Apesar de ser um pouco estranho, o livro que Pandora encontrou era de fato fascinante. Tinha vários tutoriais esquisitos, um perfeito livro de feitiços que qualquer bruxo saído de um livro de fantasia adoraria ter. Porém, mesmo que ela tivesse algo interessante para ler, não significava que George havia deixado de ser intragável.
Pandora sempre tentava diferir dele, não apenas aquela semana, mas para a vida inteira. Ela é doce e atenciosa, Pandora achava que se continuasse a fazer o papel da Criada Pacífica, por mais que não apreciasse, em algum momento George veria seu valor e talvez – só talvez – aprovasse que ela saísse para conhecer ao menos o bairro em que moravam.
A mais pura inocência. George nunca lhe seria afetuoso, ele nunca teve a ambição de sequer conhecê-la, quanto mais de criá-la.
Mas mesmo com seu feitio amável, Pandora se sentia mais rebelde. Ela seguia com as tarefas diárias e sua leitura, mas continuar enjaulada naquela casa começou a chateá-la. Só o que Pandora queria era dar uma volta, mesmo que fosse por perto da casa, ela desejava ver e conhecer pessoas, escutar música, dançar e conhecer tudo aquilo que só conheceu pelos livros e da pouca vontade de George em contá-la o que era.
Diferente dos outros dias, Pandora se acomodou na sala para admirar o jardim da vizinha que ostentava um conjunto de vasos com lírios e margaridas muito bem cuidadas. As flores eram brancas e se destacavam sob a luz da lua cheia que reinava enorme no céu, circundada por inúmeras estrelas. Aquela era uma linda vista, apesar de repetitiva.
— Eu vou endoidar aqui. – resmungou Pandora, chateada e agarrada ao livro.
Em meio ao aborrecimento, Pandora dormiu ao sofá e sonhou... sonhou com sua liberdade, com um casal que ela deduziu serem seus pais, ambos lhe abraçando e lhe enchendo de carinho. Esse era o desejo mais íntimo e desesperado de Pandora. Isso a acalmava, dava uma sensação de quietude e de paz, mas que, como sempre, não resistia muito.
A forma violenta como o livro foi arrancado de suas mãos fez Pandora acordar assustada e quando abriu os olhos, encontrou um George bufando como um touro e vermelho de fúria. Não houve tempo hábil para se desculpar ou fugir, pois, logo ele começou a agredi-la no rosto com o livro.
— Por favor, não! Pare! Não! – clamava Pandora, tentando fugir dos ataques.
— Onde o encontrou? Onde? – ele perguntou, ignorando as súplicas da sobrinha e enveredava a bater nela, mesmo com Pandora tentando evitar seus golpes. – O que você fez? Você tentou algo?
— Não! Eu só li! Eu o achei no escritório e -
A resposta de Pandora provocou ainda mais raiva em George, fazendo com que ele a agredisse com mais força, impedindo que ela prosseguisse a falar e só pudesse gemer de dor e tentar fugir.
— Agora além de ser um encosto também ficou surda? Quantas vezes eu mandei não pegar nada do meu escritório? – Perguntou ele sem parar com o ataque e quando ela tentou fugir novamente, George a empurrou em direção à parede e atirou um soco no ombro dela. – Nem pense em fugir! Eu vou te ensinar a nunca mais mexer nas minhas coisas!
Pandora continuava implorando para o fim da agressão, mas George não deu atenção. Ele persistia em bater nela, furioso e despreocupado em conter sua força. Na verdade, Pandora notou que ele estava batendo com mais força e isso a assustou ainda mais, sem falar na confusão em sua cabeça do porquê seu tio estava com tanta raiva dela ler um livro fantasioso.
Num momento de coragem, Pandora chutou a barriga de George que, pego de surpresa, perdeu o equilíbrio e caiu sentado na poltrona. Com aquela brecha, Pandora tentou escapulir, a fim de se trancar no porão, mas ele foi mais veloz e a alcançou, pegando-a pelo cabelo e a levou para cozinha. Ele continuava a agredi-la com o livro, mas Pandora estava decidida a resistir. Não seria mais tão inerte.
Aos gritos e safanões, Pandora conseguiu se livrar do agarre de George em seu cabelo, mesmo que isso lhe rendesse a perda de alguns tufos. Ela o prendeu contra parede com seu braço direito contra o pescoço dele e, por alguma razão além do conhecimento de Pandora, George não parecia ter forças para se soltar.
— Me... S-Solta... inútil... Aberração! – ordenou George.
Mesmo com dificuldade em falar com a pressão do braço da sobrinha em seu pescoço, ele continuava tentando se soltar, sem êxito.
— Por que é tão cruel comigo? O que eu te fiz para ter tanta raiva de mim? – Pandora tinha mágoa em sua voz, exausta de todos os anos de ofensas e agressões.
— Nasceu! – a resposta franca de George a pegou de surpresa, a fazendo perder força no braço.
Aproveitando do choque da menina, ele a empurrou para se livrar dela.
— Você... – ele começou a caminhar até ela, apontando para Pandora de forma ameaçadora e ela voltou a acuar. – ... Representa tudo o que eu mais odeio. Me forçaram a ficar com você, quando, na verdade, nem queria saber que existia. – acrescentou ele, caçando a sobrinha que dava agora a volta na mesa de jantar.
— Se não queria, porque aceitou? – Perguntou Pandora, seus olhos ardendo e enchendo de lágrimas. – Eu não entendo!
— Porque fui intimidado pela maldita matilha do seu pai! Se eu não ficasse com você ou deixasse que as bruxas fizessem o que quisessem contigo, eu perderia minha vida. – ele respondeu, aos gritos, deixando Pandora desorientada. – Ainda assim eu a perdi, de um jeito ou de outro!
Decididamente George estava perturbando, era o que Pandora pensava. Matilha, bruxas... Era tudo coisa da cabeça dele, mas vendo-o surtar daquele jeito a assustava e de alguma forma ela sabia que algo de ruim aconteceria aquela noite.
— Do que está falando? – ela perguntou, ainda se afastando e usando os móveis da casa como um obstáculo entre os dois.
— Não seja estúpida! Bruxas e lobisomens! E de híbridos desprezíveis como você! – a informação a fez Pandora parar de fugir e olhar confusa para o tio. – Mas isso não importa, não mais! Eu cansei de olhar para sua cara, cansei da sua voz! Cansei de você! Vou me livrar desse tormento de uma vez por todas.
Com medo do que estava por encontrar, Pandora viu George levantar a própria mão, mas ao invés de agredi-la, ele fez um movimento diferente em direção à porta de entrada. Um idioma diferente saiu da boca dele e uma estranha sensação de liberdade recaiu sobre ela, mesmo ainda estando em casa.
Quando a atenção de George recaiu sobre Pandora, o medo voltou a dominá-la. Ele parecia ainda mais ameaçador, pronto para fazer mais do que apenas bater. George voltou a tentar alcançá-la e quando conseguiu, por Pandora estar paralisada de terror, voltou a agredi-la sem piedade. O corpo de Pandora não aguentava mais, seus dentes pareciam moles, o sangue tinha um gosto ferroso medonho na boca, além das costas magoadas, possivelmente algum osso havia se quebrado ali.
Por puro reflexo ela reagiu. Ser o saco de pancadas do tio estava fora de cogitação e usando da força que mal sabia ter, ela retorquiu as inúmeras surras que havia recebido sem retrucar por toda a sua vida. Ela socou, socou, socou e socou. George caiu no chão e Pandora foi para cima dele sem parar de bater, por mais que ele tentasse se livrar.
Pandora gritava a cada soco que dava e deixava sua raiva sair. George gradualmente foi perdendo a força na tentativa de se safar até que parou. Demorou quase trinta minutos para que Pandora se atentasse que George não mais reagia e quando finalmente notou, tentou provocar alguma reação, mas ele continuava imóvel, com um olhar vidrado e com o rosto quase desfigurado.
Apavorada, Pandora saiu de cima do tio, enojada com o que havia acabado de fazer. Ela havia matado George? Como pode perder o controle daquele jeito? O que seria dela agora que George estava morto?
Mas mesmo com tantas perguntas sem respostas, Pandora não teve tempo para pensar nelas. Tão logo ela deu um passo para trás para se afastar do corpo, uma dor alucinante lhe atingiu o tornozelo e ela caiu no chão, gritando de dor. Seus tornozelos haviam se quebrado sozinhos e isso se repetiu com todos os ossos de seu corpo, que logo foram se remodelando em outro formato. As roupas e o colar que Pandora ganhou de George foram ao chão em simultâneo, uma pelagem cinzenta crescia no lugar da pele e seus olhos mudaram de castanhos para amarelos.
Seus gritos cessaram quando seu corpo humano deu lugar ao corpo de uma loba cinzenta e o que saiu de sua garganta daquela vez foi um forte e alto uivo que ecoou pela casa.
Pandora se aventurou para fora da casa pela primeira vez desde que foi levada para ficar com seu tio. Ela estava pávida, afinal havia se transformado em um animal quadrúpede, mas a sensação de liberdade que sentia era extraordinária. Seguindo seus instintos, Pandora correu por entre as ruas vazias em direção ao pântano.
Se aquela era ou não a melhor solução, Pandora não sabia, mas ao menos lá ninguém a encontraria. Era o que ela desejava.
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