K. Seulgi
— Sooyoung falou que ela acordou bem. Estou a caminho do hospital agora… — minha voz tremulava de leve.
— Não acha melhor chamar a polícia para interrogá-la? — SeungWan, ainda sonolenta, questionou.
— Vou tentar conversar pelo procedimento padrão. Caso precise, eu chamo o psicólogo… — solto um suspiro ao parar no semáforo. Com toda a experiência que tenho, ainda assim me sinto uma iniciante. — Chamamos a polícia como última medida.
— Eu ia te falar algo ontem, mas preferi deixar quieto para não discutirmos.
— Pode falar.
— É… Eu vi uma notícia sobre a rua onde ela foi encontrada. Disseram que está acontecendo um tipo de anomalia lá, radioativa, mas que não afeta a saúde de ninguém. Mesmo assim…
— Eu ouvi ontem de manhã, se não me engano. Ia te perguntar sobre, acabei esquecendo. — ouvi uma movimentação do outro lado. SeungWan provavelmente se levantou da cama.
— Acha que foi por isso que ela está com urânio e césio no sangue? — Wan pergunta e mastiga algo.
— As quantidades não batem... Depois nos falamos. — manobrei o carro na vaga de sempre; atravesso com pressa a chuva fina que caía do céu.
Caminhando rápido, cumprimento os colegas por quem passo e entro em minha sala para me vestir corretamente. Deixo, por precaução, alguns jalecos no armarinho de remédios; higienizo as mãos e apanho a prancheta em cima da mesa.
Há muitas perguntas a fazer. Com o tempo, todas serão respondidas — assim espero.
Enquanto o elevador me leva até o devido andar, percebo a falta de um peso na roupa. Droga, o crachá. Devo ter esquecido minha identificação na bolsa.
Uma enfermeira entra no quarto da paciente com algumas coisas na mão. Minhas mãos tremulavam de leve. Respiro tão fundo que consigo sentir o pulmão se expandindo no peito. Atravesso a entrada do quarto e, bem ali, sinto algo. Algo estranho. Um arrepio, mas diferente de todos que já senti. A mulher mantinha o olhar focado nos “pés” do leito, que ficavam na direção de onde eu estava. A enfermeira trocava o pacote de soro suspenso, conectado por fios ao braço dela.
Mais alguns passos, e seus olhos cruzam os meus.
— Seulgi… — ela sussurra; meu nome, com todas as letras.
A enfermeira, nova no hospital, me olha e faz uma reverência curta. Logo que termina de pendurar o soro, deixa o cômodo.
Por um momento, esqueci de minha posição ali.
— Boa noite. — me curvei, ficando ao seu lado no leito, mas não muito perto. — Sou a doutora Kang, clínica geral do hospital. Como posso te chamar? — ela sorriu fraco.
— JooHyun… Bae JooHyun. — apesar do sorriso transparecendo simpatia, seus olhos perdiam-se pelo chão do quarto.
— Prazer, senhorita Bae. — estendi a mão; JooHyun, demonstrando receptividade, a apertou. Tentei ignorar o arrepio que me percorreu com o toque. — Já nos conhecemos? — a expressão dela mudou aos poucos. Suas sobrancelhas franziram, e os olhos não sabiam o que observar.
— Eu… E-eu… — encostei em seu ombro para acalmá-la. — Eu não sei.
— Tudo bem, JooHyun. Não vou te apressar, está bem? — ela concorda. Puxo a cadeira que fica próxima à porta. Com a prancheta no colo, respiro fundo novamente. Minhas mãos suavam tanto que mal conseguia segurar a caneta. — Posso fazer algumas perguntas? — balançou a cabeça de novo.
Escrevo seu nome na linha superior da folha (nome este que combinava perfeitamente com ela). “Bela adormecida” também lhe caia bem, embora fosse brega.
— Vamos fazer alguns exames depois, pois você quase sofreu um AVC hemorrágico. Tudo bem? — concordou. — Certo. Você ficou em coma por 8 dias. Além do AVC, não sofreu nada mais grave. Esperamos que alguém viesse procurar por você, mas… ninguém veio. Você é estrangeira ou reside em outro país há algum tempo? — as mãos dela, delicadas e com cicatrizes, apertavam de leve o lençol.
— Eu… não sei. — ela parecia estar sendo sincera ao responder. Ou estava muito confusa, o que é natural após um AVC e um coma, ou estava com perda de memória. Fiz esta anotação no canto da folha.
— Tudo bem. Lembra do que aconteceu antes de ficar inconsciente? — ela negou com a cabeça. Sua expressão estava neutra, embora os olhos carregassem certa tristeza. Tentei ao máximo manter a neutralidade na voz e no rosto. — Você foi encontrada no quintal de uma família, no final da rua Wangsimni-ro. Eles disseram que não sabem como você apareceu lá. Ao que tudo indica, eles de fato não fizeram nada. — parei a fala para recuperar o fôlego. — Você estava nua, sem documentos ou celular. Não haviam sinais de agressão de nenhum tipo. Você pode me dizer como surgiram essas cicatrizes? — ela olhou para as próprias mãos por um tempo.
— A Confederação… — falou baixo. Anotei as palavras no papel. JooHyun provavelmente estava delirando, sintomas comuns em alguém no estado dela.
— Confederação?
— Eu não sei, Seulgi… Doutora Kang, desculpe.
— Tudo bem, JooHyun. — sorri, a confortando. — Tentamos fazer reconhecimento facial e por impressão digital, mas não conseguimos. Nem por DNA. Parece que você não tem registros de nenhum documento no país. Procuramos também em sites de desaparecidos e procurados, e nada. Agora que sabemos seu nome, será mais fácil. Tem alguém com quem podemos entrar em contato? — ainda com os olhos presos no chão, ela balançou a cabeça em negação.
— Acho que não tenho aonde ir. — o tom de voz de Joohyun ao falar aquilo apertou meu peito.
— Vemos isso depois. Eu te garanto que não vamos deixá-la desamparada. — sua visão voltou a mim, e as bochechas se contraíram num sorriso tímido. — Já esteve em alguma usina nuclear ou base militar? — mais uma vez, o silêncio me respondeu. — Os exames de sangue que fizemos constam radiação no seu corpo.
— Eu não… Desculpa. — acariciei sua mão, que pareceu relaxar um pouco. Levou a outra mão à testa.
— Por hoje, vamos encerrar aqui… Muito obrigada por ter falado comigo, JooHyun. Entendo como pode estar sendo difícil para você. — nossas mãos estavam grudadas. Ela não fazia menção de querer se separar, tampouco eu. Eu poderia dizer que mantinha o contato físico para acalmá-la, já que ela deu a abertura para tal; poderia também dizer que tinha aquele tipo de proximidade com todos os pacientes. Mas não era verdade. Não conseguiria nem queria explicar o que estava acontecendo.
Olhando a mulher tão de perto, desperta e sem hostilidade, sentia ainda mais uma certa ligação com ela. A Bae carregava uma voz que, inexplicavelmente, eu já conhecia. Aquele timbre aveludado e, ao mesmo tempo, doce não seria esquecido por ninguém; seu rosto, muito menos. Ela me observava com a guarda baixa.
— Eu confio em você, Seulgi. — apenas movi a cabeça num “sim” e sorri.
Depois de sabe-se lá quanto tempo, lembrei de que tinha coisas a fazer.
— Vou pedir que façam alguns exames. São exames simples, apenas de sangue e uma tomografia para ver se não houve danos no seu cérebro. Depois, vamos fazer alguns testes motores e psicológicos, para termos certeza de que não ficou com nenhuma sequela. — finalmente desgrudamos nossas mãos, apesar de esse gesto não me agradar muito. Levanto da cadeira e observo a folha preenchida pela metade. É melhor do que nada. — Nos vemos amanhã. — ela acena um “tchau”.
— Se cuide. — sorrio com seu “pedido” antes de me virar para deixar o quarto.
{...}
SeungWan levantou uma sobrancelha e colocou o copo sobre a mesa.
— E como ela sabia seu nome? — os cabelos loiros da mulher balançaram quando aproximou o dorso da mesa.
— Alguém deve ter falado… enquanto ela ainda estava em coma ou antes de eu chegar. — ela soltou um riso irônico, desviando os olhos para algum canto do restaurante.
— Você sabe que não falam nossos nomes aos pacientes. — o que SeungWan disse me fez pensar em outra hipótese para explicar o que provavelmente só JooHyun poderia.
— Bom… Eu e você sempre conversamos no quarto dela. JooHyun deve ter fixado essa informação.
— E como ela sabia que você é a Seulgi antes mesmo de abrir a boca? — levei as mãos ao rosto. Todo aquele assunto estava me esgotando, tirando o sossego que eu tinha nas horas livres. — Tudo bem, vamos mudar de assunto.
— Sei que vai parecer estranho falar isso agora. Não disse antes para não me chamar de louca… — Wan apoiou os cotovelos na mesa. — Eu sinto como se… já a conhecesse. Desde a primeira vez que a atendemos. O rosto dela…
— Okay, vamos ligar os pontos. — ela levantou as mãos, logo retornando-as à mesa. Sobre a toalha branca, ligava pontos imaginários com os dedos. — Primeiro, você sente que já a conhece, mas não lembra. Você. Que quase ganhou o Campeonato Asiático de Memorização. Uma médica, incapaz de esquecer rostos que viu uma única vez na vida. — sua voz soava incrédula, mas não duvidava de mim; ela parecia desacreditar na loucura toda, mesmo acreditando.
— SeungWan…
— Deixe-me terminar. — me olhou séria. — Se ela sabe seu nome, vocês provavelmente tiveram algum contato.
— Eu não lembro de nenhuma memória específica com ela, só sinto que já a conheço. Mas não parece ser “de vista”, sabe? Eu… — parei e mentalizei as palavras que diria a seguir para saber se soaria como uma maluca. E sim, eu soava como uma. — Eu sinto que estamos conectadas… de alguma forma. — SeungWan sorriu, debochando de minha confissão.
— Está apaixonada pela bela adormecida? — seu sorriso se tornou malicioso, um tanto engraçado.
— Você parece uma adolescente falando, sabia? — cruzei os braços. Ela fez biquinho e apertou minhas bochechas. Socaria sua cara plastificada se não estivéssemos em público.
— Seulgi está amando… uma possível criminosa… Que romântico! — dei um tapa leve em sua mão, a afastando do meu rosto.
— Patética. — ela continuava sorrindo, como se toda a situação tivesse virado uma grande piada.
— Você precisa dar uma relaxada. Vive para o trabalho e, como te conheço bem, sei que deve estar pensando nesse assunto há mais de uma semana. — ela apoiou a mão em cima da minha. Eu odiava quando SeungWan estava certa sobre minha vida centrada no hospital. — Mandou mensagem para aquele cara? — neguei com a cabeça.
— Não tenho tempo para namorico.
— Mas quer.
— Não quero, não.
— Seulgi… Consigo sentir o cheiro da sua ovulação daqui. — fechei o punho e levantei na altura do ouvido. SeungWan não parava de rir. Admitindo ou não, ela era minha pílula de felicidade.
Para o resto da noite, concordamos em não falar nada sobre aquele assunto ou qualquer outro do hospital. E a noite fluiu bem. Depois de comer, fomos caminhar por um parque próximo dali. Conversa vai, conversa vem, e nada que tirasse minha paz foi dito.
Levei Wan em casa quando já era tarde; a loira mora do outro lado da cidade e — pasmem! — havia batido o carro uns dias atrás.
Não a acompanhei até seu apartamento, pois sei que ficaríamos conversando por mais um bocado de horas. Voltando pelo caminho mais rápido, eu passava por ruas pouco iluminadas, mas agitadas. Várias boates, bares e baladas abertos àquela hora. E eu me dava conta, passando pelas pessoas animadas e pela música alta, de que não tinha mais aquilo em meus dias. Aquilo: a sensação de aproveitar os segundos, que escapam de nós numa agilidade invisível. Há muitas formas de se aproveitar a vida, e embriagar-se não é a única (nem a melhor). Embora eu soubesse que, na vida adulta, poucas coisas nos fazem tão bem quanto esquecer a realidade — e beber é o meio mais curto para tal.
Assim que estacionei na calçada do quintal, avistei o morador da casa ao lado. Estava sentado na varanda tomando uma lata de cerveja. Aceno para ele, tendo o mesmo gesto em resposta.
Não havia nada a fazer agora senão cair na cama e esperar o sono chegar.
{...}
— Sim, dois primos da paciente Bae vieram visitá-la. Acabaram de subir, na verdade. Eles trouxeram uma sacola com algumas roupas para ela e uma maleta com papéis. Pelos ternos e pela maleta, parecem ser advogados ou algo assim… — Sooyoung me explicava a repentina visita sem desgrudar os olhos do computador. — Trouxeram esse documento. — colocou uma carteira de habilitação com a foto de JooHyun em cima do balcão, logo a tirando. — E assinaram os papéis da internação.
— Disseram mais alguma coisa?
— Não. Mostraram uma foto da família, estavam os dois, ela e mais umas pessoas, todas parecidas. Quando eu expliquei o quadro da senhora Bae, um deles começou a chorar. — concordei com a cabeça.
Alguém enfim veio ajudá-la; a família. A situação dava os primeiros sinais de que se resolveria. Respirei aliviada. Ao me virar, Sooyoung me chama.
— Sim? — ela me olha com um sorriso pequeno.
— Um amigo vai dar uma festa hoje, é aniversário dele. Para poucas pessoas, vai ser na minha casa. Quer ir? — penso automaticamente em boas desculpas. Não, eu deveria ir.
— Claro. Levo alguma coisa?
— Leve o que quiser. Vou te passar o endereço por mensagem depois. — seu sorriso cresceu. Acenei para ela e fui em direção a minha sala.
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