Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorriso
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo [...]
(Ternura - Vinicius de Moraes)
- Ela.
Julia olhava para Stenio tentando absorver a única palavra que havia saído da boca dele. Havia certa tristeza no olhar do marido, a tristeza típica de quem sente que está prestes a mudar o curso da vida, encerrar um capítulo, mas havia muito mais a certeza da decisão que ele estava tomando. Não havia dúvidas para ele.
Era uma escolha consciente e isso a assustava.
- Ela. – Stenio repetiu, mais para si mesmo do que para a loira.
Se ele fosse honesto, quando Julia optou pelo ultimato não existia outra possibilidade de resposta. A escolha dele havia sido Heloísa desde o momento em que a viu naquele café, desde que havia voltado a tomar vinho tinto na praia, desde que havia sentido o gosto dela de novo.
Ele segurou a vontade de sorrir, talvez a delegada estivesse certa. Eles seguiam se escolhendo, apesar de tudo e apesar de todos.
- Você está me dizendo que vai trocar nosso casamento, nossa vida juntos, e tudo que nós temos – a empresária se sentou nervosa na cama, olhando com lágrimas nos olhos – pelo que você não tem com ela?
- Julia, você não entende meu relacionamento com a Helô – ele tentava acalmar a mulher, sem saber ao certo como fazer isso.
- O que eu sei é que vocês se casaram duas vezes e deu errado duas vezes – ela se levantou da cama, tentando procurar um sentido na escolha do advogado – o que eu sei é que você embora e ela nunca se importou com isso pelos últimos seis anos. Que relacionamento é esse?
- Julia – qualquer tentativa de interromper seria em vão.
- Ela não ama você. – Julia disse séria, olhando para Stenio – ela ama o que você sente por ela.
Ele a encarou em silêncio por um momento. Era normal a reação de Júlia estar sendo essa. Stenio havia errado em tentar seguir com um casamento que, em grande parte, não envolvia amor embora envolvesse muito afeto e, conseguia admitir, errado ainda mais ao trair a esposa. Mas duvidar dos sentimentos de Heloísa era algo que ele não estaria disposto a fazer.
- Não fale do que você não sabe – ele a olhava firme, com certeza na voz.
Esperava que a loira fosse recuar, mas ela o olhou sorrindo quase irônica, como se ele estivesse falando o maior de todos os absurdos/
- Ela vai se separar também? - ela perguntou e percebeu o Stenio tentando manter o olhar firme. Ele vacilou por poucos segundos, mas ela percebeu - Ela contou pro marido dela do beijo de vocês? Ela deu algum indício que vai arriscar a vidinha perfeita dela e jogar tudo pro alto? – essas eram perguntas que ele não havia se feito ainda – fosse por medo ou por relapso, mas parecia ter a resposta - Ela não vai.
Era a primeira vez que ele parava para pensar na possibilidade de Heloísa, ainda, não ter coragem de escolhê-lo também. Tudo parecia ter acontecido tão rápido desde o reencontro deles, tanta coisa havia acontecido que estava difícil para o advogado raciocinar.
Ela também iria se separar, não iria?
Julia saiu caminhando em direção à sala, mas o advogado levou alguns segundos para seguir a esposa.
- Você me fez um ultimato e eu respondi. – Ele tentou se aproximar da mulher, mas ela se afastou, ele suavizou a voz- Julia, não importa quanto tempo passe, uma parte minha sempre vai ser dela.
A empresária não respondeu. Ela caminhou lentamente até a estante e segurou nas mãos o porta-retratos com a foto do dia do casamento dos dois. Havia sido um dia feliz, uma cerimônia pequena apenas com a família mais próxima dela, Drika, Pepeu e as crianças. Haviam festejado depois.
Ela realmente achou que tinha encontrado a pessoa.
A vida dela nos últimos anos parecia agora uma mentira.
Colocando o porta-retrato de volta na estante, ela olhou para o advogado e caminhou até ele. Segurando o rosto do marido nas mãos, ainda com carinho.
- Você algum dia me amou? – as lágrimas corriam pelo rosto dela, implorando por um sim, eu te amei, mas quando ele olhou para baixo ela soube que não viria - mas você realmente gostava de verdade de mim, não é?!
O rancor presente na voz dela o levou diretamente para a conversa que o casal havia tido há pouco tempo, como se as coisas estivessem acontecendo em um looping infinito onde nada tinha fim.
Até agora.
A mágoa dominava o olhar de Júlia agora e ele não podia julgá-la, Stenio havia passado – e muito, dos limites.
- Ela não se importava com você até você voltar, mas bastou te ver pra querer agir como se você fosse dela. - Ela odiava Heloísa Sampaio e sentia certo alívio em pensar que o sentimento era recíproco. Julia começou a falar rápido, sem conseguir parar ou processar o que dizia - Ela agiu como se não fosse nada quando pedi pra vocês se afastarem, me deu um tapa na cara porque eu não contei pra ela do sequestro!
Ela engoliu seco depois de perceber o que havia dito. O olhar de espanto de Stenio entregava que ele ainda não sabia de nada sobre isso. Bom, se fosse para o casamento acabar, que fosse livre de segredos.
- Você o que? – ele encarava incrédulo a mulher à sua frente - Em que momento você pediu pra ela se afastar de mim? - por isso Helô havia tentado terminar as coisas com ele na praia? Havia sido por isso? - Você não escolhe com quem eu falo ou deixo de falar.
- Nem de beijar, pelo jeito – ela disse irônica, tentando desviar o foco da discussão - mesmo enquanto estamos casados!
Em outras circunstâncias ele daria a vitória para ela nessa. Ele merecia escutar isso agora. Mas havia algo maior ocupando a mente do advogado. Ele respirou fundo, acalmando o tom de voz para perguntar.
- Você não contou para a Helô quando eu fui sequestrado? – a voz dele estava embargada em medo. Os cenários passavam de maneira assustadora pela cabeça dele. O que poderia ter acontecido.
Foi a primeira vez que o advogado conseguiu ver arrependimento no olhar da mulher. Julia claramente se arrependia da decisão, fosse qual fosse o motivo.
- Eu denunciei na delegacia certa. - A empresária disse mais calma, se sentando novamente no sofá, escondendo o rosto nas mãos - Ela é delegada de crimes virtuais, não tinha nada com ela. – Julia olhou para o marido, buscando a compreensão dele no olhar - Lais acabou indo até lá ver se tinha novidades e ela entrou no caso.
Stenio encarava a loira ali, sentada ao seu lado, buscando entender tudo que se passava. Por ciúmes ele poderia não estar ali neste momento. Não havia ninguém que confiasse mais do que Helô para investigar algo. Todos os cenários eram aterrorizantes.
E a delegada não havia contado nada disso para ele. Por que ela estava protegendo Julia? A quem ela estava protegendo?
- Se não fosse ela, eu não estaria aqui agora. – Ele disse baixinho, mas percebeu que Julia escutou. Se direcionando para a esposa, ele finalmente disse - Eu deixei pistas contando que Helô seria a primeira pessoa a saber.
- E ela entendeu todas elas, né? – Julia sorriu triste – eu nem sabia que você gostava de Clarice, Stenio.
Ele não falava sobre nada que lembrasse Heloísa para Júlia. As flores para ela eram sempre rosas, jamais orquídeas, e apenas em datas especiais. O vinho nunca era tinto, os livros nunca eram os mesmos, as músicas eram outras. Tudo que remetia à delegada ele tentou apagar da vida dele nos últimos anos.
Apenas para ela trazer tudo de novo para a vida dele numa maré só, como o grande oceano que ela era.
- Você não pode decidir pelas minhas costas coisas da minha vida, Julia. – Parecia injusto apontar isso agora quando a vida dos dois tomava um rumo completamente diferente.
- Pelas costas? Sério? Você quer falar sobre isso agora? -Julia não levantou o tom de voz, parecia ter desistido de brigar, mas ainda tinha muito a dizer – Você demorou horas no banheiro com o “Moretti”. Me traiu com ele também? – Stenio a encarou sem falar nada - Você não tem o direito de falar nada!
O advogado queria responder, mas no fundo sabia que ela estava certa. Com o que direito ele cobrava coisas da empresária quando poucas horas atrás Heloísa havia jogado a aliança dele no chão para que a mão dele passeasse pelo corpo dela sem a marca de pertencer à outra pessoa? Com que direito ele cobrava algo quando havia dito para outra mulher que ele era dela?
Ele não tinha direito algum aqui, mas tinha a escolha de deixar Júlia seguir o caminho dela. E ele faria isso.
- A gente não vai chegar a lugar nenhum de cabeça quente – ele tentou encerrar a discussão, mas foi interrompido pela esposa.
- Você falava dela com raiva pra mim. – a loira conseguia se lembrar da pura mágoa e rancor que o nome da ex-mulher saia da boca dele - Eu arrisquei tudo pra voltar pra cá com você!
- Eu nunca te pedi pra abandonar sua vida lá! – ele tentou se defender, uma vez que jamais teria exigido isso dela.
- Mas nunca tentou me convencer do contrário! Meu deus Stenio! – Julia abaixou a cabeça chorando compulsivamente.
O advogado ficou sentado ao lado dela e, parte dele, esperava que ela fosse recuar quando ele tentou fazer um leve carinho nas costas dela, mas ela continuou ali. O advogado sentia que precisava chorar, que isso era algo que deveria acontecer em um divórcio.
E ele sabia disso pois havia chorado duas vezes. As lágrimas haviam sido dele de uma maneira quase sufocante nas duas vezes que havia se separado de Helô. Sabia que era o maior erro da vida dele, mas não havia opção de escolha ali. No fim, ele sempre faria aquilo que fizesse Heloísa feliz e se isso significasse uma vida sem ele, Stenio o faria. E o fez.
Com o peso anormal da caneta nas mãos, ele assinou por duas vezes as evidências físicas que ele e a delegada pertenciam. No fundo, isso nunca foi verdade.
Ele não conseguia chorar pelo divórcio com Júlia. Não parecia errado, era o certo a se fazer.
Ele percebeu a loira levantando a cabeça, secando as lágrimas e se levantando do sofá. Ela caminhou para o corredor que levava ao quarto deles.
Ou, agora, dela.
Tudo estava confuso demais.
Ela parou no caminho e olhou para Stenio. Foi com uma certeza assustadora que ela disse.
- Não que Rafael não saiba, porque ele provavelmente já sabe de tudo – ela olhou para o marido firme, sem vacilar – mas eu não vou dizer nada para ele.
- Não vai? – ele a olhou confuso, esperava que essa fosse ser a primeira atitude da ex-mulher.
- Não vou. E sabe por que eu não vou? – agora sim, o rancor estava de volta à voz dela, de maneira quase fria - Pra você ver que se o Rafael não pedir, ela não vai se separar. E você vai ficar sozinho, enquanto assiste eles sendo tudo aquilo que NÓS poderíamos ter sido.
Ela tirou a aliança do dedo e colocou na estante, próxima a foto de casamento, antes de caminhar até o quarto, fechando Stenio para o lado de fora. Foi apenas quando ele ficou sozinho na sala, pensando sobre tudo que Julia havia dito que se deu conta.
O advogado havia quebrado naquela noite a promessa de só dizer que amava Helô quando ela estivesse pronta para ouvir.
Ele disse que a amava.
E ela não havia dito “eu te amo” de volta.
***
Enquanto Drika e Pepeu se sentavam nos bancos da frente do carro, Helô seguia sentada junto dos netos no banco de trás. Lucas cochichou com a cabeça encostada no vidro e Liz cochilava abraçada, de maneira que parecia quase desconfortável junto à avó.
A filha e o genro falavam animados sobre o quão divertido havia sido o casamento, mas o olhar da delegada pousou nas mãos dos dois, com os dedos entrelaçados enquanto compartilhavam o momento entre eles. Ela havia criticado e sido tão contra esse casamento que hoje era quase engraçado ver eles ainda juntos, mais juntos do que nunca na verdade.
Ela desviou o olhar e focou na janela, observando os prédios e os carros que passavam por eles. A vida de algum deles estaria ruindo também? De alguma forma nossos problemas sempre parecem ser os maiores do mundo, mesmo quando não o são. Flashes dos momentos com Stenio no banheiro passavam pela cabeça da delegada, mas eram entrecortados pela expressão de dor do rosto do marido, seguido pelo momento que ele lhe deu as costas e foi embora.
Heloísa não tinha no estoque cola suficiente para colar todos os cacos que surgiam pela vida dela agora. Machucando Rafael, machucando Stenio, machucando a filha, machucando a si mesma. Quando foi que a delegada, sempre tão centrada, havia se tornado essa bagunça desgovernada levando todos pelo caminho?
Um furacão, como Stenio provavelmente diria.
Não reparou que já haviam chegado, até o carro parar e Drika chamar sua atenção.
- Quer que eu suba com você, mãe? – havia uma preocupação no olhar da mais nova que partiu, ainda mais, o coração da delegada.
- Não precisa, meu bem – ela sorriu para a filha e tentou afastar a cabeça da neta do seu corpo – Liz? Princesa? – quando a pequena olhou para ela, com os olhos sonolentos e querendo começar a chorar por ter sido acordada, a delegada sorriu – a vovó precisa ir pra casa, tá bem?
Liz deu um abraço nela sem falar nada e logo, se deitou encolhida no espaço do banco que Helô deixou livre ao sair. Assim que ela fechou a porta, caminhando em direção ao apartamento, ela foi chamada novamente.
- MÃE! – ela observou Drika correndo até ela, dando um abraço na mãe. Ela apertou a filha contra si, aproveitando o momento – você merece ser feliz. Não tira isso de você mesma.
A delegada não teve forças para responder, apenas apertou a filha contra si ainda mais forte, antes de dar um beijo na bochecha dela em despedida. Ficou olhando até Drika entrar no carro e eles partirem. Era hora dela ir para casa.
Embora esse conceito fosse agora confuso para ela.
O elevador hoje parecia mais rápido que o normal – só porque ela queria que ele fosse mais devagar – e, assim que chegou na porta da própria casa, teve medo de entrar. Parte dela sabia que independente dos rumos da conversa com o marido, tudo mudaria a partir desse dia.
Assim que ela entrou se deparou com Rafael sentado, esperando por ela no sofá da sala. O terno preto jogado na poltrona, a camisa social mais aberta do que de costume, o copo de whisky vazio na frente dele. Helô nunca havia visto o marido dessa forma e ela não tinha absolutamente ninguém além de si mesma para culpar por isso.
O médico ergueu os olhos em direção a ela, se certificando de que era realmente a esposa ali. Ele a estudava atentamente buscando por algo que ela não sabia o que era, o sorriso decepcionado indicava que ele havia achado.
- A aliança anda te incomodando ultimamente? – ele perguntou olhando para ela, recebendo um olhar confuso da delegada, até ele completar – aliança de casamento se usa na mão esquerda, Heloísa.
Ele se levantou, pegando o copo da mesa, indo se servir de mais uma dose, enquanto Helô se amaldiçoava internamente enquanto colocava a aliança na mão correta. Como ela havia feito isso? Havia saído tão correndo do banheiro com Guida que não havia prestado atenção em mais nada.
- Rafael – ela disse calma, indo até o marido – chega, você já bebeu demais.
O olhar que ele lhe direcionava era vazio, como se algo ali tivesse se quebrado. Em todos esses anos, o médico sempre a havia olhado com carinho ou amor, mas não agora. Nesse momento, só havia decepção.
- Não me diga o que fazer – ele respondeu seco, voltando ao sofá – você não tem esse direito – depois de um tempo de silêncio, finalmente ele disse – quantas vezes?
Ela sabia exatamente ao que ele se referia, mas queria ganhar tempo na resposta.
- Quantas vezes o que?
- Você me traiu com ele – ele olhou diretamente nos olhos dela, com mágoa – quantas vezes?
Não adiantava fingir que nada havia acontecido, não mais. Não adiantaria tentar mentir, desviar do assunto.
- Uma vez – era o Julia sabia, era o que ela estava disposta a contar para Rafael também.
Uma coisa era desconfiar de uma traição, ter suspeitas, achar que algo está errado. Outra, bem diferente, era ter essa confirmação saindo da boca de quem você ama. Ouvir Heloisa admitindo, doía ainda mais.
- Eu sinto que eu não te conheço mais – o médico disse, sem olhar para ela - A Heloísa que eu conheci, que eu me apaixonei e que eu amo, não faria isso – ele se levantou, elevando o tom de voz e finalmente olhando para ela - VOCÊ JÁ FOI TRAÍDA POR ELE, sabe exatamente como dói! E agora você ME trai COM ele?
Ela queria ser capaz de rebater, mas ela não podia. O marido estava certo em absolutamente tudo que dizia. Ela havia se tornado o que tanto havia criticado. Ela não conseguia entregar nada além de silêncio.
- Esse homem é capaz de ser fiel a algum relacionamento? – o médico perguntou irônico.
- Rafael, se acalma – ela tentou caminhar até o marido, mas ele recuou evitando o contato.
- Calma? Eu acabei de ter a certeza de que de fui corno – o álcool fazia com que ele jogasse as palavras de maneira dura, seca, sem se importar em como elas a atingiam - com um cara que você jurava odiar!
- Me perdoa – ela finalmente conseguiu dizer, se sentando no sofá - você não merecia isso.
- Não merecia mesmo. – Ele disse com raiva. Ele olhou para a mulher sentada no sofá com a cabeça baixa e, finalmente, foi até ela soando mais calmo - Eu não merecia.
Eles ficaram sentados em silêncio, um ao lado do outro, sem coragem de dizer uma só palavra, não se tocavam, apenas ficaram ali, tentando entender tudo que havia acontecido e tudo que, ainda, poderia acontecer.
- Existe alguma parte sua que queira salvar esse casamento? - ele perguntou de repente, olhando para ela - Alguma parte sua que queira tentar?
- Rafael...- o nome saiu em tom de surpresa. Ela esperava a exigência de um divórcio e ele queria...tentar?
- Eu preciso que você se lembre que você pediu o divórcio dele duas vezes, Heloísa. Você tentou duas vezes e não deu certo. – Foram incontáveis vezes onde ela havia falado sobre isso com o médico, com incerteza de querer entrar em um novo relacionamento - Eu sei que você ainda tem sentimentos por ele, eu não sou cego. Mas você está disposta a jogar no lixo o nosso casamento inteiro, que funciona, pra uma incerteza de uma terceira vez com ele?
Ela se odiou por ser primeiro instinto ter sido dizer “sim”, ela estaria disposta. E se odiou mais ainda por se pegar refletindo sobre as coisas que o marido dizia, bagunçando a cabeça dela, a fazendo reviver coisas que ela, agora, já nem pensava mais.
Rafael falava sem dar tempo para ela pensar, ela sufocante.
- Quanto tempo até as brigas recomeçarem? – ele continuou percebendo que ela, de fato, prestava atenção ao que ele dizia - Até ele começar a soltar seus presos e vocês se desentenderem? - ele fez uma pausa antes de dizer o ponto chave - Quanto tempo até ele te trair de novo?
- Cuidado pra onde você tá indo, Rafael. – Ela disse em tom de aviso, ele estava indo longe demais.
- Vocês já começaram tudo errado, e ele é reincidente. – o médico se defendeu, se sentando mais reto, ficando com medo do rumo da conversa - Não me julgue por apontar o óbvio.
- Você não sabe absolutamente nada do meu relacionamento com ele. - Ninguém nunca entenderia. Não foram poucas as vezes em que Heloísa duvidava que eles mesmo entendiam - Não fala do que você não sabe.
- Relacionamento? – ele se levantou, soando ofendido.
- Você entendeu.
- Posso te propor uma coisa? - o tom de voz calmo dele não combinavam com o rumo que a conversa vinha tomando - Vamos fazer a viagem que a gente estava programando
- A gente? – ele só podia estar de brincadeira - Eu nem tinha dito que sim!
- Me escuta – ele caminhou até ela, se ajoelhando na frente da delegada, pegando na mão dela. A primeira vez que se encostavam desde o início da discussão - vamos fazer essa viagem, nos dar essa chance. Tentar fazer dar certo. Eu realmente não quero te perder.
Era isso que ela queria? Salvar as coisas com Rafael parecia algo tão distante agora. A lembrança das mãos de Stenio pelo corpo dela, a maneira como ele havia dito que ela não pertencia a Rafael e sim à ele, faziam o seu corpo querer arrepiar, mesmo agora depois de tanto tempo.
Mas Rafael tinha um ponto. Ela havia dado mais chances para o amor com Stenio do que gostaria de admitir e mesmo que as lembranças do último divórcio e de um avião decolando ainda a perseguissem, ela havia tentado antes disso. E não havia terminado bem.
Ela o amava, é claro que amava. Mas amor não segura sozinho um relacionamento.
Eram coisas demais para um dia só.
- Eu não sei se quero isso – ela fez uma pausa, olhando para Rafael, finalmente tomando coragem para perguntar o que queria - e como você consegue aceitar isso tudo tão bem? Eu te traí – ela percebeu o olhar de dor no marido – uma pessoa normal pediria o divórcio...eu fiz isso.
Rafael levou um tempo para responder o questionamento da mulher.
- Eu não aceito bem, eu tô puto Heloísa. – Ele se levantou novamente, se sentando no sofá - Eu só não consigo jogar fora três anos da minha vida sem tentar salvar esse casamento – ele pegou a mão dela na dele, observou a delegada olhando para os dedos entrelaçados - Eu amo você, eu realmente te amo. Eu só não quero olhar para trás depois de te perder e pensar que eu poderia ter tentado mais. – ele fez uma pausa e soltou a mão dela antes de dizer - Que, acredite, é exatamente o que o Stenio está fazendo nesse momento.
Ela o olhou com certa surpresa no olhar, não esperava uma resposta com essa honestidade. Será que Stenio queria ter tentado mais? Deus sabe que ela queria. E isso era o que doía mais, ela queria ter tentado mais, ter insistido mais.
Com Stenio.
Ela iria se arrepender de não se dar uma chance com Rafael? Ou ela iria se arrepender ainda mais de tentar algo com ele e, no processo, perder Stenio? Eram perguntas demais para uma noite e a delegada não fazia ideia de como as coisas haviam ficado na casa dele.
- Eu preciso de um tempo – era o máximo de uma resposta que ela conseguiria dar agora.
- Eu também – Rafael disse por fim - dorme no quarto que eu durmo no sofá.
Foi só então que ela reparou nas roupas de cama ali perto da poltrona. Ela se levantou e sem dizer mais nada se encaminhou até o quarto. Observou o quarto de Creusa vazio, ela havia ido dormir na casa da afilhada devido ao casamento. Era melhor que ela não estivesse ali de qualquer maneira.
Ao se trancar no quarto, a delegada decidiu tomar um banho antes de deitar-se, mas logo descobriu que não havia sido uma boa ideia. Ao passar o sabonete pelo corpo, se deparou com a marca de Stenio forte em sua perna. Se lembrou da sensação dele ali, junto dela, tocando-a como apenas ele sabia fazer.
Pensou no marido dormindo no sofá na sala e nas mãos do amante acariciando o seu corpo quando se deitou na cama. Tudo estava errado e ela não fazia ideia de como seguir a partir dali.
Amava um homem e era casada com outro, uma bela receita para o desastre.
***
Pepeu terminava de trocar Liz para dormir quando a campainha da casa começou a tocar de maneira insistente, assustando a ele e a Drika. Colocando a pequena no colo da mãe, ele foi até a porta observando pelo olho mágico. Drika o havia seguido até metade do corredor e ficou confusa com o olhar que o marido lhe lançou, até ele começar a destrancar a porta.
- Entra, sogrão – ele disse, abrindo espaço para que o advogado entrasse na casa.
- Ihhhh, sabia – Drika disse, colocando Liz no chão, que correu até o avô.
- Vovô!! – ela o abraçou animada, se aninhando no ombro dele – você vai dormir aqui em casa hoje?
- Eu posso? – ele perguntou para a neta, logo em seguida olhando para o casal – tem cama pra mim?
- Você pode dormir na minha cama comigo! – ela disse animada, arrancando um sorriso de Drika.
- Meu amor, sua cama é pequena demais pro vovô – ela caminhou até eles, pegando a filha no colo – mas o vovô pode dormir no sofá que é bem espaço e vira cama, lembra?
- Na sala é chato! – ela disse triste, mas já bocejando de sono.
- É, chato mesmo – ela deu um beijo na cabeça da filha, passando ela para Pepeu – mais chata ainda é você com sono.
Drika brincou e Liz começou a dar risada junto da mãe. Stenio ficou observando quando Pepeu pegou a filha e a levou até o quartinho que ela dividia com Lucas que, pelo silêncio, já estava dormindo.
Quando estavam sozinhos na sala, ela achou seguro conversar com o pai.
- O que que aconteceu? – a filha perguntou se sentando no sofá, fazendo sinal para que ele fizesse o mesmo.
- Acabou – ele parecia muito mais conformado do que triste – meu casamento...acabou.
- Porque você foi atrás dela no banheiro, pai? – ela ainda conseguia se lembrar da expressão do pai, como se vida dele dependesse daquele momento.
Ele não se orgulhava disso e talvez, pensando agora friamente e longe de Heloísa, talvez ele não tivesse ido atrás dela. Mas no fim, era como se ele não tivesse controle sobre o corpo dele.Stenio respondia apenas a ela. Precisava sentir Helô, o gosto, a maciez da pele...precisava dela.
Não era racional, e nem tão pouco apenas coisa de carne. Ele a amava, se sentia completo com ela e ansiava por esses momentos, ainda que roubados, quando podia se lembrar o quão mágica era a sensação de tê-la para si.
- Eu não consigo não ir atrás da sua mãe, Drika. – Ele disse por fim, afinal, isso resumia bem - Como ela ficou depois de tudo?
- Parecia confusa quando a gente deixou ela em casa – a filha havia observado a maneira como a delegada olhava pela janela, prestes a chorar - Vamos ver se ela não aparece aqui também daqui a pouco.
Stenio se permitiu sorrir pela primeira vez naquela noite de maneira sincera. Nunca havia imaginado durante sua vida que seria capaz de ter uma conversa madura com Drika e agora aqui estava ele, buscando abrigo com a filha como ela tantas vezes havia feito com ele.
- Você acha que tem chance deles se separarem? – O advogado olhou para a mais nova nervoso, mas havia um que esperançoso em seu olhar.
- Não sei. A reação de Rafael foi diferente da Julia, pai. – Tudo havia sido um verdadeiro caos quando eles voltaram para a mesa e os dois não estavam lá - Ela voltou e vocês não estavam na mesa, levou alguns minutos pra ela começar a procurar vocês por tudo, inclusive no banheiro. – Drika olhou para ele confusa - Vocês estavam onde?
- Num lugar de acesso restrito. – Ele explicou com um certo sorriso nos lábios, havia sido esperto - Eu conhecia a casa.
- Para de falar disso com orgulho – ela reprimiu o pai, falando como a antiga Drika falaria - Já é ruim pensar nos pais fazendo sexo, sexo no banheiro em um caso extraconjugal tá sendo demais até pra mim. – A mais nova olhou para o pai rindo - Aliás, qual é o fetiche de vocês com banheiro?
- Não é fetiche! - Stenio disse com os olhos arregalados - É improviso, e eu não vou ter essa conversa com você.
- Que seja – ela parou de rir e ficou séria, voltando a falar sobre o assunto principal - Rafael ficou lá parado e só foi embora quando viu a mamãe. Eu não acho que ele vá dar o divórcio tão fácil assim.
- Eu não perguntei se ele vai dar o divórcio – o advogado olhou para baixo, sem saber como explicar. Era outra ponta da questão que realmente importava - você acha que ela vai pedir?
Para ele isso importava mais do que qualquer coisa, talvez. Perceber numa atitude concreta vindo de Helô mudaria tudo. Se separar de Júlia era uma escolha consciente que morava na mente do advogado desde que havia reencontrado Heloísa. Ele sabia que não era plenamente feliz ao lado da loira, mas até então ele não tinha nada além disso.
Até ele e a delegada se envolverem e ele perceber que ainda era feliz ao lado dela. Esperava, de certa forma, que ela sentisse o mesmo. Mas tudo com Heloísa era pensado, riscos calculados, pés 100% no chão.
E isso o aterrorizava agora, porque a certeza de Heloísa residia no casamento com Rafael, e não no simples sentimento pelo advogado.
Ele tinha medo.
- É impossível tentar acertar o próximo passo dela – ela chegou mais perto do pai, encostando a cabeça no ombro dele - mas eu espero que vocês dois se acertem.
- Mas olha...- o advogado riu, se lembrando que ela havia sido contra o segundo casamento - quem diria.
- Vocês se amam, de um jeito torto, mas se amam. E as crianças amam quando vocês estão juntos. – Ela se afastou, olhando para o pai mais séria - Eu só queria pedir uma coisa.
- O que? – ele perguntou receoso
- Independente do rumo que as coisas tomem agora, não virem a cabeça dos meus filhos do avesso – ela falava de ambos, mas com tudo isso acontecendo estava preocupada com Lucas, tinha medo de como o filho iria reagir se eles parassem de se falar novamente - Eles se acostumaram com vocês convivendo, eles gostam disso. Não destruam isso pra eles.
Havia certo orgulho no olhar dele, uma coisa que Drika não estava acostumada a receber. Mas ver a preocupação genuína da filha com as crianças, mexia sempre com Stenio. Era incrível como a filha dele havia se tornado uma mãe absolutamente maravilhosa.
Ele também se preocupava com os netos. Antes havia a rotina de não falar com um avô sobre o outro, era fácil de entender. Mas agora, eles haviam bagunçado tudo com caminhadas na praia e danças na sala de estar. Eles haviam construído, sem querer, uma noção de família que as crianças até então não tinham. Era bonita, era profunda e era também frágil.
Precisariam ser mais responsáveis agora.
- Eu prometo – ele disse firme, certo. Era um compromisso.
- Boa noite, pai. Amanhã a gente conversa. – ela se levantou e foi até o quarto, mas voltou correndo apenas para ter o prazer de repetir a frase que havia escutado a vida inteira - Dorme e pensa no que você fez!
Stenio se deitou no sofá e só então percebeu que estava muito mais exausto do que achou que estaria, mas também pudera, já passavam das três da manhã. Não demorou muito para que ele adormecesse, ali, deitado no sofá da casa da filha.
Ele acordou assustado, depois do que pareceu apenas um cochilo, com uma vozinha baixa sussurrando perto dele.
- Vovô – era Liz, com seu pequeno cobertor e seu “au au” no colo - posso dormir com você?
- Pode, meu bem. – Ele abriu espaço para que a pequena pudesse subir - Pode.
Liz se aconchegou no avô, ainda abraçada ao seu cachorrinho de pelúcia. Isso era o mais próximo de um sentimento de paz que ele sentia naquele dia, depois de tanta confusão. Liz e Lucas sempre o haviam segurado firme, mesmo quando ele pensou em desabar depois do divórcio.
Não existia machucado algum em Stenio que esses dois não tivessem ajudado a curar.
Ele esperava que a neta dormisse, logo, mas Liz tinha outros planos.
- Eu quero usar um vestido igual ao da vovó quando eu crescer – ela disse baixinho, com medo de acordar a mãe e levar uma bronca por estar ali.
- Ela tava muito bonita, né? – ele concordou baixinho, fazendo cafuné nos cabelos da neta.
- Eu acho a vovó a mais bonita do mundo – ela olhou assustada pra ele como se se lembrasse de algo - depois da mamãe!
- Você tem bom gosto – ele acalmou a neta que voltou a se aconchegar nele.
Ela ficou em silêncio por algum tempo e Stenio poderia jurar que ela tinha adormecido. Precisou rir quando a voz dela preencheu o ambiente novamente.
- Eu gosto quando todas as minhas pessoas favoritas tão juntas, igualzinho hoje – Liz disse feliz, se lembrando da festa de casamento, alheia a tudo que havia acontecido - Hoje foi legal.
- Suas pessoas favoritas? – Ele olhou curioso para a neta.
- É, eu já te falei! – ela respondeu um pouco sem paciência – A mamãe, o papai, o Lucas, você e a vovó – a pequena contava nos dedos as pessoas para ter certeza de que não havia esquecido ninguém - Eu gosto do tio Rafa e da tia Ju, mas não é a mesma coisa. Tem problema ser diferente?
A expressão da neta era de uma preocupação tão genuína que ele não aguentou, inclinando a cabeça para baixo, ele deu um beijo na bochecha da neta, tranquilizando a menina.
- Não, meu amor. – Ele percebeu o olhar dela ficando mais suave - Tá tudo bem gostar deles de um jeito diferente.
- Você também tem pessoas favoritas? – a neta perguntou curiosa, como sempre era.
- Tenho. – ele pensou um pouco e respondeu sincero, incluindo até mesmo Pepeu na conta - As mesmas que as suas, e você!
Ela parecia satisfeita com a resposta, até finalmente perceber algo.
- Você gosta da vovó diferente da tia Ju? – a neta o encarou na expectativa de uma resposta.
- É um pouco diferente – Stenio precisava que ela parasse com as perguntas o mais rápido possível.
- É mais ou menos? - Mas ela, infelizmente, continuou.
Para essa pergunta não havia por que pensar na resposta.
- É mais.
- Mas porque você mora com a tia Ju, então? A vovó também gosta mais de você do que do tio Rafa? – ele quase podia ver a cabecinha dela trabalhando, tentando assimilar todas as coisas.
- Você tá fazendo perguntas demais pra quem ia dormir, heloisinha. – O advogado resolveu desconversar, fazendo cócegas de leve na neta.
- É LIZ! – ela disse um pouco mais alto, tentando segurar o riso causado pelas cócegas.
- Eu sei, mas tá parecendo sua avó quando não para de falar e fica fazendo pergunta – ele brincou com a neta, esperando-a se acalmar, se aconchegando nele novamente – Boa noite, princesa.
- Boa noite, vovô.
Ela havia mudado no momento em que ele deixou a caneta riscar o nome dele, com sua grafia, nos papéis do divórcio. Havia mudado quando ele embarcou em um avião rumo a Portugal sem olhar para trás. Havia mudado quando ele se casou com outra pessoa.
A vida dele apenas voltava aos eixos agora, ao reencontrar Heloísa. E ele não tinha dúvidas: essa era a decisão certa, a única possível. Abraçado junto ao corpo da neta, que tanto lhe lembrava a avó, ele se permitiu ser inundado, pela primeira vez em meses, por um sentimento novo.
Era paz.
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