"Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata"
(A paixão segundo G.H - Clarice Lispector).
- É ela.
- Ela quem, Helô? – perguntou Yone, assustada pela expressão da delegada.
A mente de Helô havia voltado alguns anos atrás, era difícil de pensar no aqui e no agora, focar em algo que fosse ao menos lhe tranquilizar. Não fazia sentido. Stenio não fazia sentido.
Yone ficou observando a maneira como a delegada encarava a flor à sua frente e, saindo de perto, foi até a sua mesa ligar para Ricardo como ela havia pedido. Helô havia saído da federal, mas os laços que ela havia construído por lá, permaneciam. Eventualmente, eles ajudavam em alguma investigação e com informações, eles ainda se davam bem.
- Delegada? – ela chamou, puxando a atenção da policial para si depois de um tempo – Ricardo.
- Fala, Ricardo! – ela tentou parecer calma, mas sabia que a voz estava travando.
- Tá tudo bem, Helô? – não era normal Helô demonstrar qualquer nervosismo, algo estava fora do lugar.
Nada estava bem, pensou ela. E a culpa é minha.
- Você se lembra do Stenio – era óbvio que ele se lembraria, mas julgou melhor perguntar – meu ex-marido?
- Claro que eu me lembro do Stenio, Helô – Ricardo parecia confuso – algum problema em algum caso? Você pediu uns papéis para a gente recentemente, né?
- Pedi, mas não resolveu – ela começou a explicar – Ele foi sequestrado faz três dias.
- Helô –
- Hoje pela manhã chegou um pacote pra mim na delegacia – ela interrompeu, e engoliu seco para seguir – tinha uma rosa vermelha dentro.
A delegada apenas ouvia a respiração de Ricardo do outro lado da linha, como se ele não soubesse bem o que dizer. E ela entendia, também não sabia.
- Eu vou pegar tudo que a gente tem e chego na sua delegacia o mais rápido possível – era melhor ser prático nessas horas – ela só fez contato agora?
- Só – a delegada respondeu apreensiva – não faz sentido, Ricardo.
- Eu chegando, a gente conversa – Ricardo finalizou desligando o telefone antes que ela pudesse responder.
- Yone, reúne todo mundo e prepara uma sala maior – ela instruiu a colega assim que desligou o telefone – Eu e o Ricardo vamos precisar inteirar vocês de tudo.
Quando Yone saiu da sala e a delegada ficou finalmente sozinha, ela apoiou a cabeça na mesa tentando pensar, tentando encontrar algum sentido. Olhando para a mesa, ela viu o gravador perto da rosa vermelha.
Ela sabia que precisava escutar o que quer que estivesse naquele gravador, mas o medo era paralisante. Ela tinha medo do conteúdo, medo de saber o que poderia estar acontecendo com o advogado.
Pensar no que poderia já ter acontecido.
Segurando o gravador nas mãos, ela respirou fundo e deu finalmente play.
“Quanto tempo, Helô!
A voz do outro lado do aparelho a fez arrepiar da cabeça aos pés.
Não vou chamar de Doutora Delegada, já passamos disso, né?!
Acho que não se pode confiar em ninguém, não é mesmo? Eu confiei em você. Eu acreditei em você! E você me decepcionou.
Você não é diferente dos outros, Heloísa.
A delegada podia jurar que estava escutando algo mais ao fundo, sem conseguir compreender.
Eu quero que você solte ela. Eu quero ela livre.
Ou seu ex-marido, quer dizer, é ex-marido mesmo, delegada? Vai ser só mais um nome na lista”.
Ela a havia decepcionado? Ela havia confiado na delegada? O que Stenio tinha a ver com tudo isso?
Ela apoiou a cabeça na mesa, engolindo a vontade de chorar.
Isso não podia estar acontecendo.
***
Helô esperou, pelo que pareceram horas, a chegada de Ricardo, apreensiva e sem querer explicar para os atuais colegas toda a história antes da chegada do amigo e delegado. Quando ele chegou, não estava sozinho. Ricardo entrou com o que parecia ser toda a cavalaria da Polícia Federal, ocupando todos os espaços da, relativamente, pequena delegacia de crimes virtuais.
- Helô – ele disse já se aproximando puxando a antiga amiga para um abraço – eu sinto muito.
- Obrigada pela ajuda, Ricardo – ela respondeu sincera, soltando-o do abraço logo em seguida – eu queria te mostrar uma coisa na minha sala antes, pode ser?
- Claro – ele olhou ao redor perdido e ela sorriu de leve pela primeira vez em muito tempo – me mostra o caminho, delegada.
Ela apontou o caminho com a mão e eles seguiram juntos pelo corredor fechando a porta atrás deles.
- Chegou hoje – Helô apontou para a caixa que continha a rosa e o gravador – foi um choque.
- Já ouviu o que tem no gravador? – ele perguntou olhando as coisas, mas sem encontrar nada.
- Já – o nervosismo claro na voz dela – eu vou dar play pra você ouvir.
Ricardo parecia ouvir a mensagem de maneira atenta, como ela havia feito, procurando as mensagens subliminares que pudessem ajudar.
- É pessoal – ele olhou para Helô que acenou com a cabeça – dessa vez é pessoal.
- Mas porque o Stenio? – Helô olhou para Ricardo, tentando criar uma linha de raciocínio – Se meu marido é o Rafael, por que o Stenio? Por que tentar me atingir com ele?
- Não sei – O policial respondeu sincero - mas a gente vai descobrir.
- A gente precisa explicar tudo para o pessoal daqui – ela pediu e ele apenas acenou com a cabeça – A Yone, minha parceira, ia reservar uma sala maior pra gente.
Enquanto eles caminhavam até lá, a delegada sentiu o celular vibrar pela milésima vez naquela manhã. Havia muitas ligações de Rafael e, ainda mais de Drika, quem ligava para ela agora.
- Ela já sabe? – perguntou o policial com tristeza, olhando o nome que havia aparecido na tela.
- Não, ainda não – ela desligou o aparelho e olhou para o colega – e como eu conto isso pra ela, Ricardo?
- Drika é mais forte do que você acha, Helô – ele segurou o braço da amiga, tentando dar algum apoio – você vai saber na hora certa o jeito certo de contar.
Quando chegaram até a sala de reuniões todos estavam a postos, esperando os dois entrarem, o clima de tensão pesava no ar. Ela era a líder, precisava focar.
- Esse é o delegado Ricardo da Polícia Federal – ela apresentou o amigo aos demais policiais – A PF vai nos ajudar nesse caso em específico e eu espero 100% de cooperação entre as duas equipes.
Ela apontou para que Ricardo pudesse tomar a palavra.
- Vocês estão investigando um caso de sequestro– ele começou cauteloso – mas a história teve outros desdobramentos recentes.
Ele começou a contar, mas não pareceu justo. Essa função deveria caber a Helô. O caso agora era dela, o anterior também havia sido. Ele olhou para a delegada, indicando que ela deveria assumir a liderança que era dela por direito.
Helô era grata, mas tinha dúvidas se conseguiria falar nesse momento.
- Acredito que seja de conhecimento geral que eu era delegada da Polícia Federal até quatro anos atrás. Meu último caso ocupando esse cargo envolvia duas irmãs: Bianca e Bárbara. – Ela começou a recapitular a história – elas juntas mataram conhecidamente 4 homens, podendo o número ser maior sem nosso conhecimento.
Ela fez uma pausa observando as reações dos policiais na sala. Não era todo dia que se ouvia sobre assassinas seriais mulheres, ela se lembrava do mesmo choque em seu rosto na época das investigações.
- A primeira vítima delas foi o próprio pai, onde segundo Bianca, que se encontra sob custódia foi como tudo começou – ela mostrou as fotos através de um projetor na sala de reuniões – aquela velha história de um ciclo de violência: pai agressivo batia tanto na mãe quanto nas filhas com frequência, e os abusos se estenderam por anos. Até a morte da mãe das meninas, onde tudo mudou de figura.
A delegada ficou observando a reação das pessoas na sala de reuniões, alguns pareciam em choque, outros pareciam surpresos. Ricardo assumiu a narrativa depois de um tempo de silêncio de Heloísa.
- O laudo da polícia foi morte acidental, mas a meninas acreditavam que o pai havia sido o responsável – Ele seguiu a explicação, mostrando mais imagens da cena do crime - Segundo Bianca, a justiça foi falha com elas, então, elas resolveram com as próprias mãos, assassinando o próprio pai . Ela descreveu algo como “foi como finalmente ter entendido minha na terra acabar com homens feito o meu pai”,
Helô ainda conseguia sentir agora o mesmo arrepio no corpo que havia sentido na época da prisão. Foi para ela que Bianca havia confessado seus crimes, admitido suas vítimas, culpado o sistema. E Helô não podia negar, o sistema havia falhado com elas, como falhava diariamente com tantas outras mulheres.
- Bianca trabalhava como professora numa escola primária – a delegada continuou de onde o colega havia parado - onde prestava atenção a cada uma das crianças. Assim que elas percebiam um possível alvo, elas atraiam a vítima. Bárbara começava então o flerte em redes sociais – ela começou a exibir prints das conversas que eles haviam coletado na época - até conseguir marcar um encontro com o homem. O assassinato acontecia durante os jantares, com veneno na comida.
- A assinatura – Ricardo interveio com novas informações - era uma simples rosa vermelha, colocada sobre os corpos.
Esse caso havia mudado drasticamente a vida de Helô. Ela não havia escolhido esse caso para ser seu último, mas tudo acabou acontecendo ao mesmo tempo, abrindo um caminho que ela até então, não estava esperando.
Havia uma Helô antes e outra depois das gêmeas.
- Nós iniciamos a abordagem de investigação junto a delegacia de crimes virtuais, tentando acesso aos aplicativos de mensagens – ela continuou explicando, focando sua atenção no presente - Conseguimos interceptar um dos encontros, onde Bianca foi presa – ela mostrou fotos da irmã que estava sob custódia - Nunca conseguimos pegar Bárbara, e desde a prisão de Bianca, ela sumiu do mapa.
- Até agora – interrompeu Ricardo, atraindo a atração dos policiais da sala.
Helô sentiu um aperto de Ricardo em seu braço, tentando transmitir força para que ela conseguisse continuar.
- O nome da possível vítima é Ste... – a voz dela falhou, era doloroso pensar nele como vítima - Stenio Alencar, advogado criminalista – ela fez uma pausa, olhando ao redor - Meu ex-marido. Stenio foge dos perfis das vítimas. Não é violento, nem ausente e nem agressivo com a filha. É fora do padrão.
Ela precisou fechar os olhos. Ele não fazia parte de um padrão, ele não deveria estar no meio disso. Ele deveria estar em casa, brincando com Liz e Lucas, implicando com Drika, sendo o pai e o avô carinhoso que ele sempre havia sido.
Stenio amava como ninguém. Ele amava forte, sem medo de mostrar.
Ela admirava isso nele, quase invejava.
Tudo estava errado.
- Acreditamos agora em motivações pessoais – Ricardo começou a explicar – Hoje mais cedo, a delegada Heloísa recebeu uma rosa vermelha, que acreditamos ser de Bárbara – ele mostrou uma foto da caixa com gravador e a rosa, que Helô nem se lembrava de ter sido tirada - Já que ela foi a responsável pela prisão de Bianca.
Ela jamais se arrependeria de ter quase fechado esse caso, mas ao ouvir agora a frase “motivação pessoal” atrelada ao seu nome, fazia seu estômago revirar. Mas ela precisava focar, precisava ser A delegada e não Heloísa Sampaio. Era isso que traria Stenio de volta.
- Ela alterou todo o modus operandi – Helô começou a explicar, ainda com a voz trêmula –A flor que encontrávamos no corpo, foi enviada para nós. Não houve um assassinato, veio um aviso. Ela está agindo fora do padrão delas.
- O que faz dela perigosa – Ricardo ressaltou - Nós não sabemos como ela pode agir. Em troca de Stenio ela exige a soltura da irmã que no momento enfrenta uma pena de 40 anos de reclusão – ele fez sinal para que Yone começasse a distribuir os papéis para os policiais ali presentes - Esses são todos os papéis relacionados ao caso e eu quero vocês com cada detalhe sobre isso na cabeça. Não deixem passar nada.
Helô deixou Ricardo encerrar a reunião e dispensar os policiais e se sentou na cadeira, esperando que todos saíssem. Ela se sentia exausta emocionalmente e fisicamente, sem saber muito bem o que fazer agora. A delegada não percebeu Ricardo se sentando ao lado dela.
- Helô – ele disse baixinho, ainda assim não conseguiu evitar o pulo da delegada - e você vai pra casa.
- Não – ela disse firme, balançando a cabeça negativamente.
- Confia em mim? - Ricardo pediu, segurando a mão da amiga na dele - Vai pra casa e conversa com a Drika. Eu vou te avisar qualquer movimentação – ele queria ajudar Helô, mas ele também a conhecia de anos, esse caso pegava em pontos sensíveis - Eu já ordenei escolta policial para a casa da sua filha e para a sua também. Você acha necessário pra esposa do Stenio?
Ela pareceu refletir por um momento, embora apenas pensar em Julia ainda a irritasse.
- Eles usaram o Stenio pra me atingir, acho que a lógica seria a mesma. - e ela disse por fim, mas não queria arriscar - Mas o Stenio já está nisso por minha causa, eu não ia me perdoar se algo acontecesse com mais alguém.
- Não é sua culpa – O policial não queria precisar afirmar o óbvio, mas a colega parecia estar mergulhada nesse sentimento agora.
- Não é o que diz a voz no gravador – Heloísa respondeu categórica, sorrindo triste.
- Você tá levando em consideração a mente de uma psicopata, Heloísa. – Ele repetiu firme – Vai pra casa, eu te aviso de qualquer coisa.
- Eu vou levar tudo do caso comigo, tentar pensar em algo – a delegada respondeu se levantando, pegando os papéis da mesa. - Coloca uma escolta pra Julia, por favor?
Ricardo acenou um sim e quando eles caminhavam até a porta, Yone chegou até eles.
- A gente isolou melhor o som do gravador, querem ouvir?
Os três caminharam em silêncio pelo corredor, até chegarem na sala onde a gravação estava sendo analisada.
- Eu vou reproduzir pra vocês ouvirem – o especialista disse, dando play novamente.
“Quanto tempo, Helô!"
Ela sentiria esse aperto no peito toda vez que escutasse isso?
À medida que a gravação seguia, Helô começou a perceber algo a mais. Antes ela achou que poderia ser algo da cabeça dela, mas agora estava mais claro.
- Tem alguma coisa no fundo, não tem? – Disse Ricardo, olhando para ela que confirmou com a cabeça.
- Tem como isolar essa voz que parece ter no fundo? – Ela perguntou ansiosa - Parece a voz do Stenio.
- Eu posso tentar – o homem disse, mexendo no som logo em seguida.
Foi depois de um tempo que ele deu play novamente, deixando a voz – ainda que distante – mais clara.
“Se você quiser dinheiro, eu pago. Não adianta meter a Helô nisso... A gente não se vê faz tempo, ela não vai nem reparar que eu sumi. Eu não conto pra ninguém”
Ele ficou em silêncio um tempo antes de continuar.
“Não vai ter ninguém em casa, nem o Cláudio, nem o Rodrigo e nem as Marias…”
“Senti um negócio do meu pé.... NÃO É BARATA NÃO, NÉ?”
Helô se pegou rindo de leve pela primeira vez, ouvindo finalmente a voz dele. Distante, tremida, com medo. Mas ainda dele. Ainda que ela não tivesse entendido absolutamente nada do que ele quis dizer. Ele estaria delirando?
- Quem são essas pessoas? – Perguntou Ricardo confuso, olhando para Helô.
- Não sei – ela respondeu igualmente confusa - Eu não faço ideia.
- Ele deveria estar só despistando, tentando ganhar algum tempo – Ricardo começou a conjecturar.
- Me manda uma cópia disso, por favor? - A delegada pediu, se sentindo perdida - Eu vou continuar estudando o caso - olhando para o antigo colega, ela apenas reforçou - Ricardo, qualquer novidade, por favor me avisa.
- Você vai ser a primeira a saber - ele a acalmou antes dela se retirar da sala.
Ela saiu da delegacia se sentindo quase sufocada, todos os olhares sendo direcionados à ela quase que com pena. Alguns com clara admiração, outros com medo de cruzar alguma linha. Ela não deu atenção a nenhum deles, indo até o carro em silêncio.
O silêncio ali dentro era reconfortante, um único ponto de paz no meio do caos que ela vivia, mas iria durar pouco.
Pegando o celular, ela digitou o número da filha. Drika não esperou nem mesmo dois toques para atender.
- Mãe? -ela sentia o nervosismo na voz da filha.
- Meu amor, você pode ir lá em casa agora? – ela pediu, soando meio incerta.
- Já tô aqui – Ela não conseguia pensar em mais nada além do pai.
- Tá sozinha? -não era uma conversa que ela queria que as crianças escutassem.
- Não- não demorou para a delegada ouvir risadas ao fundo -Liz tá aqui comigo.
- Eu tô indo pra aí – ela respondeu finalizando a ligação.
***
As risadas de Liz que enchiam a casa da delegada indicavam que alguém, no meio desse turbilhão, estava se divertindo. Ela odiava ser a pessoa que chegaria com as notícias difíceis quebrando a bolha de amor e afeto que a neta e a filha estavam envoltas agora.
Ela abriu a porta, mas não teve coragem de dizer uma única palavra. Drika fazia cócegas em Liz que estava histérica rindo deitada no sofá, ela ficou admirando a cena por um tempo, sem querer interromper a mágica do momento. Até Drika perceber sua presença.
- Oi, mãe! – ela disse, ficando mais séria, se sentando no sofá, deixando Liz livre para fazer o que ela queria: correr até a avó
- Oi, vovó! – a pequena disse correndo até ela, pulando nos braços que sempre estariam abertos para pegá-la no colo.
- Oi, meu amor. – ela ficou um tempo abraçada com Liz, até colocá-la no chão, se abaixando na altura da neta - Você pode ir assistir alguma coisa no quarto da vovó enquanto eu converso com a mamãe, por favor?
- Coisa de adulto? – Liz perguntou triste, odiava coisas de adulto.
- Coisa de adulto – a avó confirmou, enquanto fazia carinho no cabelo da neta – mas não vai demorar.
Liz caminhava até o quarto da avó com o tablet na mão, até ouvir a mãe a chamando de volta.
- Nada de escutar atrás da porta, mocinha – Drika alertou ganhando um sorriso safado da filha.
- Prometo de dedinho – Liz disse, mostrando o dedinho para a mãe e indo correndo para o quarto em seguida.
Helô caminhou até o sofá e se sentou ao lado da filha, elas esperaram ouvir barulhos de desenho no quarto – Liz sempre assistia mais alto do que deveria – para finalmente começarem a falar.
- Mãe, o que que tá acontecendo com meu pai? – a filha perguntou diretamente, antes que Helô tivesse a chance de pensar no que dizer.
Helô segurou a mão da filha na sua. Elas haviam percorrido um longo caminho até onde estavam agora e embora Stenio estivesse em muitas das memórias ruins da delegada, ele também estava em muitas das melhores. Stenio era a razão de Drika existir. E a delegada não era ingênua, ela sabia que o laço dela com o pai era, ainda, mais forte do que o laço que elas compartilhavam. Stenio era tudo para a filha, assim como ela era tudo para ele.
Ela poderia tentar suavizar, tentar fazer parecer leve. Mas, no fim, não havia jeito fácil de dizer o que ela precisava.
- Drika – ela disse o mais calma que podia - seu pai desapareceu.
O barulho de uma xícara caindo assustou as duas mulheres, que deram de cara com Creusa que saia da cozinha.
- Minha nossa senhora – a empregada disse, colocando a mão no peito.
- Ele o que?- Drika perguntou assustada, mais alto do que gostaria.
- Gente, a Liz tá no quarto, fala baixo – ela implorou, esticando a mão para Creusa, esperando-a se sentar no sofá. - Eu fiquei sabendo faz pouco tempo, e a gente não sabe muita coisa. – ela sentiu a filha apertando a mão dela- Eu mobilizei toda a força policial pra investigar e tá todo mundo focado nisso.
- Será que ele tá bem, Donelô?- Creusa perguntou preocupada, a voz embargada em choro.
- Em sequestro geralmente as pessoas querem algo em troca – ela percebeu o olhar horrorizado de Drika. Ela ainda não tinha usado a palavra sequestro na conversa - A gente tá aguardando.
As três mulheres ficaram em silêncio, sem saber o que dizer uma para outra, até Drika olhar para a mãe novamente.
- Era isso que você tava falando com a Julia? – a expressão no rosto de Helô era algo que a mais nova nunca iria esquecer.
- Era. – ela confirmou - Eu queria o computador dele, pra investigar se pode ser algum cliente ou algo do tipo – ela percebeu uma lágrima escorrendo no rosto da filha, ela secou com as mãos, fazendo um carinho no lugar - Eu tô fazendo tudo que eu posso e eu prometo que eu vou trazer ele de volta.
- Ele não ia querer ninguém além de você investigando isso. – A filha disse quase em tom de admiração - Ele confia em você.
- E eu preciso que vocês confiem em mim também – a delegada pediu, quase implorando.
- A gente confia – Drika abraçou forte a delegada - Você sempre foi insuportavelmente boa.
Elas se afastaram sorrindo uma para a outra, tentando encontrar ali, naquele abraço, a força que elas precisavam para seguir esse momento. Foi Creusa quem quebrou o silêncio.
- Eu vou rezar pra São Benedito, visse? – Helô sorriu, pegando a mão da mulher na sua e dando um leve beijo - Vou fazer uma promessa.
-LIZ? – Drika gritou depois de um tempo, secando o resto das lágrimas – Pode vir pra cá, se quiser. – Ela olhou para a mãe – eu vou ao banheiro.
Quando Liz apareceu correndo na sala, ela se sentou no colo da delegada. Creusa foi até a cozinha e as duas ficaram ali em silêncio. A mão de Liz brincando com o cabelo da avó, em silêncio, como se ela percebesse que algo estava errado.
- Tá tudo bem, vovó? – ela perguntou baixinho.
- Tá sim, princesa – ela deu um beijo na cabeça da neta - Tá sim.
Ainda que a criança não parecesse convencida, ela não questionou mais. Até ela finalmente dizer baixinho no ouvido de Helô, como quem conta um segredo.
- Eu tô com saudade do vovô.
Foi apenas quando ela apertou a neta contra si que Heloísa se permitiu chorar, ainda que em silêncio, sendo observada de longe pela filha, que chorava sozinha no corredor.
- Eu também, pequena – ela respondeu com a voz falhando - Eu também.
***
Quando Rafael chegou, ele se deparou com um cenário de caos na sala de casa. Papéis espalhados pela mesa da cozinha e uma Helô que parecia não ter se dado conta de que ele havia chegado.
Ele se aproximou da esposa, com cuidado, observando tudo ao redor. Quando ele colocou a mão no ombro dela, atraindo a atenção da delegada, ele tentou dar oi e um beijo, mas ela apenas voltou sua atenção para o arquivo em sua frente.
- Me alcança aquele papel ali em cima? – ela disse mecanicamente apontando na direção de interesse.
Ele olhou para a mulher que já não prestava mais atenção nele, pegando os papéis da mão do médico e os colocando na mesa.
- Oi pra você também – ele disse depois de um tempo.
- Oi – Helô respondeu mais suave, fazendo um carinho no braço do marido – me desculpa.
- O que tá acontecendo, Helô? – Rafael perguntou preocupado, se sentando na cadeira ao lado dela.
Ela tirou sua atenção da investigação e olhou para o marido. Era insuportavelmente doloroso precisar repetir essa história e essa frase tantas vezes.
- Stenio foi sequestrado - ela disse, observando a cara de choque do marido.
- Meu deus, Helô – o médico podia ter suas questões com o advogado, mas isso era demais- vocês já têm alguma notícia?
- Não, ainda não – ela respondeu olhando triste para o marido, logo em seguida se voltando para os arquivos na frente dela.
O médico observava atentamente a esposa ali, sentada à mesa com todos os arquivos na mão, lhe dando respostas vagas e quase mecânicas, quase como se ele estivesse incomodando.
Ela poderia estar investigando o caso de alguém próximo dessa forma?
- Você poderia estar investigando isso? – ele perguntou, pegando aleatoriamente um papel na mão, sem olhar pra ela
- O que? - pela primeira vez ela parou o que estava fazendo e olhou de verdade para ele.
- Ele é seu ex-marido – ele explicou, olhando para ela.
- Ninguém ousaria tentar me afastar desse caso – o tom da delegada foi quase ríspido com o marido.
- Heloísa, calma. Não foi isso que eu quis dizer. – O médico começou a se explicar, quando a esposa se levantou da cadeira andando de um lado para o outro - Eu só fiquei preocupado pra você não acabar sendo implicada em algo -
- É O STENIO, RAFAEL - Ela praticamente gritou, o desespero presente no rosto da delegada - É O STENIO QUE TÁ EM JOGO.
Rafael ficou em silêncio, assustado com a reação da esposa. Havia um medo na expressão de Helô que ele não estava acostumado a ver. Não era um medo pela situação, não era um medo por ela.
Era medo de não ter a chance de ver Stenio de novo.
- Você arriscaria sua carreira por ele? – o médico perguntou, mas algo dentro dele já sabia a resposta.
Helô permaneceu em silêncio, sem tirar o olhar de Rafael. Sem coração de responder a pergunta porquê hoje, mais do que nunca, a resposta era clara.
Ela arriscaria qualquer coisa por Stenio.
- Eu não quero brigar com você, Helô. – ele não iria insistir em ouvir uma resposta que ele não estava pronto para aceitar - Eu tô feliz que é você cuidando disso e estou torcendo para que vocês o encontrem logo - ele tentou chegar perto, mas percebeu ela recuando - Eu vou tomar um banho e me deitar.
- Depois eu vou – ela respondeu mais seca, voltando a se sentar à mesa, tentando manter a calma.
- Donelô, fiz um cafezinho pra senhora – disse Creusa entrando na sala, alheia a pequena discussão que havia acontecido minutos atrás.
- Obrigada, Creusita – ela agradeceu, sorrindo para a mulher.
- Quer um golinho, senhor Rafael? – ela ofereceu, percebendo o homem ali na sala.
- Não, obrigada Creusa – ele respondeu triste, indo para o quarto.
Helô ficou olhando o marido se retirando e se sentiu culpada. Não queria ter estourado com Rafael como havia acontecido. Não havia motivo para isso, mas tudo nela estava à flor da pele. Enquanto ela olhava os arquivos e as fotos, toda a situação continuava desesperadora.
Ela colocou o rosto entre as mãos e sentiu Creusa fazendo um carinho em suas costas. Era bom não se sentir sozinha no meio desse furacão.
Ela ergueu os olhos e se deparou com o olhar amoroso da maranhanse. O que seria de Helô sem ela? O que seria de Stenio sem Creusa? O que seria deles sem essa mulher?
- Você nunca mais chamou o Rafael de ‘Dotô’, né Creusa? – Helô perguntou depois de um tempo. Há muito a delegada havia notado, mas nunca havia verbalizado nada para a empregada.
- Quando Dotô Stenio não tava aqui era uma coisa – a empregada se sentou ao lado dela e começou a explicar - agora que ele voltou é estranho. Dotô é o Stenio mesmo.
- A relação de vocês dois é uma coisa de outro mundo – a delegada apoiou o cotovelo na mesa, com a mão no queixo, sorrindo para Creusa.
Ainda agora, com Creusa preocupada, fazendo companhia para a delegada, ela podia notar o olhar de desespero dela. Esses dois sempre haviam sido grudados, armando complôs, fazendo fofoca e sempre perto um do outro. Era uma das relações mais bonitas e puras que a delegada já havia visto.
- Eu gosto muito dele, visse? Ele é um homem muito bom, Donelô. – ela olhava triste para a delegada - Qualquer um via como ele gostava da senhora, como a senhora gostava dele... era bonito demais.
- Creusa... – Helô disse em tom de aviso, mas claramente não estava brava.
Fazia tempo que a ideia de ter Stenio ao seu lado, em sua órbita, já não incomodava mais.
- A senhora não sente falta não? – ela perguntou de maneira inesperada - De ser casada com Dotô Stenio?
- Eu sou casada com o Rafael agora, Creusa. – Que mania de Creusa de plantar essas ideias da cabeça dela?
- Oxi, não foi isso que eu perguntei, Donelô. – A empregada se divertia com as tentativas da delegada em negar que não sentia mais nada.
- Me deixa trabalhar, mulher. – Ela desconversou, fazendo Creusa rir mais - A gente precisa trazer ele de volta, não precisa?
Quando a empregada acenou que sim e saiu da sala, ela ficou sozinha mais uma vez. Olhando para a frente, ali na sala, foi impossível não relembrar um passado não tão distante. Com a família enchendo a sala, a filha cantando e Stenio sorrindo largo, rodando com ela nos braços pela sala.
Preenchendo o ambiente com risadas, preenchendo o ambiente com amor.
Disso, ela não precisava sofrer mais admitir, ela sentia falta.
***
Quanto mais Heloísa olhava para as coisas à sua frente, menos sentido as coisas faziam. Dando play na gravação que havia recebido da polícia, ela tentava buscar algum sentido ou dica que o advogado pudesse ter tentado passar.
- Claudio, Rodrigo, Maria... – a delegada repetia para si mesma – Stenio, que que você quis dizer com isso?
Helô sabia que cada segundo que ela perdia sem respostas, eram segundos em que algo poderia acontecer com Stenio. E ela não conseguia parar de pensar na confusão que deveria estar na cabeça do advogado nesse momento, sequestrado sem saber onde, como, ou por quê. Tudo por ter sido casado com ela em algum momento da vida.
Tudo porque ele a amava.
O amor não deveria machucar, não era justo que ele machucasse. E ainda assim, o amor dela e de Stenio tinha essa velha mania, de acalmar as feridas na mesma proporção que as causava.
- Vem dormir, Helô – a voz de Rafael surgindo na sala, tirou a delegada de um transe.
- Ainda não, pode ir dormindo – ela tentou ser calma, para não repetir a briga de horas atrás.
- Heloísa – ele disse meio sem paciência- são 3 horas da manhã.
- Rafael – ela respondeu no mesmo tom - então vai dormir.
Quando o marido saiu da sala, e ela voltou a dar play na fita. A voz já não a arrepiava mais, agora ela buscava por pistas no escuro que a pudessem levar até Stenio. Tocando de novo, de novo e de novo.
Quando Creusa surgiu na sala com uma caneca de chá, Helô não pôde deixar de sorrir vendo ela se encaminhar até o sofá, se sentando ali, tomando também um gole grande da própria caneca.
- Vai dormir, Creusa – ela pediu suave, olhando a empregada com carinho.
- Oxi, eu lá consigo dormir, Donelô? – ela respondeu, ali sentada sem se mexer do lugar.
- Creusa – a delegada disse de repente – Você conhece algum Cláudio, Rodrigo ou Maria que seja próxima de Stenio?
A delegada precisava reconhecer que da vida atual do ex-marido ela pouco conhecia. A aproximação deles ainda era recente e apenas agora ela refletia que ela poderia não conhecer essas pessoas.
Porque ele não estava ali com ela pelos últimos seis anos.
Quanto tempo eles haviam jogado fora? Quantos momentos eles haviam desperdiçado?
- Conheço não, Donelô – Creusa disse confusa – não me lembro desses nomes aí não.
Acenando com a cabeça que havia entendido, Helô voltou a dar play na gravação que, à essa altura, ela sabia quase de cor.
“Se você quiser dinheiro, eu pago. Não adianta meter a Helô nisso... A gente não se vê faz tempo, ela não vai nem reparar que eu sumi. Eu não conto pra ninguém”
Ele realmente achava que ela não iria perceber que ele havia sumido? Que ela não iria notar? Tudo que ela havia notado desde o dia do bar era a ausência dele.
Ou seria ausência dela? Naquele dia ele parecia tão pronto que a delegada levou um susto.
A maneira como ele quase disse ‘eu te amo’, como ele deixou claro que agora dependia dela, como se ele estivesse pronto para jogar tudo para o alto para ter apenas mais uma chance…era assustador.
E mais assustador do que isso era o fato de que agora, nesse momento, ela sentia que poderia jogar tudo pro alto apenas pela chance de algo mais. Apenas pela chance de encostar nele de novo, sentir o cheiro dele novamente.
Ela estaria disposta a tudo apenas pela chance de ser amada por Stenio de novo.
As horas passavam, mas ela já não percebia mais. Não dormiria até encontrar algo de concreto, alguma pista, qualquer coisa.
- Creusa dormiu no sofá? – Rafael falou assim que surgiu na sala, assustando a delegada. Ela não percebia que já havia amanhecido e ele já estava pronto para sair.
- Quis me fazer companhia, e acabou dormindo ali – ela respondeu sorrindo, aceitando o selinho que o marido lhe oferecia. - Já tem café passado.
- Virou a noite... achou algo? – ele perguntou indo até a cozinha pegar café, sendo seguido pela delegada.
- Ainda não. – Ela comentou pegando um pouco de café para si também, precisava de cafeína.
- Mas vocês têm alguma pista? - Ele se encostou na pia, olhando a esposa.
Só então Helô reparou que não havia falado para ele sobre o caso. Entre as brigas e falta de paciência dela, ele mal sabia o que estava acontecendo.
-Você lembra do meu último caso na federal? – Helô começou a explicar, parando ao lado dele.
- O das irmãs? - o médico parecia confuso - A gente se conheceu você tinha recém fechado ele.
- Eu me lembro – ela sorriu de volta se lembrando daquela época - a gente acha que pode ser a que escapou.
Rafael ficou em silêncio, refletindo sobre a informação. Ele sabia que esse caso havia sido difícil e que, apesar de uma das irmãs estar presa, uma delas havia fugido. Mas algo ainda não batia.
- Mas por que o Stenio? – ele perguntou olhando a esposa.
- Não faço a mínima ideia. – Ela encostou a cabeça no ombro do marido, finalmente querendo ceder à exaustão.
- Então é isso – Rafael soltou como se tivesse finalmente entendido algo.
- O que? – ela olhou para ele confusa.
- Você tá se sentindo culpada pelo sequestro – isso justificaria todas as atitudes recentes de Helô, tudo fazia sentido - agora as coisas fazem mais sentido.
- Eu investigaria o caso dele independente de ser sobre isso ou não. Não reduza minha preocupação a culpa – ela respondeu ofendida, se afastando do homem ao seu lado - Eu não aguento mais você e a Julia agindo como se eu e o Stenio não tivéssemos uma filha e netos juntos. – Ela encarava Rafael, nervosa - O que você esperava que eu fizesse? Ficasse sentada olhando de lomge uma investigação sobre o homem com quem eu dividi mais de 20 anos da minha vida e está desaparecido?
Ela virou de costas para o marido, se apoiando na pia. Já não sabia se falava com Rafael ou consigo mesma.
- Helô – ele tentou interromper, mas ela seguiu falando.
- Não se pega quase 30 anos de história e se joga pela janela, independente de como isso terminou. Não dá pra fingir que a gente não se ama...- ela tentou corrigir rápido, mas já era tarde - amou.
O verbo no presente.
Como era, mas que a delegada ainda tentava negar dentro de si.
Ela se virou rapidamente, sentindo o peso do olhar do marido sobre ela. Rafael sabia que Stenio ainda mexia com a mulher de alguma forma, mas ouvir da boca de Heloísa que eles ainda se amavam, doía mais do que ele poderia imaginar.
Mesmo que ela tentasse voltar atrás.
Era algo que não tinha volta.
- Rafael, espera.. - Helô tentou chamar ao ver o marido se afastando - eu só tô exausta e cansada, não tô nem pensando direito.
- Eu vou trabalhar - ele disse seco, sem olhar para trás - espero que vocês avancem na investigação.
- Rafael... – ela segurou o braço dele, forçando-o a olhar pra ela – Eu amo você. Eu sou casada com você. Eu escolhi uma vida com você.
Helô não sabia bem o que esperava, mas era mais do que puro silêncio. Foi apenas depois de um tempo que ele finalmente disse algo.
- Eu só fico me perguntando, onde foi parar toda a raiva que você tinha dele quando a gente se conheceu. Você...- o médico pareceu pensar melhor antes de dizer - deixa pra lá. De verdade, espero que vocês o encontrem logo.
Ele soltou a mão dela e saiu de casa, deixando Helô ali.
O que estava acontecendo na vida dela?
Pegando o celular e as chaves do carro, a delegada decidiu sair de casa e respirar ar puro.
Assim que ela entrou no carro, as lembranças do ex-marido a atingiram em cheio. Se fechasse os olhos por tempo suficiente ainda conseguia sentir as mãos dele pelo corpo dela. Será que se o vidro embaçasse o suficiente ela poderia ver a própria mão marcada no vidro?
Ela começou a dirigir a esmo, sem rumo e sem saber ao certo porquê. Foi por um segundo que a música que tocava baixo lhe chamou a atenção.
Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho
Tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado
Está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz
Ela cantarolava a música para si, sentindo cada linha que a canção lhe presenteava. Esse era o inferno das coisas com Stenio: todas as músicas faziam sentido.
Mas se a ciência provar o contrário
E se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
E não havia tentado? Tantas vezes e de tantas formas. Eles haviam se separado, se desentendido, terminado e voltado.
Ela tentava expulsar, e ele voltava. Ela tentava ir e ele não deixava.
Tentavam não se amar, e não conseguiam.
Danem-se os astros (os autos), os signos (os dogmas)
Os búzios (as bulas), anúncios (tratados), ciganas (projetos)
Profetas (sinopses), espelhos (conselhos)
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz
No fim, era isso. Eles sempre seriam amor, ainda que não tentassem ser.
Parou o carro distraída, sem se dar conta que havia ido parar na Praia do Leme. A quanto tempo ela não ia até ali? Ela e Stenio haviam caminhado muito por aquelas areias com Drika, havia história ali também. Mas parando para pensar agora, em todos os cantos e em todas as partes dessa cidade havia um pedaço da história dela com Stenio.
Mesmo com calendário contrariando, destino separando...eles sempre achavam o caminho de volta um para o outro.
Ela só queria que dessa vez não fosse diferente.
Que eles se buscassem, que eles se achassem, que fossem amor, que fossem paz.
Sorrindo ao longe, ela visualizou a estátua de Clarice Lispector. Caminhando até lá de maneira calma, ela se sentou por ali. Era verdade que agora ela entendia melhor o amor dela e de Stenio. Já diria a autora “Dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era um amor de quem já sofreu por amor”.
- Acho que agora é um amor realista – ela disse alto, ainda que para si mesma.
Foi com um sobressalto que ela finalmente se deu conta de algo.
- STENIO, TU É UM GÊNIO!
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