K. Seulgi
— O que ela tem de linda, ela tem de doida. Retiro tudo que disse meses atrás sobre a bela adormecida parecer gente boa… Sinceramente, Seulgi. — SeungWan conclui e dá um longo gole no café preto em sua mão, enquanto eu “saboreio” um energético sem açúcar. — Você deveria se livrar desse problema antes que fique maior que você.
— Me livrar de JooHyun? Ela é minha amiga!
— Não, JooHyun é sua paciente. Você pode não aceitar, também não aceita o fato de gostar dela, assim como não aceitou ter se apaixonado por aquela menina no ensino médio, mas eu vou te dizer… Isso já está indo longe demais. — quase gorfo o energético para fora com o desconforto no estômago; talvez seja pela facada dada por SeungWan ao falar essas besteiras. Nada sai de minha boca para retrucá-la. — Não quero que ela te transforme numa lunática.
— Eu não vou ficar louca…
— Está quase. Abra esses olhos puxadinhos, Seulgi!
— Uau, SeungWan… Uma coreana fazendo piada racista. — bato palmas lentas, e ela gargalha como uma foca. Minha melhor amiga é uma babaca.
{...}
— O dia estava tranquilo, eu até tinha dado alta a um paciente internado há meses. Às vezes me esqueço de que a qualquer momento um desastre vai vir pela ala de emergências, sabe? Daquilo eu não vou esquecer tão cedo.
Em teoria, eu deveria estar preparada para situações como aquelas. Atípicas, mas não impossíveis. Eu não deveria chorar, mas o fiz. Novamente, eu chorava com as mãos na boca. Ainda podia sentir o cheiro do ácido e do sangue escorrendo pelo corpo da moça, que quase não tinha mais pele quando chegou na ambulância. Afundar meu rosto no ombro de JooHyun enganou-me as narinas, e o carinho que fazia em meus cabelos apaziguaram a memória da mulher com olhos furados.
JooHyun não se importou em me consolar por longos minutos. Talvez uma hora. Como é difícil contar o tempo quando estou nos braços de Hyun; ele parece mais gentil, e seu passar não dói.
— Está tudo bem… ela vai melhorar. E eu vou te proteger, sempre. Vou construir um novo mundo para nós, Seulgi. Eu vou consertar o que está quebrado, nada dessa merda vai existir lá. — minha Bae dizia baixinho. Eu desejava ser verdade. Céus, como eu queria que JooHyun cumprisse o que falava, por mais desconexo que soasse! E então acreditei.
Naqueles poucos metros quadrados, nos nossos momentos, nossos e de mais ninguém, tudo era possível.
Mas Hyun saiu de nosso mundinho, logo após me prometê-lo. Levantou e ligou a TV; quando se virou para a cozinha, levou a mão ao rosto, secando pequenas lágrimas que eu não havia percebido estarem lá.
Logo retornou com nossos pratos para a janta, sempre imaculados e melhores que os do dia anterior.
— Receita nova, doutora. Se não estiver boa, finja que sim. — prendi a risada para não soltá-la com o macarrão em minha boca.
— Se eu disser que tem gosto de “comida de hospital”, é elogio médico ou ofensa? — JooHyun virou a cabeça lentamente, semicerrando os olhos. Levantei o polegar e concordei com a cabeça; eu que não ousava falar mal da comida de Hyun, até porque não havia do que reclamar.
Antes de abrir a boca, cheia, para dizer algo, imaginei o possível sermão da Bae por fazê-lo. Ela não gostava disso. Boca fechada até terminarmos.
— Sabe, Joo, percebi que você falou como aquela mulher da frequência não-sei-o-quê… — comentei, sorrindo. — Até a voz é um pouco parecida. — parecida até demais, se eu me permitisse acreditar.
— É de um filme?
— Não. Mas depois fizeram filmes sobre.
— Me deixou curiosa! — abaixou o volume da TV e virou o tronco para mim.
— Eu sei pouco sobre esse acontecimento. Aprendi na escola, muitos anos atrás, e depois vi sobre quando servi ao exército. Todo ano prestamos memória a esse “episódio”. Acho que vai fazer 70 anos mês que vem… — Hyun sempre juntava as mãos e mordia de leve o lábio enquanto prestava muita atenção em algo; e isso tirava muito da minha atenção.
— É coisa grande então.
— Muito. Vários eventos importantes aconteceram como resultado.
— Exemplo…?
— Minha aula preferida era biologia, não História! — sua expressão suavizou-se. — A reunificação da Coreia e mais algumas coisas relacionadas à política… Ah! Eu gosto de assistir vídeos sobre teorias da conspiração às vezes, você sabe, só para passar o tempo. Eu não acredito em tudo, mas imagino filmes sobre, é interessante… Dizem, nessas conspirações, que ainda há frequências de rádio e canais de TV em alguns países transmitindo a tal mensagem. "Informações novas e criptografadas". Provavelmente têm grupos de doidos desocupados na internet que se dedicam a decifrar e ir atrás dessas transmissões. — Hyun concordava de leve, assimilando o que eu disse como se fossem informações vitais. — Conspiração ou não, de uma coisa eu sei: a primeira vez que ouvi a mensagem inteira, no ensino médio, eu até chorei.
— O que dizia de tão importante?
— Ah, a moça falava sobre… — minha pressão baixa, mesmo sentada. Pode ser só uma coincidência; uma brincadeira de Hyun; uma memória inconsciente dela, certamente. — Tem certeza de que nunca a ouviu ? — ela concorda. — Deve ter visto algo sobre na TV, na internet.
— Não faço ideia, SeulGi.
— Ela fala que… um novo mundo espera por nós, um mundo que ainda não foi construído, porque devemos erguê-lo. Eu lembro bem da parte em que ela diz: “Para que um ‘eu’ exista, antes-
— Deve existir um “nós”. — completa JooHyun em sussurros.
— Viu?! Você conhece, sim.
— Eu não… — parou de falar e virou-se com pressa para aumentar o volume da televisão.
A âncora, bem vestida com um terninho azul, anunciava as notícias internacionais do dia, o que me fez contrair as sobrancelhas. JooHyun está interessada em comprar petróleo ou algo assim? — Ontem pela manhã, dia 17 de abril, a sonda espacial Yggdrasil-1 decolou de Cabo Canaveral, na Flórida, Estados Unidos, em direção ao espaço. A missão é de iniciativa público-privada, entre países da América do Norte e da Europa ocidental, contando com altos investimentos de empresas de diversos setores.
Um americano de cabelos loiros e camisa branca de gola alta apareceu na tela. — É uma sonda não tripulada, comandada tanto pela central de controle localizada no Texas quanto pela Inteligência Artificial que geramos especialmente para essa missão. Tyr, a IA com a menor margem de erros desenvolvida até hoje. Com os equipamentos dentro da Yggdrasil-1, vamos estudar e observar a vida e suas probabilidades em outros planetas do sistema solar. — o homem falava com entusiasmo, muito diferente de JooHyun ao meu lado, que encarava a TV com seriedade além do normal.
A âncora voltou para a tela. — O lançamento do foguete não foi anunciado à imprensa, e a entrada de civis foi proibida. A alta confidencialidade do projeto levantou suspeitas do público ao redor do mundo. Cientistas, políticos e cidadãos de países que não participaram da missão contra-argumentam os reais objetivos da sonda, alegando se tratar de um programa de colonização de outros planetas.
— JianYu… — Hyun disse baixinho o nome do cientista chinês antes que aparecesse escrito na tela.
— Em fevereiro do ano passado, detectamos, aqui em nosso laboratório, flutuações quânticas muito altas no subsolo norte-americano. É quase como uma bomba nuclear, em questões de radiação e emissão de ondas eletromagnéticas. Perguntamos a autoridades e cientistas estadunidenses o que pode ter acontecido, e não tivemos respostas. Não queremos conflitos de nenhum tipo, mas parece, para nós, que há coisas acontecendo debaixo dos panos… Analisamos as filmagens e as poucas informações disponibilizadas sobre a sonda Yggdrasil-1, e supomos que há uma câmara criogênica com material genético e aceleradores quânticos de matéria-antimatéria. Não estamos acusando ninguém de nada nem acreditamos em teorias sem sentido, mas temos evidências o suficiente para inferir que os países do eixo ocidental já são capazes de produzir encurtamentos espaciais artificiais. “Buracos de minhoca” ou “teletransporte”, como são conhecidos popularmente. Trata-se de um feito científico revolucionário, e não vamos tolerar que seja mantido em segredo e usado unicamente para interesses políticos. Estamos abertos ao diálogo e a acordos diplomáticos, queremos entender toda a situação com transparência.
— Que loucura… Se for verdade, o que será que vai acontecer?
— SeulGi… — mal ouvi JooHyun me chamar, pois ofegava. — Está acontecendo… Tudo de novo...
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