queria, mas sabia que parecia exatamente o que não deveria: emburrado, como uma criança que não havia ganhado o brinquedo que queria. Na verdade, estava mais irritado pela recente situação com Wanda.
Se ignoravam mutuamente há dois dias, o que se mostrara uma tarefa um tanto quanto difícil levando em consideração a dimensão da cabana. A ruiva não aceitara que mexesse no vespeiro que aparentava ser os esqueletos de seu armário – ou do quarto de hóspedes – e Bucky não podia simplesmente exigir qualquer coisa. Efetivamente, não eram nada um do outro: a lealdade dela pertencia a Steve e a afinidade a Sam. Eles sempre sabiam o que dizer a ela, quando situações desse tipo surgiam.
Por outro lado, também se recusava a aceitar o que ela queria dá-lo como resposta. Ou seja, nada. Não seria suficiente, pois não estava blefando quando afirmara a ela que o rápido vislumbre daquela versão sobrenatural dela soara como um alarme em sua mente. Porquê Wanda Maximoff escolhera justamente aquele lugar para fazer aquilo que vinha fazendo e escondendo de todos, seja lá o que fosse?
- Acho que está na hora de ir para a casa, Bucky. – Sam finalmente decidiu falar tirando-o dos devaneios. – Sharon precisa de ajuda e... Nós dois não podemos fazer muita coisa por Wanda. Devíamos falar com Strange.
- O feiticeiro? – Perguntou com uma careta. Começava a detestar todas essas coisas esotéricas que não conhecia, mas o Falcão apenas deu de ombros e Bucky se voltou para ele, abaixando o tom. – Ouça, Wanda está escondendo alguma coisa.
- Sim, não é a grande descoberta da semana. – Evitou um revirar de olhos e se colocou de pé na deixa para que se afastassem um pouco mais da cabana. Como o esperado, Sam o seguiu com uma anuência. – Ela tem suas... Peculiaridades. Sabemos disso desde o início, mas...
- Sam, eu quero dizer algo grande. Algo que talvez nem tenhamos a capacidade de entender porque os poderes dela são...
Fez um gesto em expansão com ambas as mãos sem saber exatamente como colocar em palavras o que não poderia ser descrito. Ao mesmo tempo que a imagem que tinha em mente dela era sobrenatural e assustadora, como um demônio de mármore rodeado em escarlate, essa mesma nuance se quebrava na aura etérea que se formava em volta dela.
- Como tem tanta certeza disso? – Ele estacou se virando para o soldado.
Nada daquilo poderia ser descrito para Sam, chegou à conclusão sem precisar pensar muito. Ele tentaria deixá-la segura de seu próprio modo: garantiria que ela ficasse segura em relação ao governo americano; talvez tentasse fazê-la se sentir bem vinda e parte da família como fizera com o próprio Bucky, como vinha tentando fazer com Wanda desde que chegaram ali, apesar de todas as barreiras impostas por ela; ou, simplesmente, tentaria fazê-la parar devido ao que fizera em Westview.
- Ela não esconderia de nós com tanto afinco se fosse algo normal.
Voltou a caminhar com um dar de ombros e a única resposta evasiva que considera pensar, recebendo apenas o silêncio contemplativo por algum tempo, enquanto começavam a ladear o lago sem pressa.
- Ei, sei que nutre alguma empatia por Wanda porque acha que ela está sozinha, mas... – Inclinou a cabeça para o lado a fim de que ele não visse a confusão em suas feições. – Acho que ela está buscando um caminho. O que fez em Westview faz parte disso, assim como o que vêm fazendo aqui. Wanda precisa disso... Você não.
Nunca tinha pensado que sua interpretação dela fosse por esse prisma.
Se lembrava de Raynor afirmando com convicção o quanto insistia em se manter sozinho depois que as coisas se restabeleceram com o estalo de Stark. A verdade é que, além de saber que todos com quem poderia querer algum contato estavam mortos, também se acostumara a ser dessa forma. Não tinha o que oferecer a alguém além de traumas e Sam era a prova disso: o considerava um amigo e aprenderam a atuar juntos em campo, mas o Falcão o oferecia muito mais de uma amizade do que ele.
Não era assim com Steve, ponderou enquanto a ponta da bota brincava com as pedras soltas pelo caminho. Antes de tudo, se considerava um bom amigo, possuía algo autêntico a oferecer a alguém, pois não estava tão marcado pela HYDRA e todas aquelas décadas como Soldado Invernal. Por isso, lidar com a solidão se mostrava menos complicado do que levar isso à vida de outra pessoa. Escolhera ficar sozinho, assim como Wanda quando resolvera se isolar naquele lugar. O problema agora é que conseguia ver um objetivo estabelecido ali, embora não soubesse dizer qual.
- Do que Sharon precisa? – Escondeu as mãos nos bolsos ao perguntar.
- Er... – Franziu o cenho, vendo-o hesitar de maneira atípica. – Ela está encrencada com... Coisas não oficiais.
- Sharon retomou seu posto na S.H.I.E.L.D. – Sam concordou, procurando as palavras certas.
- Sim, mas ela estabeleceu uma vida em Madrepoor antes disso... – Em meio a um suspiro. – Olha, pensei que pudesse ficar aqui e se certificar que tudo ficasse bem com Wanda até a minha volta, mas não sei o que aconteceu para vocês estarem se estranhando e agora... Não acho que deve se comprometer com... Isso. Especialmente por sua mente, Bucky.
Wanda é um problema, era o que Sam evitava dizer. Não discordava nem um pouco disso, havia visto o problema, mas, por outro lado... Não tinha nada a perder. Sua mente tinha sido permanentemente danificada e sua vida era apenas vazia em praticamente todos os sentimentos. Não havia nada que pudesse ser um obstáculo para ficar e lidar como podia com o problema.
- E deixá-la sozinha aqui? – Torceu a boca de maneira desgostosa. – Não soa... correto.
- Ela sabe se virar melhor do que qualquer um de nós. – Apontou Sam de forma incisiva, fazendo-o anuir. A ruiva poderia, inclusive, machucá-lo com muita facilidade se realmente quisesse.
- Não é sobre isso, você sabe.
O negro o olhou de forma fixa por um instante, antes de revirar os olhos e balançar a cabeça parecendo um tanto incrédulo.
- Bucky… Entendo que queira consertar as coisas ao seu redor agora que... – Ele deu de ombros, sem precisar terminar. – Bem, Wanda não é uma dessas coisas, mas… Okay, se é o que quer.
Bucky não tinha certeza se encarava Wanda como algo a consertar nem se era responsável por isso, mas se algo acontecesse a ela ou, simplesmente, se algo como Westview ocorresse novamente após a deixarem ali, sabia que encararia as coisas de maneira diferente. Assim, Sam e ele se puseram a voltar para a cabana enquanto o outro informava que conversaria com Wanda.
Encarou a janela completamente fechada e cortinada do quarto de hóspedes se perguntando se o amigo se sentiria tão confortável em deixar Wanda sozinha ali após ter visto o que viu, mas, por algum motivo, ciente de que aquilo, seja lá o que fosse, não era um segredo seu para contar.
Por mais que não compreendesse e em certo nível temesse aquela versão do que ela poderia ser, ainda se tratava da intimidade e privacidade de Wanda. Como ela afirmara, era o intruso ali e, até então, estava apenas anuindo à presença não bem-vinda deles, não acolhendo-os.
Quando chegaram, Sam se encaminhou diretamente à porta da ruiva, batendo antes de avisar que precisavam conversar. Notou que ela ficava mais à vontade na presença do Falcão quando abriu e simplesmente permitiu a entrada e, por um instante, sentado em uma das poltronas baixas que rodeavam a lareira, encarou a mochila fechada que servia como mala.
Seria mais fácil ir com Sam e lidar com o que quer que fosse o problema de Sharon Carter. Ela não recusaria e, desse jeito, não ficaria responsável pela garota potencialmente perigosa e mentalmente instável que era Wanda, mas também sabia que era o correto: Steve não desistiria dela. Na verdade, se seu amigo estivesse ali, talvez Westview jamais houvesse acontecido. Ele conseguia colocar Wanda no lugar. Assim como Visão, pelo o que sabia, mas o robô simplesmente sumira depois de tudo.
Se colocou de pé, percorrendo um caminho invisível e ansioso pelo piso de madeira envernizada da cabana. Não compreendia a realidade de Wanda e seus poderes, apenas os traumas relacionados a HYDRA. Para Bucky, esse era o fio mais palpável entre eles e, se realmente ficaria, precisava que isso mudasse. Em suas missões como Soldado Invernal, costumava conhecer muito bem o terreno em que atuaria e o mínimo sobre a a vida de suas vítimas para que pudesse encurralá-las. Assim, se sentia totalmente no controle e, ali, sabia que não estaria enquanto não conhecesse o que rodeava Wanda, concluiu encarando a brisa rodeando as copas das árvores centenárias dispostas ao pé da montanha.
Assim, muito mais tarde, observavam Sam colocar a mochila em um dos ombros e fechar a porta do carro que Wanda mantinha no estacionamento da Estação de Trem que o levaria a Praga para pegar um avião. Ela pedira que ele deixasse o mínimo possível de pistas de que estivera ali e, por isso, não seguiria a nenhum destino importante a partir de uma rota sokoviana.
- Okay… Não façam nenhuma besteira enquanto estiver fora. Volto assim que possível.
Ele puxou uma Wanda emburrada para abraçá-la pelos ombros como um irmão mais velho, o que a fez apertar os lábios para não sorrir, enquanto o Falcão lhe estendia a mão em despedida.
- Nos vemos.
O sol já se punha quando, encostado ao carro com as mãos guardadas nos bolsos das calças, o observou subir as escadas da Estação, pois seu trem partiria em cinco minutos, segundo o painel de chamadas daquele dia. Com uma rápida olhada, decorou todos os horários e se virou para a jovem, que já o encarava seriamente de braços cruzados.
- Eu não preciso de cuidados especiais, Bucky. – Ao sair do quarto após a breve conversa com Sam, o fitara de maneira extremamente contrariada e assim ficara por todo o caminho até Tanier. Apenas a olhou sob o boné, deixando que chegasse às próprias conclusões em um bufar quase infantil antes de se encaminhar à porta do motorista. – Deveria ter ouvido a bruxa.
“É, provavelmente seria melhor”, pensou, esperando que ela não simplesmente sentisse ou ouvisse o que se passava em sua mente como havia acontecido ao sonho, enquanto se sentava no banco do passageiro e puxava o cinto de segurança observando ela manobrar o carro.
As mãos se encontravam mais trêmulas e incertas que o normal, notou. Quis perguntar o motivo, mas Wanda claramente não estava aberta a qualquer diálogo e a viagem seguiu em silêncio por todo o caminho, até anoitecer enquanto rodeavam o sopé da montanha.
Apesar da tensão totalmente instalada dentro do carro, cortada somente pela música baixa do rádio que ela ligara após um tempo, a quietude da viagem terminou no momento em que Wanda, sem qualquer motivo aparente, afundou o pé no freio parando tão abruptamente que precisou se apoiar no painel, apesar do cinto.
- O que houve?! – Se virou para vê-la arfar pesadamente, encarando a rodovia vazia à frente, iluminada somente pelos faróis do carro. Parecia chocada e assustada, percebeu quando se voltou a ele. O painel e demais botões do carro iluminavam o rosto alvo e refletiam o brilho confuso nos olhos esverdeados. – Wanda...?
- Você não viu?
- Vi o quê?
Perguntou de volta, sem entender. Wanda novamente percorreu a estrada vazia com os olhos, apertando a mandíbula em tensão e a mão em torno do volante.
- Aquela mulher... – A viu retirar o cinto, num impulso, e dobrar o braço para alcançar o puxador da porta. Entretanto, instintivamente esticou o próprio braço sobre ela para manter a porta no lugar.
- Você não sabe o que está lá fora. – Ela não pareceu se importar, pois estava perturbada demais pelo que vira e era assim que o encarava.
- Havia uma...
- Uma pessoa? – Testou quando ela decidiu não terminar levando a mão trêmula à testa, parecendo tentar afastar a própria confusão.
- Eu não imaginei, okay? – Wanda declarou duramente, tentando respirar fundo apesar das repentinas lágrimas nos olhos.
- Certo. – Anuiu suavemente, soltando a porta e se afastando ao concluir que ela não faria uma besteira. Com um olhar analisador à estrada, tentou enxergar alguma coisa além da escuridão após o alcance dos faróis, mas não havia nada além de silêncio, vegetação natural e... Um cenário apropriado para a mente criar peças. – Quer que eu dirija?
- Não.
Decidiu de maneira abrupta, retomando a postura ao se ajeitar no banco e se voltar para a estrada, ligando o carro novamente. Apertava os lábios e parecia procurar algo invisível na escuridão. Talvez algo que apenas alguém como ela, concentrada em sua própria mente e realidade pudesse enxergar, ponderou ao ver o resquício escarlate nos olhos claros.
De alguma forma, enquanto dirigia, Wanda fazia uso de seus poderes e, apesar de parecer mais cuidadosa na direção, também parecia mais distante, o que só mudou quando estacionou o carro na garagem aos fundos da cabana e fechou os olhos apoiando a testa no volante conseguindo respirar mais aliviada.
Os ombros baixos e o inspirar fundo denunciavam o cansaço evidente, que, tinha certeza, não estava relacionado somente à viagem em si – ela parecia sempre no limite da exaustão e provavelmente estava usando seus poderes o tempo todo.
- Você está bem?
Perguntou baixo, tentando não a perturbar muito. Então, Wanda se voltou a ele ainda apoiando o rosto no volante, de maneira cansada, a julgar pela falta de vida nos olhos claros e os ombros baixos.
- Por que você ficou? – Ela perguntou apenas num murmúrio baixo e pesado pelo sotaque. – Porque realmente ficou?
A questão era mais inesperada do que julgara a princípio. Porém, parte da verdade se tornava ainda mais óbvia enquanto a olhava e ouvia o silêncio resistente pairando ao redor, assim como entre eles. Podia ficar, pois era o certo a se fazer, mas também porque não tinha para onde ir.
- Não há nenhum outro lugar em que precise estar agora.
Ninguém precisava dele, essa era a maior verdade que podia conceder a ela sobre si mesmo. Assim como ela, estava sozinho em sua própria realidade e tinha consciência de como esse fato poderia soar esmagador, às vezes. Entretanto, não havia necessidade verbalizar tudo isso a julgar pela forma como ela piscou pesadamente e apenas assentiu sem prolongar o assunto, num entendimento silencioso e respeitoso característico da ruiva.
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