Folhas são pequenas dançarinas da natureza que têm o vento como seu professor. Bailam entre brisas e ventanias, libertam-se de seus caules e rodopiam em felicidade genuína. Não há dores no ciclo da liberdade. Toda folha, ao cair, faz do solo o seu leito e ali se torna alimento para outras. Outras, cujo pecíolo brota tímido em bainhas para que a espécie imprima suas digitais em nervuras e limbos. A natureza é a mais genuína das magias. É a magia óbvia ignorada ao passar dos dias. Assim, a poesia de uma folha se torna apenas mais uma dentre várias. A riqueza dos detalhes pincelados pela Deusa se tornam apenas detalhes. Detalhes, ignorados. Em seu gênesis, pintara tão delicadamente cada parte do mundo que criou de sua luz para que eles, humanos, seus filhos, tratasse-o como um infindável almoxarifado de recursos para caprichos e um infinito depósito para futilidades. Destroem a mágica e, depois, dizem que ela jamais existiu ou existirá.
Perpétua viveu durante muitos anos. Ela viu o mundo se transformar e se descobrir, viu o passar do tempo rasgar revoluções e modificações. Viu tudo, mas não viu a evolução da empatia humana. A cada ano, década e século, tornavam-se cada vez mais sistemáticos com suas relações mecânicas. É certo que o olhar de alguém para o mundo se modifica quando a sensibilidade da alma dá espaço à metódica. Árvores se tornam madeira, solos se tornam lotes, animais se tornam carne e o ser humano se torna máquina. Assim, consequente e inevitavelmente, o mundo se torna dinheiro. A religião e toda a sua beleza transformados em regras, doutrinas e condenações. Ela viu palavras de amor serem transformadas em armas de ódio, a beleza se modificar em um chama flamejante e queimar.
Há muito pensara que faria tudo diferente. Daria o melhor de si, mais uma vez, iria se esforçar para dar às netas tudo àquilo que não deu à Cassandra e Cora. Quantas de suas escolhas foram corretas? Ela não sabia dizer. Caminhava sobre um delicado terreno, que lhe cobrava cuidado e atenção a cada passada.
Era doloroso encarar Cassandra. O seu peito ardia em uma dor só sua, uma dor não verbalizada. Olhava as cicatrizes espalhadas pelo corpo da filha e podia sentir a sua própria pele queimar. Massacrada pela culpa, Perpétua escolhia o silêncio e sabia que pagaria por ele. Acusara Cassandra do segredo guardado, mas sabia que também era culpada por ele. Tão seu quanto da filha, a omissão pesaria sobre as duas. Enquanto permanecia a tecer, um velho hábito jamais abandonado, ela observava a inquietude de sua cria.
— O que você quer, Cassandra? — o questionamento veio sem que seus olhos abandonassem os movimentos calculados dos dedos.
— Eu? — o magro corpo surgiu por detrás de uma das prateleiras. — Oh, eu não quero nada. Eu estou... Estou... — ela limpou a garganta, aprumando os ombros. — O café acabou.
— É bom que pare de tomar café. Você não dormiu nem por um minuto desde que chegou aqui. Não está na hora de repousar nos braços da Grande Mãe? — a mais velha deixou de lado seus instrumentos e encarou a filha, que parecia selecionar palavras para a sua resposta.
— Eu não durmo. Não posso dormir. — respirou fundo. — Por favor, não me faça perguntas. Não estou pronta para responder. — Perpétua observou os olhos claros e sinceros. Olhos que ela costumava ler com um simples vislumbre. Olhos que se tornaram perdidos, ausentes do sonhador brilho. — O que você está fazendo?
— Bem, eu estou indo fazer café. — os óculos foram deixados sobre a pequena mesinha ao lado de sua confortável poltrona, ela seguiu até a cozinha.
— Você sabe onde está Zelena? Ela simplesmente desapareceu depois do que aconteceu no ritual. Eu estou preocupada. — Cassandra perguntou enquanto caminhava com seus passos atentos atrás da mãe.
— Ela está se sentindo mal por ter mentido para Regina. É sempre assim. Desde que... Bem, desde que ela descobriu a verdade. — Perpétua encheu um mediano caneco d’água e separou o pó que usaria no preparo de seu café.
— Elas são mesmo unidas, não é? Quero dizer, acima de qualquer coisa, elas são como uma só. — um sorriso singelo pintou os lábios da mulher, mas ela o afugentou, retornando a feição neutra. — Eu sempre quis uma irmã assim, sempre quis alguém com quem pudesse contar em todos os instantes, mas Cora sempre foi tão difícil. Ela usava minhas fraquezas contra mim, ela expunha meus erros para você e se deliciava com isso. Nutria um apreço doentio por minhas quedas, mas nunca esteve lá para me levantar. Nunca.
— Você e Cora sempre foram muito diferentes, querida. — o afeto inesperado fez com que os olhos da morena se arregalassem ligeiramente. — Você sempre estava correndo entre as minhas pernas e me perguntando um milhão de coisas. “Como uma semente pode germinar, mamãe? É apenas um grãozinho.” — a risada larga fez com que Cassandra desejasse sorrir, Perpétua pode sentir, mas a filha se manteve séria. — Cora era indecifrável. Na verdade, era difícil decifrar a verdade dentre tantas mentiras.
— E mesmo assim, você a escolheu. — o cantarolar das palavras de amargor fizeram com que uma forte pontada acertasse o coração da senhora.
— Eu não a escolhi. — declarou, pois era verdade.
— Acredite em sua mentira se isso faz com que durma melhor. — ela caminhou em direção à porta, admirando o jardim. Mesmo que seus olhos estivessem perdidos por ali, Perpétua sabia que sua mente revisitava memórias distantes. E muitas memórias ainda seriam renascidas, ela sabia. — O que disse para as meninas? Sobre a mãe delas.
— Que ela está morta, é claro. É melhor que pensem assim. — a senhora soube que qualquer possibilidade de paz fora deixada de lado no momento em que suas palavras chegaram aos ouvidos da filha. Quando Cassandra se virou, os seus olhos estavam negros. Um raio firme cortou o céu, manchando-o com uma forte luz.
— Você fez o que!? Disse a elas que Cora está morta!?
Perpétua desejava responder. Desejava justificar seus motivos e explicar suas questões, mas sua mente fora tomada por imagens que não eram suas. Não eram lembranças, não. Enxergava aquilo que estava distante de sua visão, mas que era visto pela Deusa e levado até ela. Regina. Regina e a mulher de cabelos dourados e olhos verdes como as folhas de guiné, que refletia a luz do pôr-do-sol. Regina e Emma. O fio do destino que as unia bailava entre seus corpos e dançava em seus gestos. Como Perpétua tecia com seus dedos ágeis, os dedos da Deusa compunham o futuro e o amarrava em decisões bem tomadas. Um laço seria dado, um pequeno laço. Quando pensou ter findado o que precisava ver, as cinzas rodearam o tempo e o espaço. No centro da floresta, atada a uma grande árvore, o corpo de sua neta queimava enquanto gritos largos tomavam a noite.
— Mamãe? — a voz de Cassandra era ouvida ao longe, mas Perpétua tinha outras preocupações.
— Vá atrás de Regina. — o rubor tomara sua face e seu corpo estava quente, quase como em uma inesperada febre. Não era o momento para se preocupar com brigas. — Agora!
***
O dia estava belo demais. Extremamente belo. Regina cantarolava entre prateleiras, carregava pilhas de livros para todos os lados e até mesmo ousou encantá-las para que flutuassem em busca de seus lugares. O dia estava belo. Permitiu-se iniciar uma nova leitura, findou documentações importantes, redigiu novos pedidos e cerca de vinte minutos antes do horário de sua saída, tudo estava pronto. Não estava acostumada a se sentir daquele jeito e aquilo a assustava um pouco. Não era só a felicidade, pois, veja bem, ela era muito feliz.
Seus dias eram preenchidos pela presença de sua avó e sua irmã. Ela jamais desejou outra vida, jamais desejou modificações extremas, somente àquelas que eram do desejo da Deusa. Agora, sua tia Cassandra também faria parte de todo aquele universo que as rodeava. Embora Regina tentasse de todas as formas se manter atenta em relação a ela, um estranho conforto lhe tomava o coração ao se lembrar do abraço inesperado que ganhara pela manhã e até mesmo da forma como era analisada pelos olhos claros. Seus instintos lhe diziam que Cassandra merecia mais. Diziam que existia dor em sua alma. Acolhê-la em seu conforto era o desejo de Regina e Regina sabia também ser o desejo de Zelena. Mas sua avó... A avó sempre seria uma enorme incógnita.
Pensar em incógnitas lhe fazia lembrar os olhos verdes e o cabelo loiro. Deveria se afastar de Emma, sabia disso. Ainda que não sentisse mal algum, ainda que somente um estranho calor lhe tomasse o corpo e o curioso desejo de proximidade a levasse até a escritora. Deveria se afastar, porque era o certo a se fazer. Emma era uma desconhecida invadindo o espaço já tão bem arranjado, rasgando a rotina tão certa e espalhando questionamentos por onde antes só havia certezas. Deveria se afastar.
Podia se afastar?
Sentia em seu âmago que seria levada aos olhos esverdeados mesmo se fugisse para a mais alta das colinas, assim como foi levada a eles naquela noite, anos atrás, em forma felina. Seria possível que naquele singelo momento, seus destinos tenham sido cruzados de alguma forma? A morena sabia que existia um enorme risco em tentar adivinhar o futuro, nem mesmo sua avó, que era portadora do dom, ousava expor algumas de suas visões. Sempre ouviu da mais velha que o futuro é dado a partir das decisões que tomamos no presente e, portanto, há um enorme mal em saber antes de fazer. Um passo em falso e tudo será comprometido. A roda do destino girará a um novo rumo.
Quando o fusca amarelo foi estacionado em frente à biblioteca, Regina já estava com a chave em mãos para trancar as grandes portas que guardavam a entrada. Acomodou-se no carro cujo confortável banco lhe surpreendeu. Aqueles olhos verdes se perderam por tanto tempo em seu rosto que a morena questionou-se sobre a necessidade de chacoalhar os ombros de Emma.
— Eu pensei que iríamos ver o pôr-do-sol, mas se o seu plano era apenas contemplar o meu rosto, avise-me para que eu possa me acomodar no melhor ângulo. — ela conteve seu riso. Existia um enorme prazer naquilo. Uma filha da Deusa, nascida da beleza e alimentada da essência felina, é certo que a admiração lhe preencheria o ser.
— Oh! Perdão! — o rubor floresceu em sua face e Regina teve a certeza de que aquilo se tornaria uma das suas coisas favoritas. Emma carregava consigo uma inocência curiosa e, ao mesmo tempo, uma voracidade esverdeada que lhe fazia morada no olhar. — Bem, você é moradora de Storybrooke. Diga-me um bom lugar para ver o sol se pôr.
— Certo. — Regina pensou por alguns instantes, mesmo sendo totalmente dispensável aquele feito. Sabia exatamente qual seria o lugar perfeito, mas selecionou o caminho que mais se distanciava da mata fechada. Não somente pelo risco de Emma se chocar com animais exóticos demais para viverem ali, como também pela certeza de que sua avó saberia que estava acompanhada no instante em que cruzasse os limites. — Vamos seguir os girassóis.
No espaço compartilhado, Emma tentava entender o porquê diabos seu coração estava tão descompassado. Sentia como se nem mesmo a velocidade do carro pudesse corresponder à forma como o maldito órgão pulsava em seu peito. Como se não bastasse, existia um medo tolo de que Regina pudesse de alguma maneira ouvir as batidas incessantes. Concentrava-se em dirigir, reprovando-se internamente quando seus olhos insistiam por buscar qualquer rápido vislumbre da mulher ao seu lado. Quando Regina cortava o silêncio para lhe dar coordenadas do caminho a ser seguido, ela fazia perguntas demais apenas para que a morena continuasse a falar e o mundo não tivesse de lidar com a ausência daquela voz. Emma não queria ter de lidar.
— Logo depois haverá uma curva, então nós teremos que ir andando. — indicou com a mão para fora da janela. A brisa que lhe abraçava o rosto dançava junto aos seus cabelos, mas não incomodava. Na verdade, a escritora logo percebeu que Regina parecia abraçar o vento.
— Não há perigo em ir andando por aqui? Parece tão isolado. — questionou ao estacionar.
— Não, não há perigo algum, Swan. Além disso, nós não poderíamos de forma alguma continuar com o carro. Acabaríamos prejudicando a plantação de girassóis e, acredite, você não vai querer fazer isso. — a morena conteve o riso enquanto negava com a cabeça. Imaginava claramente a expressão enfurecida de sua avó, que passara tantos dias cuidando e semeando cada flor.
— Oh céus, eles são lindos. — o olhar de Emma contemplou o amarelo que tomava um longo espaço e perdia-se junto ao azulado, como se cada flor beijasse o céu. — É normal que nasçam por aqui?
— Bem, os girassóis são nativos na América do Norte e, obviamente, gostam de nascer em locais que tenham boa luz e que compreendam todas as necessidades que apresentam, mas você pode plantá-los sem problemas se tiver certos cuidados. Na verdade, é possível plantar qualquer coisa, basta que dialogue com a planta. — Regina, ao declarar com tamanha simplicidade tal máxima, não se atentou para a curiosidade que aquilo causaria na mente da loira.
— Eu não costumo dialogar com as plantas. — a resposta chamou a atenção da Bruxa, que só então se deu conta do que havia dito. Sorriu, apenas, pois Emma guardava uma expressão divertida em seu rosto. — Você tem mesmo essa coisa, sabe? — sinalizou com as mãos, gesticulando por aquilo que as palavras não davam conta de expressar. — Esse seu jeito de falar, como se desse a tudo um toque diferente. Atribui tanta peculiaridade a detalhes simples e rotineiros. Eu me pergunto, Regina, como é visto o mundo a partir dos seus olhos. Quantas coisas que deixo passar são infinitamente valorizadas quando vistas por você. — suspirou. — Quase desejo poder ler a sua mente. — pausou seus passos por um único instante, apenas para que pudesse respirar. Mal podia acreditar que verbalizara tudo aquilo. Mal podia acreditar que seu coração ainda batia depois de fazê-lo.
— Não há nada que vá lhe agradar em minha mente, acredite. — a morena imaginou a reação de sua irmã ao ouvir aquilo. Provavelmente sairia advertindo Emma sobre todos os malefícios causados pela telepatia para, em seguida, listar os enormes benefícios. — Nós corremos demais, Emma. Todos os dias, atropelamos as horas em busca de mais tempo quando, na verdade, não valorizamos o que temos. Pensamos valorizar, acredito. Quantas pessoas, na correria de suas rotinas, permitem-se parar e observar o sol? Ele está ali. Nasce e se põe, todos os dias. Tamanhas são as belezas que nos rodeiam e nós não as admiramos, não damos a elas o amor que merecem, ignoramos suas doses únicas de magia.
— Magia? — a loira se acomodou sobre uma pedra rochosa que foi indicada. Um enorme impulso dentro de si libertou argumentos infindáveis para contradizer a morena. Magia!? Ora essa.
Não o fez. Não poderia interromper aquela voz melodiosa que lhe seduzia a mente. Deixou que falasse. A voz de Regina lhe seduzia o ser e a fazia chegar perto do desejo de crer em tudo o que era dito.
— Sim, Swan. Magia. — revirou os olhos. — Eu não estou atribuindo à palavra uma dose absurda de fantasia, estou falando do que vemos e fingimos não ver. Há tamanha perfeição em cada coisa que está aqui. — girou o indicador, apontando para aquilo que as rodeava. — Veja só esse girassol. Oh não o toque! — um tapa rápido foi dado sobre a mão de Emma quando tencionara a arrancar a flor. — Apenas observe. O que vê?
— Uma flor. — deu de ombros, como quem declara o óbvio. Afinal, era óbvio.
— Mais do que isso, Swan. Veja bem, aqui, — ela apontou para o centro escurecido. — nós chamamos de flor do disco. Então, você encontra o pólen, o néctar e os ovários. Agora, essa parte, — indicou as pétalas amareladas. — nós chamamos de flor do raio. As flores do raio, na verdade, são estéreis. Elas servem apenas para chamar a atenção dos polinizadores. — os olhos castanhos se voltaram para Emma, que observava com atenção cada mínima explicação. — Eu não estou dizendo que você deve olhar uma flor, ou qualquer outra coisa, e compreender cada detalhe ecológico que a compõe. O que eu estou tentando explicar é que existe mais. Mais do que apenas uma flor, às vezes é um conjunto de pequenas flores. A flor é o óbvio.
— E onde há magia nisso, Regina? Perdoe-me, mas eu realmente não entendo. Tudo o que você disse é lindo e eu encontro uma dose enorme de sentido.
— Emma, — o nome que dançou nos lábios da Bruxa fez com que a escritora interrompesse qualquer ideia de fala. — isso era apenas uma sementinha. Imagine só quantos fatores foram combinados para que essa sementinha se tornasse o conjunto de flores que você está vendo agora. Como é possível não chamar isso de magia? — a morena lhe encarou a face.
Emma respirou fundo. Não sabia quantas vezes havia respirado fundo naquele dia. Não sabia quantas vezes havia respirado fundo desde o instante em que aquela mulher lhe cruzou o caminho. Fervilhava internamente em contradições, em certezas bem estabelecidas e na defesa de sua crença. Havia uma crença? A crença de que as coisas eram como deveriam ser. Não havia um além, não havia um mais. Abria-se para histórias, pois eram histórias. Coisas que são contadas a uma criança ao anoitecer para que a beleza fantasiosa lhe embale os sonhos. No entanto, quando Regina verbalizava tudo aquilo, quando as coisas eram colocadas de forma tão simples... Era difícil. Tão difícil. A imagem de seu pai lhe ganhou a mente.
— É belo que acredite nisso. — declarou, por fim. Não havia mentiras em suas palavras.
Regina reprovou-se pelo o que estava fazendo. Ao mesmo tempo, tamanha descrença de Emma lhe trazia a certeza de que não havia mal em estar ali. Tinha para si que a petulância da loira em provar a crueza do mundo se perpetuaria mesmo se lançasse raios ao céu ou se transmutasse à forma felina. Aquilo deveria lhe dar certa paz. Quanto mais descrente Emma fosse, mais fácil tudo seria. Não haveria perigo, não haveria mal algum. Sua avó poderia descansar de todas as preocupações e apenas teriam de aguardar até que a loira decidisse partir. Contudo, existia uma centelha de indignação em Regina. Algo que a fazia desejar provar a realidade das coisas. Não podia. Como era possível que escrevesse coisas tão belas se não acreditava verdadeiramente nelas?
— O que significa o seu cordão? — a pergunta lhe trouxe de volta a terra, fazendo com que piscasse rapidamente antes de responder. — Eu sempre a vejo o usando.
— É apenas um cordão. — a morena deu de ombros, olhando para os pequenos círculos que contavam a duração de sua existência. — Não tem muitos significados.
— Eu gosto dele. — Emma virou-se para frente. O vento se tornava cada vez mais forte e agressivamente lhe jogava as madeixas douradas para o lado. Os olhos levemente fechados contemplavam o declínio do sol, que espalhava manchas alaranjadas aonde antes somente havia o azul. — Você já teve vontade de largar tudo, Regina? De tomar uma decisão imprudente e simplesmente fazer o que quiser. — quando se virou para a morena, as esmeraldas de seu olhar refletiam a luz avermelhada. — Mesmo sabendo que seria errado e que a reprovação por aquilo viria em algum momento. É uma pergunta importante para os meus estudos. — ela adiantou-se em explicar, mesmo sabendo que não era exatamente uma verdade.
— Eu acredito que... — as palavras lhe faltaram. Largar tudo, tomar decisões imprudentes, quebrar regras. Regina nunca pensara naquilo. Seguia tão fielmente tudo o que lhe foi ensinado, respeitava os limites colocados por seus antepassados e trilhava os caminhos que deveria trilhar. Em sua situação, em sua vida, em suas crenças, como poderia largar tudo? Não existia essa simples opção. Porém, era verdade que desejava ardentemente a imprudência de desrespeitar alguns limites. Admirou os lábios finos e rosados de Emma. O seu cheiro que era levado pelo vento, sua respiração levemente descompassada, os batimentos de seu coração que não frearam por um instante e a forma como os raios solares pintavam sua pele. — Não, eu nunca pensei nisso. — fechou suas mãos firmemente, culpando-se pela mentira. Uma Bruxa nunca deveria mentir.
— Tenho pensado constantemente. — respondeu a sua própria pergunta. Emma sabia que Regina estava certa no que dissera há minutos. Convidou-a para admirar o pôr-do-sol, mas pouco se interessou por fazê-lo naquele momento. Não quando os traços da morena lhe roubavam a contemplação, o ar e os pensamentos. No fim das contas, estava ali para admirar Regina. — Sobre a minha personagem... Digo, ela precisará tomar algumas decisões e, bem, nós só temos uma vida, certo?
A frase tomou Regina em uma rasteira, como se a própria Deusa tivesse escolhido as palavras para lembrá-la de seu fardo. A luz que refletia nas pedras de seu cordão queimaram sua pele e seu coração, fizeram com que ela desejasse sair dali e se refugiar na mais alta árvore.
— É o que dizem. — virou-se, permitindo que a energia solar preenchesse seu corpo e sua alma. Sua mão seguiu rasteira sobre a pedra áspera e, antes que pudesse impedir, seus dedos tocaram a pele de Emma.
Não deveria fazer aquilo, mas fez. Não deveria estar ali, mas estava. Não deveria desejar ardentemente tocar cada espaço vago daquele corpo ao seu lado, mas desejava. Uma filha da Deusa não deveria conter seus encantos, seus dons, seus poderes. Não deveria fazer tantas coisas. O singelo toque não despertou grandes feitos, mas foi a magia de Regina que fez com que Emma sentisse a energia lhe ganhar o corpo, mesmo não sabendo disso. A morena sorriu ao ver a áurea da mulher ao seu lado ser preenchida pelo intenso amarelo, que se remexeu até se tornar a mais intensa luz. Naquela noite, Emma dormiria em paz. Não só pela magia em si, mas por ter sido contemplada pelos desejos de uma Bruxa.
A escritora permitiu que seu olhar ganhasse aquela bela imagem que era Regina. Sem receios de ser pega em sua admiração, como um apaixonado ao contemplar a mais impecável obra, ela acompanhou os detalhes. Poderia se arrepender de sua audácia, poderia ser reprovada por ela, mas... Poderia se culpar por descartar o medo? Aproximou-se do rosto da morena, que mantinha seus olhos fechados. Os lábios tímidos tocaram a pele da bochecha, aquecida pela luz solar — acreditava Emma que era somente pela luz.
— Então você está aqui! — Cassandra gritou, subindo pelo lado oposto do pequeno muro de pedras. — Deusa! Eu revirei toda essa floresta atrás de... Ah! Olá! — os olhos claros reconheceram a companhia de Regina. O olhar que lhe era lançado pela sobrinha dispensava as apresentações formais. Sabia quem era aquela mulher.
— Senhorita Swan, esta é minha tia. — a morena se colocou de pé rapidamente. Toda sua descontração fora deixada de lado. A postura foi recuperada e, em pouco tempo, ela voltou a ser aquela Regina Mills que Emma conhecera nos primeiros dias. — Seu nome é Cassandra.
— Sua tia? — a descrença lisonjeira fez com que Emma alternasse o olhar entre as duas mulheres. Pensando no quanto aquilo poderia soar rude, ela se adiantou em prosseguir. — Perdoe-me a indelicadeza. Você pode me chamar de Emma. — a loira acompanhou os movimentos de Regina e logo estava ao seu lado. — É um prazer.
— Eu que o diga. — deu-lhe uma piscadela. — Bem, querida, vamos logo. Mamãe está procurando por você.
— Aconteceu alguma coisa? — a pergunta medida fez com que Cassandra precisasse se esforçar para escolher a resposta. Afinal, nada poderia ser revelado.
— Você sabe... Ela recebeu uma ligação... Dos superiores. — limpou a garganta enquanto gesticulava com suas mãos. Aquilo bastou para a sobrinha, mas quase pode rir da confusão estampada no rosto de Emma Swan.
— Certo. Eu preciso ir. — Regina se virou para Emma, culpando-se por não poder ir além. Tantas coisas pesavam em suas escolhas.
— Eu vou esperar por você bem ali. Longe. — a tia indicou o lugar e a Bruxa compreendeu o que ela estava tentando fazer. Silenciosamente, agradeceu.
— Você quer que eu as leve até em casa? Não há problema, o meu carro está logo ali. — a loira falou, atropelando-se brevemente em suas palavras. Não desejava se separar de Regina, não quando tudo parecia tão certo.
— Não, não é necessário, querida. Eu moro na floresta e não é tão difícil quanto parece. Todos os caminhos levam ao mesmo lugar. — sorriu. Sua mão tomou a de Emma, segurando-a gentilmente. — Seria um prazer continuar aqui e eu a agradeço pelo convite, mas eu realmente devo ir.
Emma pensou em interromper a fala. O que poderia dizer? Nem mesmo suas ideias foram rápidas o bastante, pois quando deu por si, Regina já estava caminhando para longe. Ignorou outras preocupações que poderiam lhe parecer maiores, como o medo de não encontrar o caminho de volta. Deu de ombros. Acomodou-se de volta à pedra e decidiu que ao menos aproveitaria o fim daquele momento e as lembranças que seriam deixadas por ele. Ao abrir sua mão, a mesma que fora segurada pela morena, uma pequena semente de girassol estava em sua palma.
***
Regina e Cassandra seguiam lado a lado. Caminhavam cuidadosamente, sem que seus passos deixassem uma única marca sobre o solo úmido da mata. Enquanto a bibliotecária desbravava os declínios naturais e as raízes expostas com seus saltos finos, a mais velha permitia que a terra lhe tocasse as solas descalças. Seguiam desviando de árvores e animais, como se andassem por uma avenida movimentada e rotineira. Estavam no centro da mata, cercadas por vidas.
Cassandra questionava bravamente o que deveria fazer. Afastara-se para dar certa privacidade à sobrinha, longe o bastante para que seus olhos não captassem nem mesmo o mais simples gesto, mas não há distância que limite energias. E bem, a energia que sentira entre Emma e Regina era a mais intensa de todas. Tocara brevemente à loira, mas tinha em si a certeza de que ela não era uma má pessoa, não carregava manchas em sua alma. Além disso, os poderes de Cassandra, nascidos das emoções, agitaram-se fortemente em poucos instantes. Emma Swan estava apaixonada por sua sobrinha. Talvez nem mesmo a loira soubesse daquilo, os sentimentos têm consigo essa mania de nos enganar e nós temos, por natureza, a tendência a nos permitir o engano. Sem enfeites belos que negassem a verdade imutável, ela era simples: havia paixão. Não só uma simples paixão, ela era forte e estava apenas em seu início. Quanto ao coração da mulher que caminhava ao seu lado, ela via um enorme nevoeiro que nublava fortemente o sentir. Regina carregava culpa pelo desejar.
— Nós podemos nos sentar aqui por um instante? — a pergunta pegou Regina de surpresa, mas ela não se opôs. Ignorando o tecido delicado de sua roupa, acomodou-se sobre um tronco tombado. — Eu... Eu não sei como falar sobre isso. — a hesitação de Cassandra fez com que certa delicadeza pousasse em seus ombros, o que não era uma característica muito forte. — Você sabe, — limpou a garganta. — eu não quero ser aquele tipo de pessoa que chega de um dia para o outro e pensa ter o direito de opinar sobre tudo o que lhe convém, mas quero poder ajudar. — respirou fundo, deixando que sua mão tocasse as folhas caídas. Em segundos de silêncio, pediu à Deusa que suas emoções fossem controladas, pois a história a ser contada lhe fincaria garras no coração. — Eu fui apaixonada por uma mulher, há muito tempo. Não apenas apaixonada, eu a amei profundamente.
— Oh... — os lábios de Regina se abriram em surpresa. Pensara em muitas coisas, mas jamais cogitou aquilo. Não esperava por aquela revelação e sabia que ela, cruamente, estava ligada ao que a tia vira. — Você tem a minha atenção.
— O nome dela era Linda. — o brilho tomou os olhos claros, um brilho que a sobrinha não vira por ali até aquele momento. Cassandra tentava disfarçar o sorriso que dançava em seus grossos lábios, mas não havia jeito. Sorriria sempre que uma simples lembrança daquela mulher lhe tomasse à mente. — Não poderia haver nome mais apropriado, acredito. Eu jamais vi olhos tão profundos e meigos. O seu sorriso... Ele seria capaz de parar até mesmo a mais intensa tempestade. A forma como me observava... Céus! Eu me sentia importante com o simples fato de ser objeto do seu olhar, de ganhar a sua atenção. Linda fazia com que o mundo parecesse especial e apenas isso. Ela nos causava esse desejo estranho de viver. — o silêncio lhe tomou, mas Regina sabia que não deveria interromper. Nem mesmo precisava recorrer aos seus instintos felinos para ter a certeza de que a bela história não teria o mais feliz dos desfechos. — Não falo sobre Linda com frequência. Aliás, somente você sabe sobre ela agora. Eu deveria falar mais sobre, acho. Temos essa mania de deixar que a dor mascare a beleza, mas não deveríamos. Ela me deu os mais felizes dias, até que eles acabaram. Não por culpa dela, talvez por um pouco de culpa minha. A verdade é que nenhuma de nós duas sabia que o final chegaria tão depressa, mas ele chegou. — uma simples lágrima lhe deixou um trajeto úmido pelo rosto. Não a secou, deixou que fugisse à sua pele e pousasse no solo. Deixou que a terra abraçasse sua dor. — Nós nunca sabemos quanto tempo temos para viver as coisas, meu bem. Não importa se você é uma mortal, uma Bruxa, ou se tem vidas fragmentadas em si, os ciclos são implacáveis e tudo o que nós podemos fazer é viver intensamente cada momento que temos. — a mais velha pediu aos céus que seu conselho não pesasse no futuro, mas não poderia permitir que os receios da mãe impedissem a sobrinha de viver. Já havia impedimentos demais.
— Eu não posso. — negou com a cabeça lentamente, quase como se tivesse que convencer a si mesma. — Há tanto com que se preocupar. Minha avó, ela...
— Sua avó se preocupa demais com tudo. Isso acontece quando você vive séculos e é uma anciã ranzinza. — as duas compartilharam de uma risada larga. — Estou brincando, não conte isso. Imagine só se, como vingança, ela para de fazer café.
— Então você gosta de café?
— Entre os males, é o menor. — deu de ombros. — Regina, você não pode viver tendo medo das coisas. Não adianta se preocupar com tudo o que pode acontecer e não aproveitar cada instante do que está acontecendo. Aquela menina... Emma, certo? Bem, ela não sabe de nada disso. Não sabe que você é uma Bruxa amaldiçoada que pertence a um clã mais antigo do que o próprio tempo. Não precisa saber. Você só tem de ser Regina para ela. — Cassandra se colocou de pé, oferecendo sua mão à sobrinha. — Regina, a bibliotecária sedutora que tem a elegância do rebolado de um felino.
— Oh não, você também não. — desferiu um tapa delicado contra o braço da tia, que se permitiu rir daquilo.
— As madames estão aqui! — a voz de Zelena fez com que pulassem em sobressalto. Nem mesmo Regina ouvira a aproximação da irmã. — Eu estou vendo risadas e alegria. Não me diga que arrombaram a adega da vovó.
— Ainda não, querida. — Regina aproximou-se, puxando a irmã e a acolhendo em seus braços.
— Perceba que ela disse “ainda”. Todas as minhas esperanças estão morando nessa palavra. — Cassandra declarou, sendo pega de surpresa pelo afeto despreocupado das duas mulheres, não o repeliu. Deixou que sua alma repousasse naquele carinho gostoso e, por um instante, esqueceu-se de tudo o que pesava em si.
Ver Regina sorrir fez com que seu coração batesse mais forte. Prometeu, há anos, que protegeria aquela menina, agora mulher. Há algo mais valioso do que a felicidade que pinta os olhos e nos faz ver o mundo de forma mais bela? Não, não há. Ela e a mãe teriam de dar um jeito diferente nas preocupações e no futuro. A morena merecia ser feliz. Na realidade, Regina deveria ser feliz.
O fogo haveria de queimar, independente do que o precedesse.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.