"Só ri de uma cicatriz quem nunca foi ferido".
William Shakespeare - Romeu e Julieta
"Aí, vovô, você não faz o meu tipo... filha da puta!", disse o Capitão com a voz grave.
Elizabeth iluminou o quarto no instante em que ouviu a voz de Heichou. Ele segurava a arma na altura das costelas de sr. Crane, a mão-boba do velho não passou despercebida.
"Não toque nele, merda!", bradou ela saltando por sobre o Capitão, empurrando o velho para levantar-se da cama, tirando-o da mira. "Ele não gosta de ser tocado. E, não use palavras como 'safadinha' em relação a minha pessoa!".
"Não se zangue, Capitão, foi um engano. Quanto a você, safada... te esperei e não apareceu - disse que iria. Agora vamos! Não quero ninguém como platéia, muito menos tenho a intenção de dividi-la", afirmou o homem num tom confiante, agarrando ela pelo punho. Pouco tempo antes, andava com dificuldade, agora arrastava Liz para a porta.
Levi disparou para o chão, o estampido ecoou pegando a todos desprevenidos. "O próximo é na sua cabeça, careca de merda.", ameaçou Heichou com olhar inflamado.
"Oh... por favor, não direcionem agressões violentas contra esse meu irmão!", gritou Sra. Crane entrando apressada, "você veio atormenta-los?! (Envergonhando o nome da família). Vamos, deixe nossos convidados em paz!"
Ela o levou, apesar dos protestos do irmão. Liz ainda atordoada voltou-se para Levi, o viu guardar a arma dentro da roupa, e suspirando pensou, "ele não é exatamente um príncipe encantado, que recita poemas épicos. Não, de forma alguma. Ele amedronta e é perigoso. Impossível ler suas ações... Sarcástico, insultante; parece mau, mas é um homem excelente: sem vícios ou ambições perigosas, nem falhas no caráter... seria um bom amigo - se não me desprezasse tanto.", ela fez uma pausa olhando a expressão em seu rosto, mandíbula tensa, com olhar cheio de fúria, "mas, mesmo com esse seu desprezo me protegeu.".
A velha esotérica retornou para colocar panos quentes na situação, pedia inúmeras desculpas, "queira nos perdoar; a viuvez não fez bem a ele. Eu diria: 'Durmam sossegados', mas não vão ficar, certo, Capitão? Não me olhe com desconfiança; não sou uma inimiga. Bem, acho que é a hora da despedida - ou chegarão atrasados. Sejam rápidos, vão! ADEUS, meus queridos!".
Com essas palavras ela saiu acenando com um sorriso repleto de mistérios.
"A velha disse: 'a chuva não vai parar por hoje'. Agora é meia-noite e cinco minutos, já não ouço os pingos da chuva no telhado...", disse Levi olhando intrigado seu relógio, "vamos pra casa, Carter.".
Liz acenou concordando. Era uma noite estranha, e seu maior desejo era que acabasse. Rápido - como foi aconselhado - apanhou os pertences, guardando-os na bolsa. Envolveu-se em seu xale, calçou as botas, enquanto ele também se aprontava, zangado, apanhou o sutiã da maçaneta do banheiro praguejando baixo.
♡☆♡☆
Não demorou para estarem nas ruas frias, com pouca luz, quase vazias. Elizabeth levantava a barra do longo vestido vermelho, para não arrasta-lo na calçada molhada. Levi ponderava, sra. Crane não conseguiu o convencer de seus dons esotéricos, mas aquela pulga atrás da orelha atormentava, gostaria de saber mais sobre ela. Também observava a dama de companhia, ela estava em silêncio, percebeu então que isso era típico de quando se entristecia.
Seguiram sob o céu escuro, durante aquela melancólica madrugada. O vento gélido assobiava entre as vielas, e cortava a pele, de repente Elizabeth parou.
"Acho que tenho que te agradecer. He... Obrigada por me ajudar! Ninguém mais faz essas coisas.", agradeceu mirando o chão, ser defendida era quase humilhante para a natureza dela, especialmente por Levi.
"Não vai ficar sentimental por isso, vai?".
"Você é insuportável!", disse rindo.
Eles se entreolhavam, apesar de tudo se bastavam neste instante, o frio não era sentido por Levi, seu corpo estava febril. Não poderia simplesmente voltar para casa e dormir, como se nada estivesse acontecendo, ainda que, a presença de Elizabeth o tirasse do eixo, contrariando todos os seus sentidos.
Avistou pouco à frente um bar, cuja a entrada não possuía degraus. Era barulhento e lotado, aparentemente muitos esconderam-se da chuva naquele estabelecimento. Adentrou sem aviso. Confusa Elizabeth entrou o seguindo. O lugar tinha um odor forte de cerveja preta misturado com perfume barato; apesar da cadeira de rodas não encaixar nas antigas mesas dali, foi onde Heichou ficou, a Dama sentou-se na cadeira mais perto dele. Atrás dos dois, ficava o balcão lotado de canecas vazias, do outro lado uma estante com incontáveis garrafas. Os olhares sem receio cairam todos sobre eles.
Apreensiva ela dizia, "estão olhando para você, Levi. Não estávamos indo para casa? Não estou vestida pra...".
"Ninguém vai ver através do seu vestido, pra saber que está sem suas roupas de baixo...", ele a interrompeu com o olhar vidrado, foi possível ver sua pupila dilatar, e Elizabeth rubrou.
"Está se vingando por te deixar sem cueca?".
"Talvez...", respondeu tranquilo.
Liz estava desconfortável, algo que para Heichou foi ótimo, sentiu que naquele lugar estava no comando, nada vulnerável como no quarto, onde ela dominou por inteiro. Ali, ele controlava com mais calma a si próprio. Queria poder falar com alguém sobre seus anseios, e recentes pensamentos, como não havia ninguém, um lugar mais tumultuado pareceu uma boa opção.
"O que você gosta de beber, Carter?", questionou ele.
"Será que eles servem groselha?".
"Não, bebê. Mas vou trazer o nosso melhor rum pra vocês", disse a garçonete com um cigarro entre os dentes, deixando uma bandeja com petiscos na mesa. Ela parecia entediada, na verdade queria apenas descansar em casa.
"Anh... Obrigada!". Apesar de sentir-se embaraçada, gostou que o soldado entrara no bar. Os únicos lugares em que ele realmente se propôs a ir, eram fúnebres e tristes. Naquele local havia outra atmosfera, mais alegre com petiscos saborosos, pessoas e seus infindáveis assuntos, risadas e flertes. Também era uma boa distração para ela após o susto. Sem demora o rum chegou, eles agradeceram.
"Sua bebida, Carter, por minha conta.", disse ele.
"Valeu!", agradeceu sorrindo. "A minha piada virou um encontro?!".
"Eu entrei sozinho, você veio porquê quis.", afirmou levando o rum até a boca.
"Está me mandando embora?! Você tem razão, se fosse um encontro ia tentar agradar... Convidar com jeitinho, dizer que estou bonita, querer me fazer rir...", fez uma breve pausa, "no fim - quem sabe - um beijo, talvez...".
"Não tenho tempo pra essas bobagens.", disse seco.
"Existe outro jeito?".
"Você está aqui, certo?".
"Então, é um encontro no estilo 'Levi'...!?", concluiu Liz tomando do rum.
Ela tentava inutilmente não sorrir, não entendia, e pela primeira vez não sabia o que fazer. O fitava, ele apoiava a mão no queixo, segurando o copo com a outra com seu jeito peculiar. Seu olhar límpido, o cabelo um pouco desalinhado, o paletó preto contrastando com a pele alva.
"O que foi? Meu rosto costurado chamou sua atenção?", indagou pousando o copo sobre a mesa. "Fiz merda... e uma Lança do Trovão explodiu na minha cara, foi isso o que aconteceu."
"Sempre espera o pior de mim. Suas cicatrizes não me chocam, já tenho as minhas para lidar...", rebateu mais ríspida que o planejado.
"São muitas?", ele esperava ouvir a história da estranha cicatriz no tornozelo dela.
"Sim, eu tenho muitas estrias na bunda...", respondeu sincera.
"He... Deve ser horrível.", disse sarcástico revirando o olhar, sentiu vontade de rir, porém não se permitiu a isso.
"Para alguns talvez seja. Mas, como sobreviveu, Levi?".
"Hange.", respondeu pesaroso.
"Agora entendo. Foi assim que ela te salvou...", afirmou estendendo a mão até a dele, que estava gelada, encolheu os dedos tentando disfarçar como estava trêmulo diante dela, puxando o ar pela boca.
Liz preferiu não alongar o silêncio, dissipando a sensação de coração apertado. "Mudando de assunto", iniciou a dama, "não acredito que aquele velho - que se mostrou tão amável - te apalpou. Será que não viu meu nome na cueca na sua bundinha?", brincou para distrailo-lo, e desatando as mãos cobriu os lábios com a mão ao ver a garçonete corar, trocando a bandeja vazia por uma cheia.
Ela deixou também um guardanapo com um recado, dizendo discreta, "a mesa no fundo mandou...".
"Não diga frases como essas em voz alta, Carter.", rosnou Levi impaciente entregando sem delicadeza o guardanapo para ela.
"Relaxa um pouco! E, me chame de Liz, falou?", falou ela repreendendo-o descontraída, e depois leu o recado no guardanapo em voz audível, "'Beijos de alguém que deseja te conhecer. Capitão Levi, quero morder seu corpo todinho. Se sim: tire o casaco'. (Risos). Era pra você, Bafo de chá. Está assinado como: C. Azarias", ela suspirou buscando com os olhos a tal mesa, "hummm... olhando daqui ela é bonita, loira, parece limpinha; pernas longas, acho que tem todos os dentes... menos um da frente".
Um pequeno sorriso involuntário surgiu no rosto de Heichou perguntando, "está mentindo outra vez, Carter?".
"Se está curioso, por que não olha e descobre?", rebateu atrevida.
"Go-gosto... gosto do que estou vendo agora.", afirmou veemente, apesar de tropeçar nas palavras, encarando Liz.
Levi afastou-se ao ver a garçonete se aproximando, repondo a bandeja outra vez. De repente o soldado já suspeitando, enfiou o braço sob a mesa e puxou uma criancinha, maltrapilha e suja de lá, responsável por subtrair os petiscos.
"Ah... calminha, pirralha fedorenta!", disse Heichou em tom baixo.
A pequena criança de olhinhos castanhos, se debatia para ser solta. Era franzina, muito pálida e magra, tremendo de frio. Porém feroz para o tamanho, esforçado-se com toda energia para escapar.
"Isso não é lugar pra criança.", falou Elizabeth envolvendo seu xale nela. "Onde estão seus pais?".
Não houve resposta, porém Heichou interveio, "não percebeu, Liz, ela vive na rua... deve estar sozinha. Se também não chegou a notar, está com fome.".
A jovem olhou profundamente para Levi, e voltou o mesmo olhar para a pequena criança, que assustada mordeu o soldado. Antes que ele pusesse ter alguma atitude, Liz tomou aquela pessoinha em seus braços, era pequena como um bebê, tendo não mais que três anos de idade, certamente.
A criança sentiu confiança, encostou a cabecinha na altura do coração de Elizabeth, inspirando profundamente agarrada ao xale. Seu queixo tremia, mas Levi usou seu casaco para cobri-la também. Havia tanto tempo que não recebia carinho, ou atenção, que estes simples getos espantaram a pequena.
"Melhor alimentar ela.", disse Capitão Levi nada simpático.
"O que quer comer, pequena? Pode pedir qualquer coisa!", reiterou Elizabeth afável a levando até o balcão.
Ainda mais surpresa que antes, a criança quis uma torta de maçã, toda enfeitada. A Dama de Companhia também pediu mais petiscos, além de água, e pãezinhos. O dono do bar não apreciou a presença da pequena, dizendo que ela incomodava aos demais clientes, contudo não se negou servi-la.
Enquanto escolhiam a comida, a loira notando que Heichou tirara o paletó não perdeu tempo, chegou com tudo, crendo que esse era o seu sinal. Deixando dois copos de bebida na mesa, ela sentou-se onde Liz estava antes.
"Boa noite, Capitão Levi! Me chamo Carla Azarias, é um prazer...", cumprimentou lhe beijando a bochecha.
"Essa cadeira está ocupada.", avisou apático.
"Humm... Não estou vendo mais ninguém aqui.", afirmou Carla com voz sensual, acariciando o ombro, de Heichou. "Você é forte! Posso sentir seus músculos?".
"Não!", respondeu esquivando-se dos toques, mas ela não se deixou abalar pela rispidez do soldado.
"Ah... sua voz - dessa forma, bravo - é tão excitante. Quero ouvir de novo... sem roupas.", sussurrou no ouvido dele, apertando sua coxa.
Estalando a língua, o soldado tentava entender, não estava acostumado com investidas, menos ainda uma tão direta. Virou o rosto buscando Elizabeth com o olhar. Carla cruzou as pernas, enquanto continuava com seu flerte. A loira com olhos de âmbar, tinha os lábios pintados de vermelho, sorria o tempo todo, abraçando e afagando a nuca raspada de Heichou. As vestes eram uma saia lápis de linho azul marinho e camisa de botões justa.
Liz voltou seu olhar para a cena, é difícil descrever o que sentiu, mas era a mesma sensação de chegar no armário e descobrir que outra pessoa já comeu seu chocolate que estava escondido.
A Dama de Companhia, preferiu não ficar encarando, não podia dizer apenas de olhar aquele semblante sem expressões, se ele estava gostando ou não. Pensou em como ficaria irritado caso o atrapalhasse, assim sendo, dedicou toda sua atenção para a criança. Pensava, "para qual de vocês não podíamos nos atrasar? A pequena ou a loira? A sra. Crane me assusta...".
Afastando tais pensamentos, Elizabeth questionou a criança, "tudo bem comer aqui no balcão?".
A criança devorando brutalmente a torta disse "sim" balançando a cabeça. Não possuía bons modos, mastigando de boca aberta, e comendo com as mãozinhas. "Meu nome é Elizabeth Bellatrix Carter, mas pode me chamar de Liz. Qual é o seu nome?".
"Asli, só Asli.", respondeu de boca cheia, comendo mais, repousando nos joelhos da jovem. A voz infantil era doce e rouquinha. Sorriu pela primeira vez, ao sentir um cafuné nos cabelos.
"Asli é um nome ótimo. Muito prazer, Asli!", Liz calou-se encarando a imagem daquele pobre criaturinha. "Quer vir para nossa casa?", perguntou ela com ternura, "vai ter abrigo e comida, um lugar quente para dormir... é mais seguro pra você... pelo menos até acharmos sua família - se tiver uma.".
A resposta veio tarde. Os olhinhos castanhos brilhavam para a oferta, porém o medo era presente. Juntando coragem Asli se decidiu, "Eu... Eu quelo. Sim, quelo fica pelto de você.".
A jovem sorriu com a resposta. Quando Asli saciou sua fome, tirou um lenço do decote, e limpou o rostinho e mãos sujas de comida. Também tirando o dinheiro do decote, pagou toda a conta da noite - incluindo a de Levi.
Sem poder evitar tornou a mesa. Carla ao vê-la se aproximando com a criança desocupou a cadeira, sentando-se no colo de Heichou.
"Oi, Oi, Oi...", resmungou ele.
Elizabeth apanhou sua bolsa, com Asli no colo, fez valer sua alcunha e como uma dama despediu-se educadamente, mas voltou dez segundos depois, agarrou os cabelos de Carla e puxou arrastando a loira para fora do colo dele.
Continua...
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