Parte 6 ▪ ENTRES CLÃS
O Chamado de Ono-Aoki
─ E de onde a senhorita vem?
─ Da região leste.
─ O que a traz a meus domínios? ─ perguntou, o Senhor Feudal, um tanto desconfiado, a analisar a suposta vendedora ─ Perdoe minha indiscrição, mas a senhorita me parece um tanto perdida para uma comerciante, a começar por seu traje refinado.
─ Seu estranhamento é completamente compreensível, Noriyuki-Sama. Na verdade, eu tive que improvisar esta roupa, já que fui assaltada a caminho de Hasegawa.
─ Assaltada? ─ questionou, meio descrente.
─ Sim, eles levaram praticamente todos os meus itens. Só me restaram estes que estão à mesa e minha espada. Até meus calçados, eu acabei perdendo. Consegui estas botas masculinas numa negociação mais recente.
─ Isso explica o estado deplorável de suas vestes.
─ Um dos poucos itens que me restaram para negociações.
─ É uma seda muito refinada. Uma pena estar manchada de terra e de sangue.
─ Um prejuízo irreparável para mim, de fato.
─ Sinto muito não poder lhe oferecer vestes e calçados mais adequados. Não há mulheres em Hasegawa, você é a única por aqui.
─ Ah, sim? ─ Lin perguntou, meio sem jeito e um tanto desconfortável com aquele tom ─ Que inusitado, não?
─ Apropriado, eu diria.
Lembrando-se das informações e orientações da Líder a respeito das preferências daquele Senhor Feudal, Lin preferiu se manter calada, até que o nobre resolvesse seguir adiante.
─ Bem… Vamos direto ao assunto, sim? Disseram-me que é uma Alquimista.
─ Na verdade, eu comercializo itens de Alquimia.
─ E onde os consegue?
─ Tenho alguns distribuidores no leste.
─ E o que a senhorita teria para me oferecer hoje?
─ Todos estes itens, Noriyuki-Sama. ─ respondeu, apontando para os produtos à mesinha.
─ Vá até ela e traga-os para mim, Kingo. ─ o nobre ordenou a um de seus servos ─ Você ficou tão impressionado com os atributos dessa jovem… Talvez, você queria vê-la mais de perto, admirá-la melhor…
Naquele momento, Lin notou um pequeno constrangimento e um clima de tensão tomarem conta dos homens daquele salão; mas fingiu não compreender o motivo. Enquanto Noriyuki avaliava cada item em seu trono e com o auxílio do jovem Kingo, Lin analisava, disfarçadamente, o refinado Salão de Visitas do Castelo de Hasegawa, no qual estavam ela, o nobre, alguns ninjas que guardavam o lugar, e outros homens, que não soube decifrar se eram aliados, servos ou meros convidados do Senhor Feudal.
─ São itens raros, como me disse. ─ Noriyuki comentou, satisfeito.
─ E muito eficazes, senhor. Posso garantir.
─ Qual é mesmo o seu nome?
─ Mika. E venho da região leste, senhor.
─ Mmm…
Naquele momento, um ninja adentrou o salão e fez um discreto informe ao ouvido do Senhor Feudal, que, após recebê-lo, aguardou a saída do guerreiro, para prosseguir com a negociação tranquilamente.
─ Então, jovem Mika… Poderia me explicar para que serve este item aqui?
─ Claro, Noriyuki-Sama. Este é um poderoso veneno, com o qual se pode abater um guerreiro grande e saudável em questão de segundos.
─ Tem certeza?
─ Sim.
─ Vejamos…
De súbito, Noriyuki injetou o pequeno dardo no pescoço do servo, e todos assistiram, espantados, à morte do jovem Kingo, cujo corpo agonizante rolou escada abaixo, até o lado da refinada mesinha de madeira, diante da qual Lin estava sentada, em seiza.
─ Não é que ela estava certa!? Ele morreu! E bem depressa! ─ o nobre soltou uma gargalhada ─ Vou ficar com todos os seus itens, minha jovem! Eles me serão muito úteis!
─ Ótimo! ─ Lin respondeu, tentando parecer indiferente ao que acabara de presenciar.
─ Mas o que há como todos vocês? ─ Noriyuki indagou, um tanto sarcástico, ao perceber a tensão de todos naquele ambiente ─ Não se preocupem, nem lamentem a perda, meus queridos. Eu já tenho um substituto para o nosso companheiro! ─ informou, um tanto anunciativo, levantando-se do trono ─ De fato, todos nós sentiremos falta de nosso querido Kingo. Ele era muito versátil e criativo. Era um jovem cheio de energias! ─ e prosseguiu com a fala, descendo a pequena escada, caminhando ao encontro de Lin, até se parar ao lado do corpo do defunto ─ Você nos traiu descaradamente, admirando essa mulher bem embaixo de nossos olhos, como se não significássemos nada para você…
─ Mas que merda é essa? ─ Lin pensou, um tanto receosa quanto ao desfecho daquela situação inusitada.
─ Escute, mulher! ─ e o Senhor Feudal prosseguiu, seriamente, fitando-a de cima ─ Informo que, além daqueles itens, eu ficarei com o seu companheiro.
─ O quê?
─ Exatamente o que ouviu! Faremos uma troca justa: o seu companheiro vivo pelo meu servo morto.
─ Senhor… Eu não sei do que está falando.
─ Refiro-me ao Samurai, seu companheiro de comércio! Seu amante, aliás.
─ Meu o quê? ─ Lin questionou, surpresa ─ Ele acha que Daisuke e eu somos amantes? Que porcaria é essa?
─ Um amante pelo outro, minha cara.
Naquele instante e ao sinal do nobre, um dos ninjas deixou o Salão.
─ Nada mais justo, não acha? ─ o Senhor Feudal insistiu.
─ Sinceramente, Noriyuki-Sama, eu não sei do que o senhor está falando. ─ Lin se manteve firme, a fim de ganhar tempo ─ Eu cheguei sozinha a Hasegawa, todos viram. E sempre trabalhei sozinha, nunca tive um parceiro de comércio.
─ Já basta de encenações, mulher!! Você me fez matar nosso amado Kingo! Terá que nos compensar de alguma maneira! ─ Noriyuki bradou, em tom dramático e enfurecido ─ E como eu não tenho interesse algum em uma criatura sem graça e magrela feito você… ─ disse, fitando-a com asco ─ Nós ficaremos com o seu Samurai!
─ Céus! Que loucura é essa? ─ Lin pensou, entre a tensão e a resignação ─ Por que minhas Missões têm que ser sempre tão complicadas!?
─ Faremos o seguinte: o Samurai nos dará uma demonstração do que é capaz. Se ele nos agradar, matamos você. O que acha?
─ O que eu acho? ─ Lin questionou, colocando-se de pé.
─ Você pode assistir se quiser. Vai ser bem interessante.
─ O que eu acho é que o senhor é abominavelmente doente.
─ O que disse!?
─ Um feudo só de homens, onde todos são seus escravos sexuais? Isso é uma verdadeira aberração.
─ Como se atreve!?
─ E quer saber? Não tenho mais interesse em fazer negócio por aqui.
─ Você não vai a lugar algum, vadia! ─ e Lin viu os guardas do Senhor Feudal se prepararem para o ataque ─ Matem-na! Esquartejem essa mulher!!
Dada a ordem, Noriyuki partiu do Salão com os demais servos, deixando a comerciante sozinha, com oito ninjas.
─ Não dá para ser discreta desse jeito, Masumi-Sama… ─ Lin pensou, conformada com a luta iminente, vendo os guerreiros se aproximarem estrategicamente, fechando-a no centro de um círculo ─ Amigos… Para o bem de vocês, eu peço que me deixem sair desse Castelo. Não quero ter que enfrentá-los, então… ─ ela tentou o aviso, mas percebeu que os ninjas seguiam avançando de forma hostil ─ Bem… Não posso ser apenas uma Aoki agora.
Resignada, então, a jovem Bruxa sacou a Tenseiga Elemental, fez a lâmina se cobrir de chamas, para a surpresa e o assombro dos inimigos, e tão logo iniciou o ataque mortal. Do lado de fora, ouviram-se os gritos de pavor dos adversários. Pouco tempo depois, quando de regresso ao Salão, o Senhor Feudal de Hasegawa não mais encontraria a jovem comerciante, e ficaria estarrecido com a limpeza daquela carnificina ─ ao chão, estavam os oito corpos decapitados, sobre pequenas poças de sangue, que mal sujaram o piso, devido à cauterização. Das cabeças dos mercenários, não havia sinal algum. Quando o Portal de Conexão se fechou, Lin se viu na floresta que ficava próxima ao feudo.
─ Mas… O que estou fazendo aqui? ─ estranhou o fato, sem se dar conta de que seu pensamento a havia traído ─ Por que não estou no Castelo?
Imediatamente surpreendida pelos ninjas que guardavam aquela área, não lhe sobrou tempo para pensar a respeito daquilo, menos ainda para dar um fim às cabeças dos guerreiros abatidos. Enquanto isso, no Castelo de Hasegawa, Noriyuki e seus capangas deduziam o que poderia ter acontecido no Salão.
─ Isso me parece obra de uma Bruxa de Ono-Aoki, senhor. ─ o Líder ninja informou, após analisar os corpos ─ Veja: as cabeças foram precisamente arrancadas e levadas pela assassina. Ao que tudo indica, a mulher não era apenas uma comerciante.
─ E como nenhum de vocês notou isso? ─ o nobre questionou, odioso.
─ Essas mulheres são muito habilidosas em suas encenações, Noriyuki-Sama. Não somos especialistas em identificá-las, nem fomos contratados para isso.
─ Mas estão encarregados de minha proteção! Então, protejam-me do que for!! ─ bradou, furioso.
─ Certamente, Noriyuki-Sama. Orientarei meus guerreiros e caçaremos aquela Aoki custe o que custar.
─ E tragam o meu Samurai! Vivo!!
Enquanto isso, em Ono-Aoki, Masumi lamentaria profundamente o sinal que receberia: na repentina visão que teve, Lin e Daisuke estavam sentados no campo de flores de Hasegawa, parcialmente despidos, ela, sobre o corpo do guerreiro, que a acariciava lascivamente, entre suspiros, beijos ardentes e movimentos compassados.
─ Eu sabia… ─ a Líder sussurrou, com imenso pesar ─ Mas por que não estou surpresa?
Naquele instante, o Conselho adentrou o Salão de Reuniões do Clã, como se já soubessem o que estava acontecendo.
─ Eu não avisei? ─ Masumi questionou, fitando as anciãs, que se mantiveram sérias e pensativas por um tempo ─ Eu só não imaginava que seria com ele.
─ As visões trazem imagens de eventos que estão para acontecer. ─ lembrou, uma das senhoras.
─ Nosso presente nada mais é do que o passado do evento previsto.
─ Faz alguma diferença? ─ Masumi questionou, desolada.
─ Você sabe que sim. ─ insistiu, a terceira anciã ─ Nós podemos evitar que aquilo aconteça. Você acabou de prever o acontecimento.
─ Se agirmos depressa, podemos evitar que a traição de Amaya se torne um fato consumado.
─ Como?
─ De que outro modo? Chame-a.
E Masumi se viu regressando à sua juventude.
─ Faça o Chamado e a impeça de cometer tamanha traição.
Até o fim da tarde daquele dia, Lin não conseguiu reunir forças suficientes para o regresso ao Castelo de Hasegawa através de um Portal de Conexão. Desde quando colocou os pés novamente nos arredores do feudo, ela teve que enfrentar muitos mercenários, a maior parte deles já em seu encalço, a mando do Líder Ninja. De que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, ela não tinha dúvida. Só não contava com estar abatida demais para o confronto iminente e para o uso simples de Magia, menos ainda com reencontrar seu arqui-inimigo em meio a toda aquela balbúrdia. Os seis últimos mercenários que apareceram lhe dariam tanto trabalho, que ela começou a recear o desfecho daquela luta.
─ Nós temos mesmo que matá-la? ─ questionou, um dos guerreiros, olhando para Lin com olhos sugestivos.
─ Podemos nos divertir com ela antes, não?
─ Mas um de cada vez.
─ Um de cada vez?
E as gargalhadas ecoaram pela floresta. Lin, porém, mal conseguiu escutá-las bem ─ já começava a sentir seu corpo cambalear e a visão embaçar, de modo que não deu pela aproximação simultânea daqueles homens. A única coisa que conseguiu fazer foi pensar em seu Guardião.
─ Itilus… Mais uma vez, estou em suas mãos… ─ sussurrou, preparando-se para tentar uma autodefesa, diante da hostilidade dos mercenários.
─ Você ainda pensa em lutar? ─ um dos ninjas perguntou, de modo debochado, ao ver a jovem segurar a espada em sinal de combate ─ Não seja estúpida!
─ Guarde um pouco de suas forças para nos satisfazer, vadia!
─ Se colaborar, pode até ser divertido para você também!
Então, Lin respirou fundo e fincou a Tenseiga Elemental no chão da floresta, mantendo, porém, sua mão sobre o Diamante Azul da extremidade do cabo da Arma.
─ Tudo bem, vocês venceram. ─ ela ponderou, aparentemente conformada ─ Por que não vêm todos de uma só vez? Eu posso satisfazê-los de tantas formas…
Mas somente um dos ninjas não se daria conta da repentina mudança comportamental da jovem, e se aproximaria destemidamente e animado, preparando-se para possuí-la ali mesmo, diante dos comparsas, e inspirá-los a que se preparassem para o mesmo. Ansioso, como estava, o mercenário desprezou os alertas dos companheiros e seguiu caminhando até Lin, que o fitava o tempo inteiro com certa malícia. Quem olhasse para o semblante do ninja poderia jurar que ele estava sob efeito de algum feitiço, de modo que não estranhariam sua inação diante do perigo ─ Lin retirou a Tenseiga Elemental do chão e, com um único e certeiro golpe, decapitou o meliante diante dos demais.
─ O que diabos é isso!? ─ questionou, um dos ninjas, entre a surpresa e o temor, fitando o semblante maquiavélico e transfigurado da oponente.
─ Um demônio!
─ Ela é um youkai!!
─ O que houve, rapazes? ─ Lin perguntou, com a estranha voz ─ Não íamos nos divertir?
─ O que estão esperando? ─ o Líder do pequeno grupo questionou ─ Ataquem-na!
─ Fujam!! ─ o outro retrucou e iniciou a corrida, junto com os demais.
Prontamente, a Tenseiga se cobriu de chamas, controlando o corpo da jovem Bruxa para as demais ações. A próxima vítima foi o ninja fujão, que recebeu uma labareda direta e constante, até ter o corpo reduzido a cinzas. Os gritos de agonia do meliante e o cheiro de carne queimada serviram de catalizadores para os Espíritos aprisionados no Diamante Azul.
─ Quem é o próximo a se divertir comigo? ─ Lin perguntou, deleitosa.
Depois daquele espetáculo de horror, nenhum dos quatro mercenários teve coragem de permanecer no local, nem mesmo o mais valente de todos. Mas, enquanto tentavam fugir, foram perseguidos e caçados pela sede de sangue das Entidades aprisionadas no Diamante Azul. O terceiro deles teve os braços e as pernas capturados e arrancados pelos galhos de árvores próximas. O quarto foi transformado numa estátua de pedra e teve o corpo erodido pelos redemoinhos de vento, criados ao seu redor. Os dois ninjas restantes, contudo, não seriam abatidos pela Tenseiga ─ pouco antes de serem alcançados por Lin, sentiriam uma intensa energia agourenta emanar daquela que os perseguia e, logo depois, escutaram gritos de dor, lançados pela suposta youkai. De Ono-Aoki, o Chamado foi feito, e nem mesmo os Espíritos da Floresta conseguiram mais comandar o corpo da jovem Bruxa, diante daquele martírio. Os ninjas, então, detiveram-se na fuga e regressaram ao encontro da adversária.
─ Ora, ora… O que temos aqui? O demônio foi abatido? ─ provocou, o Líder, quando diante de Lin, que, naquele instante, via-se ao chão, contorcendo-se de dor.
─ O que houve com você, vadia? Onde está toda aquela arrogância agora?
─ Alguém a atacou. ─ o Líder informou, apontando para o ventre ensanguentado da jovem.
─ Terá sido um dos nossos? ─ instigou-se, o outro, analisando o perímetro da floresta rapidamente.
─ É provável que sim. Ele a acerou em cheio.
─ Essa mulher está tendo o que merece! ─ o súdito comemorou, deleitando-se com o sofrimento da adversária ─ Está doendo, vadia? ─ e pressionou o ventre de Lin com o pé.
─ Estou indo… ─ ela sussurrou, quase sem voz, sem se dar conta de que estava completamente a mercê dos inimigos.
A dor que sentia era excruciante. Lin mal conseguia perceber o que acontecia em seu entorno: seu corpo estremecia e suava, as lágrimas escorriam por sua face, sem controle, misturando-se ao suor e à saliva, e sua visão escurecia gradativamente, de modo que Lin pensou, por um instante, que sua cegueira estivesse voltando.
─ Onde pensa que vai? ─ questionou, o mercenário, vendo que a jovem tentava se arrastar novamente ─ Já se esqueceu de que vamos nos divertir com você?
─ Vamos acabar logo com essa cretina e dar o fora daqui. ─ o Líder se adiantou, tomando a frente, para levantar a adversária pela obi.
Lin, que mal tinha forças para se mover, menos ainda para contra-atacar, sequer escutava a conversa dos ninjas.
─ E depois de tudo, ficaremos com sua espada. ─ o comparsa informou, pegando a Tenseiga Elemental do chão.
Àquela altura, a lâmina já estava adormecida.
─ Parece que seu poder está inteiro nessa espada. Sem ela, você não é nada!
─ Cuidado… ─ o Líder avisou ─ Pode ser uma arma perigosa.
E no instante em que voltaram a atenção para a Tenseiga, ambos os guerreiros sentiram seus corpos serem perfurados por shurikens precisos e mortais. De tão fulminante o ataque, não houve tempo para resposta: seus corpos foram ao chão, antes mesmo que compreendessem de onde as armas tinham vindo, menos ainda quem as tinha lançado. O Samurai de Miura apareceu logo em seguida, e tratou de ir ao encontro da rival, cujo corpo estava sob o do Líder daquele pequeno grupo. Embora ainda consciente, Lin se via completamente alheia a tudo que estava acontecendo naquela floresta.
─ Droga… ─ Daisuke se preocupou, ao ver o sangue no ventre de Lin ─ Eles a feriram… ─ e se manteve agachado ao lado da jovem, tentando entender a natureza e a gravidade daquele ferimento.
─ Estou indo… ─ Lin sussurrou, sem forças e com o olhar um tanto perdido, fazendo o guerreiro voltar sua atenção ao seu rosto, sujo de suor, areia e sangue.
─ Está indo… ─ ele resmungou e bradou consternado, olhando para ela ─ Você é muito estúpida, pirralha! Não deveria ter deixado o acampamento! Sabia que não estava em condições de lutar!
─ Pare… Por favor…
─ Parar? ─ ele estranhou, ao ver a jovem flexionar as pernas, dispor as mãos sobre o ventre e apertá-lo, como se aquilo pudesse lhe trazer algum alívio.
─ Já estou indo… Já estou indo…
Somente ao ouvir aquelas palavras sem nexo, Daisuke percebeu que a rival não estava em si, e que nem havia se dado conta de sua chegada, menos ainda de seu ato heroico.
─ O que há com você? Seu kimono está intacto! ─ ele notou, após a análise ─ Que sangue é esse, então? O que está havendo aqui?
Naquele instante, o Samurai percebeu que a energia agourenta que emanava no ambiente vinha do ventre da jovem, e não dos resquícios do combate contra os ninjas. Então, para se certificar da suspeita que lhe ocorreu, ele colocou a lâmina de sua espada entre a obi e o kimono da rival, cortou a faixa e, ao afastar o traje, confirmou a suposição.
─ Um vudu… ─ Daisuke resmungou, estarrecido ─ Essas Bruxas não têm limites?
De que o vínculo com Ono-Aoki era feito através de Magia Negra, ele já sabia, uma vez que a energia sombria nas Marcas das Bruxas era perceptível aos usuários mais sensíveis e habilidosos. Daisuke só não conseguia acreditar que as integrantes daquele Clã pudessem se submeter àquela forma peculiar de conexão, com a qual todo tipo de ação poderia ser realizado.
─ Não estou com pena de você. ─ ele resmungou, decepcionado, enquanto via a arqui-inimiga totalmente atordoada, movendo o corpo de um lado a outro, prestes a sucumbir no chão da floresta ─ Você optou por isso.
Lin perdeu a consciência junto com o fim da tarde, permitindo-se ficar, mais uma vez, totalmente a mercê de seu rival. Nas imediações de Hasegawa e no Clã das Bruxas de Ono-Aoki, a noite seria de chuva.
─ Lorde Sesshoumaru… ─ Masumi resmungou, diante da kekkai, para a qual se deslocou, assim que sentiu o youki do Lorde ─ Certamente, ainda está à procura de Amaya.
Então, a maquiavélica ideia lhe veio à mente.
─ Se veio até aqui em busca de Lin, está perdendo seu tempo, Lorde Sesshoumaru. ─ Masumi avisou, após deixar a kekkai, caminhando em direção ao youkai.
A princípio, o Guardião do Mundo dos Vivos não acreditou no que seus olhos viram.
─ O que significa isso? Uma humana? ─ perguntou-se, instigado, ao se dar conta de que aquele lugar, diferente do que havia suposto, parecia não se tratar do covil da ave, apesar de a energia do inimigo emanar daquela kekkai.
─ Lin não está em meu Clã, nem a ele pertence mais.
─ Aqui é Ono-Aoki?
─ Surpreso? ─ ela perguntou, entre a indiferença e a provocação, mas teve o silêncio como resposta ─ Ao que noto, o senhor já sabe que Lin é uma de minhas Bruxas.
─ Onde ela está? ─ Sesshoumaru perguntou seriamente.
─ Não sabemos exatamente. Ela partiu em uma Missão e ainda não regressou. Mas sei que está viva. Posso sentir sua energia corporal e espiritual.
─ Quem é você?
─ Mas que grosseria a minha… ─ ela comentou, com a falsa gentileza ─ Meu nome é Masumi. Sou a Líder do Clã das Bruxas de Ono-Aoki. E o senhor é o youkai que Amaya sempre amou incondicionalmente, certo?
─ Amaya?
─ É a identidade de Lin em Ono-Aoki.
─ Lin não pertence mais ao Clã?
─ Uma Aoki marcada no ventre nunca deixará de ser uma filha do Clã, mesmo que seja uma traidora.
─ Traidora?
─ Sim. Ela se uniu ao Clã inimigo, aos Samurais de Miura.
─ Os Samurais de Miura e as Bruxas de Ono-Aoki são inimigos? ─ Sesshoumaru pensou, deveras surpreso.
─ Ainda nessa tarde, tivemos a comprovação de sua deslealdade. Lin deixou Ono-Aoki há três semanas, quando partiu em uma Missão com Aoi, e ainda não regressou.
─ Você conhece aquela criatura híbrida?
─ Obviamente. A propósito, é Aoi que mantém esta kekkai ativa.
─ Impossível… Aoi está morta! ─ Sesshoumaru pensou, um tanto confuso ─ A não ser que, agora, Lin seja a responsável pela manutenção da kekkai, uma vez que Itilus a manipulou através de Aoi.
─ Algum problema, Lorde Sesshoumaru? Noto-o demais pensativo.
─ Lin se uniu ao Clã dos Samurais de Miura? ─ ele se adiantou, um tanto duvidoso.
─ E se envolveu com um deles, para piorar.
Ao ouvir aquela informação, o youkai se lembrou das conversas que teve com o Senhor Feudal de Yamashita, bem como das revelações e desabafos de Lin, a respeito do príncipe de Miura.
─ Ela sabia que isso seria inaceitável, uma grande afronta, um erro gravíssimo! Ainda assim, não hesitou em trair o próprio Clã.
Sesshoumaru lançou um riso discreto e sarcástico.
─ Posso saber o que o diverte? ─ Masumi perguntou, seriamente.
─ Você fala como se Lin pertencesse ao seu grupo desde sempre, como se fosse filha de Ono-Aoki…
─ E o senhor fala como quem desconhece os princípios deste Clã.
─ Como descobriu a traição dela? ─ Sesshoumaru se adiantou, indiferente à crítica.
─ Eu os vi.
─ Você os viu? ─ perguntou, instigado e um tanto incomodado com a revelação.
─ Não ao vivo, mas através de sinais.
─ De sinais… ─ Sesshoumaru resmungou ─ Isso não faz o menor sentido.
─ Os avisos de Ono-Aoki são mais precisos que aquilo que os olhos veem.
─ Onde eles estavam? ─ o Lorde insistiu, ainda mais sério.
─ Em algum lugar perto de Hasegawa. Num tranquilo e deserto campo de flores roxas.
─ Era apenas o que eu precisava saber. ─ Sesshoumaru pensou, antes de dar as costas à Líder Aoki e partir, completamente indiferente a ela.
Masumi, então, regressou ao interior do Clã logo em seguida.
─ Prepare-se, Amaya. Seu amado youkai está indo ao seu encontro. Torça para que Daisuke possa livrá-la também da ira de Lorde Sesshoumaru.
Enquanto isso, em algum lugar pelos arredores de Hasegawa, o Samurai de Miura carregava a Bruxa Cega de Ono-Aoki em seus braços, à procura de um lugar seguro para passarem a noite chuvosa.
─ Daisuke? ─ Lin perguntou, meio atordoada, ao despertar e perceber-se nos braços do rival.
─ Você acordou… ─ o guerreiro resmungou, depois de olhar para seu rosto rapidamente.
─ O que houve?
─ Para uma pirralha magrela, você é bem pesada, sabia? ─ ele reclamou, apático, concentrado no percurso à frente.
O chão acidentado fazia a jovem sentir os tombos da caminhada.
─ Está tão frio… ─ Lin sussurrou, ainda olhando para o rival, tentando compreender o que acontecia.
─ É noite, está chovendo… Por que não estaria frio?
Mas Daisuke sabia exatamente o que aquilo significava, e sentia, no fundo, o medo que teimava em não admitir. Lin havia perdido muito sangue, já estava ferida de antes, e ele a havia paralisado. Mesmo com todos os cuidados que lhe dedicara no dia anterior e com as notáveis melhoras, sabia que a rival ainda ficaria debilitada por um tempo, de modo que a delicada condição em que ela se encontrava naquele momento o fazia pensar no pior.
─ Minha Espada… ─ Lin se preocupou, ao sentir a ausência da Tenseiga em sua cintura.
─ Está comigo. ─ Daisuke se adiantou, ainda focado no percurso ─ Volte a dormir. ─ e sentiu o rosto da jovem se acomodar em seu ombro.
Só depois do longo silêncio que se fez, ele olhou para Lin e viu que ela havia adormecido, de fato. Notou também que seu semblante permanecia pálido e cansado.
─ Quanta irresponsabilidade…
Lin permaneceria fria por um bom tempo, mas Daisuke ainda conseguia sentir seu coração bater normalmente. Aquilo o tranquilizava de alguma forma.
─ Você não tem o menor senso de autopreservação… ─ ele resmungou, chateado.
A chuva fina conseguia alcançar o rosto de Lin, mesmo com a proteção que ele conseguia improvisar com o próprio corpo; a mesma chuva fina que perseguia o youkai, durante a viagem que ele havia iniciado ao feudo de Hasegawa.
─ Lin… Você traiu o Clã das Bruxas por causa de seus amigos de Yamashita e do príncipe de Miura… Você sabia da rivalidade dos Clãs, quando passou a fazer parte de Ono-Aoki? Você não estava decidia a se casar com o filho de Masanori? Isso não faz o menor sentido… ─ aquela enxurrada de dúvidas atormentaria os pensamentos do Lorde por um bom tempo ─ Pelo visto, você andou aprontando mais do que eu imaginei. Preciso descobrir o que está acontecendo.
Sesshoumaru sequer poderia imaginar que, longe dali, sua protegida estaria à mercê do arqui-inimigo de Clã, menos ainda que o Samurai estaria prestes a livrá-la da morte outra vez.
Depois da longa caminhada, Daisuke chegou a um lugar aparentemente seguro: um campo de flores, pelo qual corria um pequeno rio, e onde se via uma árvore e outra.
─ Estou exausto, não posso mais continuar… ─ ele reconheceu, antes de deitar a jovem no gramado, embaixo da árvore que se encontrava menos distante do rio ─ E vê se você não reclama, ouviu? É o mínimo que pode fazer, Aoki! ─ e se sentou ao lado da jovem, para recobrar o fôlego.
Lin, por sua vez, permanecia adormecida, e a aparente tranquilidade do lugar fez o guerreiro relaxar por um instante.
─ Parece que a chuva cessou de vez… ─ Daisuke comentou, olhando a lua e as poucas estrelas que foram reaparecendo no céu ─ O gramado aqui embaixo não está molhado. Isso é bom, dá para acender uma fogueira.
E ele o fez. Pouco tempo depois de cumprir aquela tarefa, seu leal cavalo negro chegou ao local, para lhe dar todo o aparato que faltava para a montagem de um acampamento decente.
─ Vejam só quem deu o ar da graça! ─ Riki relinchou, como se cumprimentasse seu dono ─ Onde você esteve? Eu lhe enviei vários sinais e você sequer apareceu! ─ os alforjes de viagem do guerreiro permaneciam presos à sela do animal ─ Você sempre some, quando mais preciso, amigo! ─ Daisuke reclamou, mas viu o cavalo se dirigir a uma grama próxima ─ E já vai comer… Ótimo… Agora, eu vou ter que aturar os reclames dessa pirralha sozinho… ─ ele prosseguiu, olhando e apontando para Lin ─ Se vacilar, é capaz de você fugir de novo e me levar o cavalo dessa vez, não é? ─ a rival permaneceu do mesmo jeito ─ Mas aqui se faz, aqui se paga, certo? Se eu ainda tivesse meu alforje de porções, poderia cuidar de você agora. Havia muitos remédios bem úteis ali. Mas você tem uma espetacular habilidade de fazer besteira. E agora, você está aí, morrendo, ou fingindo que está dormindo, vai saber… ─ e prosseguiu com seu monólogo, tentando convencer a si mesmo de que tudo se resolveria de alguma forma ─ Mas tudo bem… Você logo vai acordar, eu sei. E não vai parar de me arrumar problemas, que é o que você sabe fazer de melhor. É bem provável que já esteja preparando outro de seus feitiços.
Naquele instante, Lin começou a respirar mais forte e a se mexer no gramado. Ao sentir a energia agourenta voltar a emanar de seu ventre, o Samurai de Miura se colocou ao seu lado prontamente, preocupado com o que estava por vir.
─ Não… Por favor… ─ Lin gemeu, angustiada, apertando as Marcas com força.
─ Essa porcaria de vudu outra vez…
─ Já estou indo…
─ E o sangramento está recomeçando…
─ Pare… Por favor…
─ Ela não vai resistir…
─ Estou indo!
─ Céus…
─ Estou indo!!
Angustiado com aquele martírio, Daisuke levou as mãos à cabeça, sentindo-se perdido.
─ Eu não sei o que fazer…
Sentiu, então, uma frustração imensa tomar conta de seu espírito: seu coração parecia que ia sair do peito, de tão forte que batia, sua garganta parecia se fechar… O mesmo desejo de outrora havia voltado: todo o mundo que girava em torno de ambos, tudo o que eles eram um para o outro parecia ter desaparecido.
─ Amaya… O que posso fazer por você?
Naquele instante, com suas mãos sobre as de Lin, Daisuke sentiu o próprio corpo reagir de forma estranha. Sem que se desse conta e sem que pudesse compreender ou controlar, fez emanar, de suas próprias mãos, uma intensa luz roxa e agourenta, proveniente de um procedimento de Magia Negra que ele nunca havia feito antes e que sequer havia intencionado fazer.
─ Mas… Que poder é esse? ─ ele se perguntou, olhando para as palmas das mãos, estarrecido, sem saber a real procedência daquilo ─ O que devo fazer?
E ao perceber que a energia em suas mãos pulsava de acordo com as pulsações da energia que emanava do ventre de Lin, ele deduziu que suas habilidades em Magia Negra, estranhamente potencializadas como estavam, poderiam ser usadas em favor da jovem. O Samurai, então, não pensou duas vezes: afastou o kimono de Lin, dispôs as mãos abertas sobre as Marcas ensanguentadas e manteve aquela energia agourenta, até que seu corpo não mais a pudesse suportar. Quando findou o procedimento, recostou-se à árvore novamente e percebeu que a jovem Bruxa estava a salvo: as dores haviam sumido, assim como o sangramento.
Longe dali, em Ono-Aoki, a façanha do Samurai de Miura seria identificada, para a frustação da Líder das Bruxas e preocupação do Conselho.
─ Minha Magia foi interrompida! Mas como isso foi possível!? ─ Masumi se perguntou, entre a incredulidade e o descontentamento, analisando o amuleto, onde guardava os feitiços que mantinham as Bruxas vinculadas ao Clã.
─ Amaya não está tentando anular seu feitiço. ─ assegurou, uma das anciãs do Conselho ─ Nós reconheceríamos a energia dela, caso ela tentasse fazê-lo.
─ O Samurai de Miura não possui grandes habilidades em Magia Negra? ─ a outra anciã lembrou.
─ Talvez, Daisuke esteja ajudando nossa Bruxa a se livrar do Chamado. ─ sugeriu, a terceira ─ Se ele é um poderoso usuário de Magia Negra, certamente, já percebeu que pode desfazer o vudu.
─ O que aquele verme intenciona, afinal!? Iludi-la!? Fazer com que Amaya desista do Clã!? ─ Masumi questionou, enraivecida ─ Pois não permitirei que o faça!
Em Hasegawa, Lin sequer poderia imaginar o tamanho do problema que ela e seu rival haviam criado.
─ O que houve? ─ ela se perguntou, um tanto confusa, ao abrir os olhos e ver o Samurai recostado à árvore, naquele estranho estado de esgotamento.
A conhecida energia maligna ainda pairava no ambiente e vibrava do corpo do guerreiro.
─ O que você fez!? ─ Lin questionou, preocupada, sentando-se no gramado, ao se dar conta de que estava livre do martírio ─ Daisuke! ─ e insistiu, meio descontente, sobretudo ao ver as queimaduras nas mãos do rival ─ O que você fez!? ─ ela questionou, entre a raiva e o temor, já de joelhos ao lado do Samurai, apertando a gola do kimono de Daisuke com raiva ─ Responda!!
─ Como você é barulhenta… ─ ele se queixou, abrindo os olhos lentamente, como se se esforçasse bastante para fazer aquela simples tarefa ─ Fique quieta, Aoki…
E ao suspeitar de que ele a havia ajudado de alguma maneira e que, por conta disso, estava tão debilitado, Lin sentiu seu coração se encher de raiva e, ao mesmo tempo, de gratidão.
─ Está tão frio e suado…
─ Ei… O que está fazendo? ─ Daisuke perguntou, ainda atordoado, abrindo os olhos outra vez, ao sentir que as mãos da jovem envolviam seu rosto ─ Saia de perto de mim… Você está imunda…
─ Cala essa boca… ─ Lin resmungou, fitando-o seriamente ─ Não me desconcentre.
─ O quê?
Daisuke, então, sentiu uma energia pura e revigorante invadir todo seu corpo de repente. Ao abrir os olhos outra vez, viu a jovem ainda ajoelhada ao seu lado, com as mãos em seu rosto e com os olhos fechados, repetindo, bem baixinho, o que lhe pareceu ser um Mantra Sagrado. Em vez de adverti-la, ou de impedi-la de ir adiante, ele se permitiu ficar naquele estado de submissão, não somente pelo alívio e pelo conforto que a intensa luz azulada lhe proporcionava, mas, sobretudo, pelo fascínio que aquele rosto belo e sereno lhe causava.
─ Amaya… ─ ele a chamou, tentando ver se ela estava em si.
Mas Lin permaneceu sussurrante e indiferente a qualquer estímulo externo, completamente concentrada naquele procedimento curativo.
─ O que estamos fazendo? O que significa tudo isso? ─ ele pensou, dispondo uma de suas mãos no rosto de Lin, gentilmente ─ Quem é você, afinal? Por que droga você surgiu em minha vida?
O procedimento demorou tempo suficiente para não levar o guerreiro a tomar uma atitude impulsiva. Quando Lin deu sinais de que findaria o Mantra, Daisuke retirou sua mão do rosto dela ligeiramente e procurou se manter o mais indiferente possível, para quando a jovem voltasse a si. Aquilo, porém, não aconteceria, pois, quando a luz azulada dissipou por completo, Lin não abriu os olhos e caiu sobre o guerreiro, desmaiada. Daisuke a amparou como pôde e logo se deitou no gramado, para acomodá-la parcialmente sobre si, de modo que, quando despertasse, Lin se veria entrelaçada ao corpo do rival e com sua cabeça repousada sobre seu ombro.
─ Não posso matá-la, Mestre Akinori… Eu não consigo fazer isso… ─ ele lamentou, conformado, e não hesitou em desfrutar daquele instante de relaxamento e de aproximação com aquela que, há muito, vinha lhe atormentando o juízo ─ Ela não é como as outras Aokis…
Quando Lin despertou, era madrugada. A lua ainda brilhava no céu e, junto às brasas da fogueira, iluminava a noite escura. Ao se dar conta de onde, como e com quem estava, ela se assustou e levantou o tronco. Daisuke sequer se moveu. Do que a jovem não sabia era que o Samurai já havia acordado há um tempo e que, estrategicamente, manteve-se como estava, para sondar as reações dela, quando despertasse.
─ Que porcaria é essa? ─ Lin pensou, confusa e preocupada ─ O que houve? Por que estou aqui… com ele… e desse jeito?
Daisuke seria o único capaz de lhe dar aquela resposta, uma vez que os eventos decorridos do Chamado não faziam parte das lembranças de Lin, igual como havia acontecido em Ishikawa, na ocasião em que ela curou seu Guardião dos ferimentos da kekkai da Tenseiga Elemental. Do martírio do Chamado, ela se lembrava e muito bem, apesar de não ter, muito nitidamente, as memórias sobre o auxílio de seu rival.
─ Droga… Já é madrugada… Mas de que dia?
Enquanto sua mente se esforçava para relembrar os eventos, Daisuke se esforçava para não lhe dar pistas de que estava acordado e se mordia de curiosidade para saber o que Lin tanto fazia e por que permanecia enroscada em seu corpo. Disposto a dar um basta naquela sensação incômoda, ele se mexeu no chão, mas não esperava que a rival reagisse daquela maneira ─ Lin, em vez de se levantar, acomodou o rosto novamente em seu peito e fingiu que estava dormindo. O Samurai, então, controlou o riso e fingiu um bocejo. Depois, sentou-se bruscamente, empurrando a jovem para o lado, como se ela fosse um estorvo.
─ O quê? O que houve? ─ Lin fingiu o assustado despertar, e Daisuke, muito estrategicamente, entrou em seu jogo.
─ Você acordou… ─ ele comentou, indiferente, e viu a jovem se sentar ao seu lado, um tanto acanhada e descontente.
─ Claro que acordei, você me empurrou como se eu fosse um saco de arroz…
─ Você estava babando em meu kimono.
─ E você estava roncando!
─ O quê?
─ Isso mesmo! Roncando feito um animal!
─ Eu estava? ─ o Samurai deu um risinho provocativo ─ Então, você estava acordada?
─ Eu? Claro que não!
─ Não?
─ Não! Eu… ─ Lin tentou pensar em algo, mas não conseguiu, tamanho seu embaraço diante da situação ─ Na verdade, eu…
─ Isso pouco importa… ─ Daisuke se adiantou, indiferente, e se levantou do gramado ─ Você precisa tomar banho.
─ O quê? ─ Lin questionou, entre a raiva e o constrangimento.
─ Está cheirando mal.
─ Agora essa…
─ Para sua sorte, tem um rio logo ali. Aproveite.
─ Você é sempre indelicado desse jeito?
─ Indelicado, mas sempre limpo e higiênico. Já você…
─ Céus… Eu mereço…
─ Para sua sorte, eu tenho sabonetes em meus alforjes, nos que você não me roubou antes de fugir, madrugada passada. Você quer um?
─ Não me faça lhe dizer o que você deve fazer com seu sabonete.
─ Nossa… ─ Daisuke riu, sarcasticamente ─ E eu que sou indelicado…
─ Quero saber o que aconteceu. ─ Lin disse, levantando-se do chão com certa dificuldade, dispondo uma das mãos em seu ventre, devido à dor.
Ela mal conseguiu ficar totalmente erguida, sentia as Marcas fisgarem sempre que tentava fazê-lo. A restrição não passou despercebida à análise do Samurai, que ficou a observar a rival também enquanto ela tentava arrumar as longas madeixas, assanhadas e endurecidas pelo suor e pela chuva, e recompor seu kimono, manchado de sangue e de lama.
─ Onde está minha obi? ─ Lin estranhou o fato, ao perceber a ausência da peça.
─ E eu que sei?
─ Por que nós estávamos daquele jeito?
─ De que jeito?
─ Dormindo daquele jeito! ─ ela insistiu, enfaticamente, mesmo um tanto envergonhada.
─ Você não se lembra de nada?
─ Não de tudo.
─ Mmm…
─ O que foi esse tom?
─ Que tom?
─ Esse tom sugestivo! Como se algo tivesse acontecido!
─ Olha, você estava sangrando e se arrastando pelo chão, feito uma minhoca agonizante! ─ Lin lhe dirigiu o olhar atravessado ao escutar aquilo ─ Dois ninjas quase a mataram mais cedo, sabia?
─ Seis.
─ O quê?
─ Eram seis ninjas, na verdade.
─ Seis?
─ Eu estava atrás deles, quando comecei a sentir uma dor em meu ventre e…
─ Ah, então você se lembra!
─ Não de tudo, já disse! ─ ela insistiu ─ Depois de aquilo começar, as lembranças que me restaram foram poucas. Eu me lembro da dor, mas não do que aconteceu!
─ Ótimo, uma Bruxa com amnésia…
─ Eu nem sei como, nem por que você está aqui! Eu estava na floresta, lutando contra aqueles ninjas, e, agora, estou num campo de flores, com você!
─ Você está muito longe de ser uma Aoki de verdade.
─ Vai começar…
─ Exceto por esse vudu que você tem nessas Marcas.
─ Você vai me contar o que houve, ou não? ─ Lin questionou, reprovativa.
─ Já lhe disse! Você estava se contorcendo de dor, sangrando e se arrastando pelo chão, e dois ninjas estavam prestes a matá-la!
─ E você os matou.
─ Eles estavam em meu caminho, o que mais eu poderia fazer?
─ Eles estavam em seu caminho… Engraçado, você me critica e diz que estou muito longe de ser como as minhas companheiras de Clã, mas você também não está muito distante de ser como os Samurai de Miura?
─ O quê? ─ Daisuke questionou, descontente.
─ Você me salvou daqueles ninjas! Desde quando os Samurais de Miura ajudam Aokis?
─ Aqueles mercenários estavam em meu caminho, já disse! Não fiz aquilo por você, não seja convencida!
─ Se fosse mesmo por isso, você teria seguido seu caminho e eu não estaria aqui. E nem teríamos adormecido daquele jeito, perto de uma fogueira, que você montou.
Daisuke não soube como lidar com a situação e preferiu ficar calado, com ar de indiferença.
─ Olha… Eu só quero saber o que aconteceu. Apenas isso. ─ Lin insistiu, em tom de trégua ─ O que houve depois do Chamado?
─ Chamado? ─ ele perguntou, mais interessado em mudar de assunto do que em tomar conhecimento daquilo.
─ O que aconteceu comigo, seu idiota, o Chamado de Ono-Aoki! ─ Daisuke respirou fundo ─ É uma forma de minha Líder me alertar.
─ Ah, pensei que fosse de matá-la.
─ De me lembrar de que estou demais atrasada, de que estou onde eu não deveria estar.
─ É assim que você entende um vudu que pode acabar com sua vida?
─ O modo como compreendo as práticas de meu Clã não lhe diz respeito, Samurai de Miura.
─ Claro… Muito conveniente para você.
─ Mais conveniente para mim, nesse momento, é saber o que aconteceu depois do Chamado. ─ Daisuke moveu a cabeça de um lado a outro, rindo de modo sarcástico ─ Por que você não quer me contar?
─ Melhor você ir tomar banho.
─ Eu me lembro de ter sentido uma energia maligna, semelhante àquela que emanou de seu corpo na nossa última luta. ─ Lin revelou, finalmente ─ E me lembro também de ter visto suas mãos em brasa depois disso.
─ E do que mais você se lembra, Aoki? ─ Daisuke perguntou, fazendo pouco caso do que Lin dizia.
─ De mais nada.
─ Porque as minhas mãos estão intactas. Veja. ─ e mostrou as palmas das mãos à jovem, com ar de crítica ─ O que quer que esteja se passando em sua cabeça oca não deve ser mais do que mera imaginação.
Mas Lin preferiu não lhe revelar que, em suas lembranças, estava registrado também o momento em que ela havia iniciado o Mantra Sagrado em auxílio do guerreiro, menos ainda que ela estava temerosa quanto ao que pudesse ter acontecido em decorrência daquele procedimento curativo. Inevitavelmente, Lin só conseguia pensar no estado de vulnerabilidade que ela havia ficado com Sesshoumaru, em Ishikawa, e temia que algo do tipo também tivesse acontecido com seu rival de Clã.
─ Sesshoumaru me garantiu que não aconteceu nada entre nós. Mas Daisuke está muito arredio. Por que está agindo assim? ─ a jovem ficou pensativa e cabisbaixa ─ Ele repudia tanto as Aokis… Talvez, só esteja sem jeito de me agradecer por eu tê-lo ajudado… ─ ela ponderou ─ Mas por que ele estava machucado daquele jeito? Terá se ferido na luta contra os ninjas que queriam me matar? Terá usado Magia Negra contra eles? É bem provável que sim.
─ Vai ficar aí parada, olhando para o chão?
─ Mm? ─ Lin perguntou, distraída.
─ Acho melhor você tomar banho.
─ Quê?
─ TO-MAR-BA-NHO! VOCÊ! ─ Daisuke repetiu, e viu a jovem respirar com resignação.
─ Não creio que um banho vá resolver minha situação, meu kimono está imundo… ─ ela lamentou, analisando o próprio traje ─ Mas já é alguma coisa.
─ É o que acho.
─ Você não ia me dar um sabonete?
─ Você não está merecendo, na verdade. Ainda não me esqueci do seu furto, pirralha. Roubou meu alforje de porções e meu par de botas extra. E as perdeu, não?
─ Quanta fominhagem…
─ O que disse?
─ Vai me dar essa droga de sabonete, ou não?
─ Não.
─ Então, não me encha a paciência!
─ Acontece que… Eu vou lhe dar algo muito melhor.
─ Ah, sim? ─ Lin estranhou aquele sorrisinho irônico ─ E o que é?
─ Não sei se vai servir para tirar esse seu cheiro de urina e de bicho morto, mas…
─ Esse seu cheiro de urina e de bicho morto… ─ Lin repetiu, imitando a fala do rival de modo debochado ─ Você é muito infantil, sabia?
─ Eu que sou? Tem certeza?
─ Olha… Eu não vou mais perder o meu tempo com você.
─ Espere aqui, eu já volto.
─ O quê?
─ Vou lhe trazer o que precisa.
─ Não quero mais!
─ Vê se não me apronta outra de suas gracinhas, ouviu?
E antes que pudesse questioná-lo, Daisuke lhe deu as costas e partiu em direção aos alforjes, restando-lhe apenas aguardar por seu regresso. Uma vez que ainda queria descobrir o que havia acontecido após o Chamado, de que lhe adiantaria fugir da situação? Resolveu, então, aguardar o retorno do guerreiro. No tempo em que o acompanhou com o olhar, Lin não conseguiu não pensar no que Masanori havia lhe dito a respeito do sobrinho.
─ “É certo que meu filho mais velho é implacável com as Aokis, mas ele… Meu sobrinho é mil vezes pior a respeito das Bruxas de Ono-Aoki. Ele odeia profundamente seu grupo, já matou muitas Aokis”.
─ Masanori-Sama… Tudo isso é meio estranho… ─ ela sussurrou, analisando o guerreiro à distância ─ Daisuke não me parece ser essa pessoa abominável que o senhor pinta. Ele é indelicado e retardado, mas… Às vezes, ele é até gentil. Apesar de tudo.
E quando percebeu que o Samurai estava para regressar, ela mudou o foco de seus pensamentos e de sua mirada.
─ Aqui está. ─ ele disse, oferecendo o objeto à jovem, que o aceitou numa boa.
─ Um sabonete…
─ Por nada, já que você agradeceu.
─ Não ia me dar algo melhor?
─ Ah, sim… ─ Daisuke riu, de modo sugestivo e debochado ─ Agora não. Só depois do banho.
─ O quê? ─ Lin questionou, descontente.
─ Tenho certeza de que você vai gostar muito.
─ Você é tão indecente, honorável Samurai de Miura…
─ Sim, você vai implorar para receber o que tenho para lhe dar, Aoki…
─ Espera… ─ Lin se adiantou, seriamente ─ O que significa isso?
─ Isso o quê?
─ Esse outro sabonete em sua mão?
─ Ah, isso? Eu vou tomar banho também.
─ O quê!? ─ ela questionou, com riso de revolta.
─ Você me sujou todo com seu sangue. Sinta! ─ e puxou a mão da rival, para colocá-la sobre seu traje, à direção do abdome.
Se fosse dia, o Samurai de Miura veria a jovem Bruxa corar.
─ Também preciso me limpar, não posso ficar desse jeito.
─ Ora, solte minha mão! Não seja atrevido! ─ Lin reclamou, contrariada, livrando-se daquele contato ─ O que está pensando? Que vou entrar nesse rio com você?
E ao escutar aquele sério questionamento, Daisuke se pôs a gargalhar.
─ Posso saber qual é a graça?
─ Você enlouqueceu, vadia?
─ Não me chame disso!
─ Só uma vadia convencida pensaria numa baixaria dessa.
─ Você é muito hipócrita, isso sim!
─ E você não tem senso de ridículo! ─ ele a criticou, também seriamente ─ Caia na real, pirralha! Esse rio é enorme, sinuoso e cheio de pedras altas! Sob hipótese alguma, faríamos isso juntos! Você vai se lavar beeeeem longe de mim! ─ Lin não conseguiu dizer nada, apenas ficou a fitar o rival, com ar de ódio, enquanto o via tomar o caminho do rio ─ Pode ficar bem despreocupada, que ninguém aqui vai espionar você, minhoquinha agonizante!
Quando sozinha, a jovem não pode evitar a autocrítica.
─ O senhor tem TOOOODA razão, Masanori-Sama! O seu sobrinho é uma criatura MUUUUUITO abominável!
* * *
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.