— Oh! Foi um belo tiro, Lady Higurashi! — Sir. Mushin falou com a face ainda estupefata e ao mesmo tempo contente pela jovem dama.
Sango, que tinha o coelho nauseabundo em sua posse, o segurando pelas orelhas, ergueu o olhar para Mushin ao se aproximar novamente do senhor careca e do animado Marquês que não tardou a aplaudi-la de forma lenta, porém ritmada.
— Esplêndido, Lady Higurashi! — Miroku falou com um sorriso sincero na face — Tinha certeza de que o pegaria.
Sango corou com os comentários alheios sobre a sua assertividade. Mais ainda pela face alinhada daquele homem de olhos azuis cobalto que reluziam por baixo do sol intenso. Tão logo, ela arranhou a garganta e baixou novamente o olhar para alocar o coelho sem vida dentro de uma bolsa de tecido rústico da qual costumava levar nas suas caçadas.
— Hm… — Sango ensaiou dizer. Hesitante, ela perdeu-se por um minuto no nó simples e arranhou a garganta mais uma vez antes de prosseguir com as bochechas em chamas — Lord Evans também… Er… teria conseguido acertá-lo… — finalmente Sango concluiu, com o timbre baixinho, sem olhar diretamente a Miroku, postergando sem necessidade o laço na bolsa só para evitar o contato visual.
Miroku sorriu pelo comentário afável e também pelo trejeito visivelmente encabulado de Lady Higurashi. Daquela perspectiva e munida de uma timidez pouco inerente, ela pareceu genuinamente bonita. Mais do que antes e possivelmente menos do que futuramente quando, sem querer, a dita cuja insistiria em deixá-lo daquele jeito: sem palavras. Pois Sango sempre surgia com alguma característica aterradora capaz de afundá-lo na mais completa admiração. Um ciclo interminável de surpresas deliciosas.
Decerto, não havia tédio quando seus caminhos se cruzavam, tampouco Miroku pensava que ela seria capaz de fadiga-lo, seja no diálogo como na aparência. E, apesar do marquês gostar mais da face audaz, dos olhos incisivos e prestes a engolirem quem quer que fosse, ele não pôde negar que a mulher a sua frente também combinava com aquela doçura, quase pueril.
Mediante a isso, o jovem nobre ponderou sobre quantas faces mais ela ainda teria para lhe mostrar e quantas outras o fascinariam com tamanho arroubo. Em definitivo, não havia como descobrir, o que só tornava tudo mais envolvente e empolgante.
— Bem! — Sir. Mushin falou num supetão, interceptando o silêncio pontual que se manteve entre os três, assim como o olhar já indiscreto de Miroku sobre a moça. — Depois desse feito incrível, devemos pegar a carruagem, não?
Tendo sido obrigado a voltar à realidade, Lord Evans ergueu o olhar repousado teimosamente sobre Sango e prosseguiu com o diálogo como se nada houvesse acontecido. Como se por um momento não houvesse se perdido de si mesmo.
— Meu tio, já é possível notar a silhueta da propriedade, não está tão distante daqui. — Miroku falou olhando na direção oposta. Depois, voltou a fitar Sango com um sorriso de canto. — A senhorita Higurashi se importaria se seguíssemos a pé? Gostaria de um passeio nos campos. O que acha?
Sango franziu a testa pelo pedido inusitado.
Realmente não era uma caminhada tão longa, mas com a carruagem a chegada a sua morada seria muito mais rápida. Se a intenção dos distintos senhores era visitar o seu estimado pai, não havia motivos para o demorado devaneio. Até porque, mesmo sendo Surrey um belo lugar para se passear, não havia, na sua concepção, coisas muito estonteantes para se observar naquele ponto em que se encontravam. O que tornava a coisa mais sem nexo ainda.
De todo modo, Sango não conseguiu encontrar palavras precisas para rechaçar o pedido e nem encontrou de pronto uma desculpa palpável para oferecer uma recusa honesta. Posto que, falar que se sentia cansada por uma distância ínfima ficaria mais do que claro que não lhe apetecia ter a companhia dos cavalheiros. Isso soaria rude, clarividente.
Colocar a desculpa no peso também não adiantaria, pois Miroku ainda segurava o seu mosquete e já havia estendido a mão para carregar o coelho guardado na sacola.
Sendo assim, numa velocidade incrível, algo veio à sua mente, talvez a única cartada possível para se dar naquela circunstância.
— Sir. Mushin não está cansado para a empreitada? — Sango indagou, fitando o senhor que limpava um pouco esbaforido o suor da testa mais uma vez. — Creio que o sol esteja forte essa manhã. Penso que seja um incômodo.
Por mais que Sir. Mushin não desejasse nem em um milhão de anos gastar as solas dos sapatos e nem expor a careca lustrosa sob o sol escaldante que começava a ficar cada vez mais forte, ele guardou o transtorno no seu âmago. Afinal, ele bem sabia que Miroku só queria ter um pouco mais de tempo com a moça. Assim, o honrado senhor teve que lamentar em silêncio pesarosamente por ter que seguir adiante.
— Imagine, Lady Higurashi — Sir. Mushin falou com um sorriso amarelo. — Nada que esse velho não possa suportar! E Miroku tem razão, afinal. Apreciar a paisagem com uma caminhada fortalece o espírito e faz bem às vistas.
Sango relaxou os ombros involuntariamente. Não havia mais qualquer coisa possível para se agarrar.
— Hm… Se o senhor diz… — Ela falou, olhando para Miroku de soslaio.
— Excelente! — Miroku sorriu abertamente e não declinou da mão estendida na direção da sacola — Lady Higurashi, permita-me.
— Não é necessário, o senhor já está a levar o mosquete — respondeu Sango. Dessa vez, o fitando diretamente. E lá estava a face decidida e recheada de certezas que Miroku estava acostumado a lidar. — E também não é como se não conseguisse fazer isso sozinha, na verdade, geralmente levo os dois.
— Tenho certeza, é só que…
— Vamos — ela falou, iniciando a caminhada e o ignorando parcialmente — essa conversa está me dando sede.
Não dispondo de alternativas e havendo Sango dado os passos a frente, Miroku guiou o olhar um pouco surpreso por ter sido abertamente ignorado para o tio que além de sorrir, deu de ombros para a questão.
Sir. Mushin, sem utilizar verbetes sonoros, movimentou os lábios, desenhando claramente a palavra “vá”, balançando conjuntamente a mão no ar.
Por conseguinte, seguindo o conselho silencioso, Lord Evans o fez.
Ancorando melhor o mosquete no ombro direito, ele tratou de apertar o passo para ficar lado a lado com Lady Higurashi e aproveitar os poucos minutos que teriam, em termos, a sós. Dado que, era mais do que óbvio que Sir. Mushin andaria na retaguarda, uns bons passos para trás, fingindo admirar a bela paisagem e permitindo que o jovem casal trocasse algumas palavras entre si.
— Lady Higurashi, preciso entregar algo à senhorita — Lord Evans disse enquanto buscava com a mão livre algum item dentro de sua bolsa de couro, pendida transversalmente ao corpo.
— Entregar algo a mim? — Sango repetiu, com a face confusa.
Mas o Marquês não respondeu de pronto, ficou a futucar na bolsa até por fim encontrar o objeto parcialmente mencionado. De uma só vez, ele o puxou e o artefato não podia ser mais inusitado…
— Um livro? — Sango arqueou as sobrancelhas.
— Sim — ele assentiu, estendendo o livro a ela. — Um presente para a senhorita.
Sango piscou lentamente e olhou do livro ao Marquês pelo menos três vezes. Aquela visita estava cada minuto mais inconclusiva. Lady Higurashi não conseguia imaginar o motivo de Miroku tomar tal atitude, ou talvez, ela só não quisesse crer em uma determinada possibilidade.
— Pensei em trazer flores à senhorita, mas acreditei que uma obra literária cairia melhor ao gosto — Miroku sorriu amarelo, por Sango não tomar uma atitude a respeito. — Errei rudemente por fazê-lo?
— Ah, não! Não é esse o caso! Desculpe… — Sango falou, com um timbre e expressão ainda um pouco surpresa — É só que…
Mas, de repente, tendo ela absorvido o início da frase dita pelo Marquês, Sango não conseguiu deixar de torcer a face.
— Disse que pensou em me trazer flores?
— Se gostou, só aceite, Lady Higurashi — Miroku riu de forma branda, estendendo outra vez o livro a ela.
Naquela vida ou em qualquer outra, não se dá presentes sem alguma pretensão, por qualquer razão que seja. Ainda mais vindo de um cavalheiro para uma dama. Sango bem sabia daquilo. Mas, fosse o que fosse o motivo de Lord Evans tomar a atitude, ela não conseguiu refutar outra vez a estranheza da coisa.
Em primeiro lugar porque Miroku havia cortado as chances de mais um questionamento a respeito. E, em segundo, porque foi só seus olhos castanhos se fixarem na capa para que ela o pegasse de uma só vez, com clara admiração.
— Cândido… — Sango falou embasbacada, fitando o livro agora em sua posse. — Voltaire.
— Apetece a senhorita tal leitura? — Miroku indagou, a encarando com um misto de curiosidade e tensão.
— De fato — Sango sorriu, o encarando em definitivo com os olhos amainados. — Uma surpresa agradável, Lord Evans.
Miroku sentiu aquele formigamento esquisitíssimo percorrer a coluna pelo sorriso franco e sincero que outra vez brotava na face feminina tão bonita de se admirar. Entretanto, diferente dos momentos anteriores, ele conseguiu controlar o fascínio e manteve uma postura airosa.
— Fico contente por saber disso, senhorita.
— O senhor também o aprecia? — Ela indagou, arqueando o livro no ar. — Voltaire?
— Para ser sincero nunca o li, tampouco sou um ávido conhecedor das ideias do distinto cavalheiro — Miroku falou de forma franca, sem desviar o olhar. — A verdade é que quando olhei para o volume só pensei em dá-lo à senhorita. Tive a sensação de que gostaria de recebê-lo.
Sango sentiu o coração bater engraçado contra o peito. De uma maneira peculiar, difícil de descrever. Entretanto, ela não quis se agarrar no torpor sentido e nem naquele homem ridiculamente perfeito que falava com um tom tão macio que era possível deitar nas ondas sonoras produzidas por suas cordas vocais precisas. Um nato possuidor de um timbre doce e ao mesmo tempo firme do qual não titubeia, nem estremece, e sim encanta dando uma fluidez pontual à fala. Lady Higurashi precisava admitir que ele tinha uma lábia terrível e muito dessa sensação, com certeza, advinha da tal dicção analítica, clinicamente pensada.
Aquele pensamento fez com que Sango desse um risinho antes de prosseguir com o diálogo.
— Sabe, Lord Evans… Voltaire também é um amante dos jogos, em especial, os de azar. Gosta muito de apostar e tem um humor ácido, bem peculiar. Tão sarcástico que é capaz de assombrar os outros com suas falas e escritos polêmicos. — Sango deu uma piscadela irônica a ele. — isso o lembra alguém?
— Hm, interessante… — Miroku falou, compreendendo a indireta. Logo, ele mordeu o lábio inferior de forma travessa antes de se direcionar de novo a ela. — Mas será que ele declina ao final do enlace? Se assim for, decerto ele está parecido mesmo com alguém que conheço! Caso contrário, não sei de quem se trata.
Sango entreabriu os lábios com a devolutiva inesperada, mas dessa vez ela não enraiveceu. Ao contrário, riu brevemente junto ao Marquês pela virada de mesa exemplar.
— Lord Evans, será que nunca irá superar o caso? — Sango fingiu estar aborrecida, girando os olhos de forma divertida. — O senhor parece uma criança birrenta, sabia?
— De fato sou — Miroku assentiu, dando uma careta a ela —, mas foi a senhorita que começou dessa vez, Lady Higurashi.
— Está certo — Sango assentiu, reconhecendo o argumento.
— Mas, sobre isso… — Miroku voltou a falar, dessa vez com seriedade — lamento que tenha sido assediada a tal premissa. Se soubesse que o Barão a induziria, teria sido mais firme no caso.
— Esqueça, Lord Evans — Sango respondeu, balançando a cabeça em negativa suavemente — isso já ficou no passado, afinal. Precisamos seguir em frente.
— É verdade. E para isso, há uma segunda coisa que preciso dar à senhorita para findar o assunto.
— Hã? Do que o senhor está falando? — Sango juntou as sobrancelhas, observando o Marquês novamente remexer no interior da bolsa.
Miroku não respondeu de pronto, preferiu focar na coordenação motora do ato. Já que não contava com as duas mãos livres, devido ao mosquete ancorado do lado direito do corpo, ele teve que tatear desajeitadamente com a mão esquerda. Quando, por fim, terminado de vasculhar, ele angariou o objeto e sorriu satisfeito por finalmente ter encontrado. E tal qual o livro, Miroku tirou de uma só vez, sem suspense.
Um barulho específico tilintou no ar assim que o Marquês realizou o movimento. Uma pequena bolsa de tecido preto saltou aos olhos curiosos da jovem dama. Sem dar muita chance para Sango refletir no que se tratava, ele estendeu o objeto de pronto na direção dela.
Involuntariamente, Lady Higurashi colocou o livro embaixo do braço e segurou a bolsinha com a mão desocupada. Novamente o tilintar se deu e não havia mais dúvidas quanto ao conteúdo da coisa ofertada.
— Isso é… — Ela falou, visivelmente embasbacada — É realmente…
— As duas mil moedas, claro — Miroku sorriu, assentindo.
— Isso não faz sentido, Lord Evans — Sango falou seriamente, estendendo a bolsa recém obtida por ela. — Não posso de maneira alguma aceitar as suas moedas.
— Claro que pode! — Miroku deu de ombros, ignorando categoricamente o gesto de Sango para que ele pegasse a bolsinha de volta. — Ela é sua por direito, sabe disso.
— Lord Evans…
Sango tentou refutar, mas acabou sendo interrompida pela voz ao fundo de Sir. Mushin, que tão silencioso já algum tempo a fez esquecer por um minuto que ambos dividiam o mesmo ambiente.
— Hei, Miroku! Espere um pouco! — Sir. Mushin falou, os impedindo de prosseguir e de continuar o diálogo.
Ambos viraram-se de imediato na direção da voz e só então perceberam que Sir. Mushin estava há uns consideráveis passos de distância. Com a face empolgada, o senhor careca fitava uma bela árvore florida, cujas folhas começavam a tingir de um tom alaranjado dando uma clara anunciação do outono que já batia na porta.
— O que o senhor está fazendo, meu tio? — Miroku indagou, com um sorriso de canto e um semblante curioso.
— Estou simplesmente encantado com essa árvore. Que folhas belíssimas! — Sir. Mushin respondeu alegremente. — Deem um minuto para a minha apreciação, já retomamos, sim?
Miroku acenou em positivo com a cabeça, ancorando a mão desocupada no quadril. Mais do que ninguém, o Marquês sabia que o tio só estava a postergar o passeio que nada tinha de despretensioso. Mentalmente, ele o agradeceu por aquilo, pelo esforço em deixá-lo mais alguns minutos com Lady Higurashi.
— Lord Evans — Sango o chamou, tentando buscar a atenção do rapaz para si.
Sem titubear, os olhos azuis cobalto voaram para ela, e lá estava Lady Higurashi de forma reiterada a tentar entregar a bolsa com as moedas.
— Por favor, Lord Evans, pegue as moedas — ela insistiu, com um semblante torcido, quase indecifrável.
— Por que não pode aceitá-las, Lady Higurashi? — Miroku indagou com uma face séria, ainda que não incisiva.
— Porque isso não faz o mínimo sentido! — Ela falou, como se fosse óbvio. Mas, não tardou a retomar um timbre mais ameno a fim de prosseguir. — Escute, entendo o sentimento do senhor. Inclusive, devo dizer que é muito cordial da sua parte. Saiba que não faço a recusa por orgulho e nem por desfeita.
— Sendo franco, não é o que parece.
Sango franziu a testa e sua paciência, paulatinamente, começou a esvair por aquela espécie de discussão infundada.
— Lord Evans, como pode prever a minha vitória? — Sango indagou incrédula. — Já é sabido o fato da intromissão do meu primo, mas o que o faz crer que eu teria acertado a pontuação certa? Que teria conseguido atingir os três dardos? Poderia ter errado também. Nunca saberemos.
— “A felicidade não é um ideal da razão, mas sim da imaginação” — Miroku falou, com um largo sorriso estampado na face que fez estreitar os olhos.
Sango piscou lentamente. Não só pela fala em si, mas por saber exatamente de onde o conceito vinha. Necessariamente, de quem. Já estava démodé ficar pasma, mas ainda assim ela se postou daquela maneira. Aquela era uma das manhãs mais estranhas da sua vida, com toda certeza.
— Kant? — Sango indagou descrente — Citou mesmo Kant?
— O que posso fazer? — Miroku deu de ombros, sem desmontar a face desanuviada. — A senhorita me instigou a personalidade.
Revisitando a mente, necessariamente a parte em que ambos dançaram no salão, Sango conseguiu o vislumbre da cena em que, endossando seu pensamento, ela citou Immanuel Kant. Na ocasião, Miroku havia satirizado como se fosse uma citação de Descartes por, eventualmente, ela ter dito a Lord Fernsby de forma ríspida a respeito ao ser confrontada como uma exímia leitora de poemas!
Descrente, ela não esperava que o Marquês houvesse se importado de verdade com a elucidação. Sequer ponderou que, em algum momento, ele buscaria o filósofo para esmiuçá-lo.
Indubitavelmente aquilo a pegou de surpresa, não tinha como não.
Uma surpresa boa… Ela devia admitir.
Mas, mesmo sendo gracioso o fato dele ter dado a devida atenção às suas palavras, passado o baque, ela retomou a retórica, fingindo não ter sido atingida por Miroku ter se dado o trabalho de pesquisar mais sobre Kant porque ela o falou.
— Kant também diz que é necessário lembrar-se de esquecer — Sango o fitou com a face suavizada — está preso no tempo, Lord Evans. Novamente digo que deveria superar o caso.
— Não se trata de superação, Lady Higurashi, mas sim do que é justo — Miroku falou, dando um passo à frente, mudando o centro de apoio do corpo para a outra perna. Sua tez séria se manteve e ele repousou as orbes diretamente nas dela para continuar o raciocínio. — Não há como esquecer, sinto-me miserável toda vez que penso na situação. E tenho certeza, no meu âmago, como também sei que a senhorita sabe, que venceria. Vi com meus próprios olhos suas habilidades no salão de jogos e agora pouco com a caçada. — Miroku sorriu de canto, ajeitando o mosquete pesado no ombro, sem desviar os olhos que a atingiram com a intensidade costumeira. — Então, não diga que não é por desfeita ou orgulho. No fundo, nós dois sabemos que a senhorita só não quer aceitar as moedas para não me dar o gosto de ter a absoluta certeza de que eu tinha razão.
Sango sentiu o baque intenso daquelas palavras. Chegou até a tontear pela assertividade analítica do caso. Pois, nem ela própria conseguiu enxergar tamanha presunção sobre o caso até o Marquês dizer deliberadamente a verdade da sua real hesitação.
Em silêncio, ela legitimou a fala e ficou um bocado perplexa consigo ao notar sua tamanha vaidade.
— E sabe por que eu sei disso? — Miroku riu brevemente, dando uma piscadela a ela. — Porque também, terrivelmente, sou assim.
Lady Higurashi não ousou a dizer mais nada. Resolveu, em silêncio, acatar o que foi dito. Afinal, não havia um julgamento errôneo e nem uma pretensão de se debater sobre. Por conta disso, a falta de dialeto os assomou e o que restou foi tão somente uma troca persistente de olhares em meio ao silêncio.
Mas, diferente do que se imagina, a pausa na conversação não deu um ar pesado e nem constrangedor ao momento. Na verdade, ele pareceu calhar oportunamente na circunstância. Tão perfeito como o vento afável que de repente balançou os cabelos livres, presos pela metade da jovem dama, e do jogo falhado de luz e sombras ocasionado pelas folhas da graciosa árvore que iluminavam de forma disforme o rosto primoroso do nobre.
Quem olhasse ao longe aquelas duas beldades se encarando, poderia dizer, com segurança, que algo começava a germinar. Justamente por essa razão que Sir. Mushin, ao vê-los tão implicados, resolveu ficar mais um pouco no mesmo lugar, realizando uma análise enfadonha de uma árvore qualquer que pouco o apeteceu.
Sango relaxou os ombros antes tensos e não teve opção a não ser dar-se por vencida com um respiro repleto de pesar. Miroku riu baixinho pela postura franca e desanimada da outra e com isso pôde retomar outra vez o diálogo.
— Lady Higurashi, não há motivos para falta de ânimo. Veja, eu quem deveria estar a suspirar. Perdi duas mil moedas para a senhorita!
— Tem mesmo certeza disso, Lord Evans? — Sango indagou, tentando buscar por algum canto nos olhos do outro que titubeasse. — Digo, acredita mesmo que eu teria vencido o senhor naquela rodada?
— Não houve um único segundo, desde que a senhorita saiu pela última vez da linha de arremesso, que tenha duvidado do resultado — Miroku disse, francamente, sem abalo no tom. — De longe é a pessoa mais habilidosa que conheço.
Outra vez, Sango sentiu o coração bater fora dos padrões normais e aceitáveis em meio a uma conversa singela. Sem dúvidas, o Marquês havia tirado a manhã para deixá-la sem fala. Lady Higurashi ponderou que até nisso ele era irritante. Dado que, ela estava irritada com o fato de não conseguir ficar irritada com ele!
Uma espetacular confusão, da qual só podia mesmo vir de Lord Evans.
Seja como for, Sango não quis se estender nos silenciosos momentos que eles passaram a desfrutar. Nem ficar trocando de maneira longínqua um olhar. Aquilo já estava ficando estranho. Tal qual o passeio que jazia mais demorado do que ela imaginou.
— Se o senhor acha mesmo isso, receberei suas moedas de bom grado — Sango falou levando a bolsinha preta recheada para dentro da outra de couro, pendida pelos ombros.
— Isso me enche de felicidade, Lady Higurashi! — Miroku falou, com o usual sorriso estampado. — É mesmo merecedora. Francamente espero que um dia, coisas assim, não sejam mais necessárias.
— A sociedade já está mudando, Lord Evans — Sango falou, o olhando de soslaio, enquanto guardava a bolsa de moedas e o livro na bolsa de couro pendida. — É mais do que claro que uma revolução está por vir.
— E isso não a assusta de alguma forma? — Miroku indagou, parecendo ponderar a respeito. — Essas mudanças?
— Não se teme o progresso, Lord Evans — Sango falou seguramente —, tampouco aqueles que desejam impedir que ele aconteça.
Miroku piscou lentamente ao apreender aquelas palavras. Sango tinha um jeito peculiar de causar admiração. Mas, ele não demorou a sair da tez absorta e sorrir, cerrando os olhos num breve aceno. Dado que, não entendia porque continuava a ficar assombrado com o que saía da boca da jovem dama.
— Debocha de mim, Lord Evans? — Sango indagou, arqueando uma única sobrancelha.
— Imagine! — Ele riu, balançando a cabeça em negativa. — Muito pelo contrário. Gosto da forma que Lady Higurashi expõe tão abertamente as próprias convicções, com tanta paixão. Nada que sai da boca da senhorita pode ser encarado como leviano e digno de escárnio, inclusive…
Miroku sorriu ladino, antes de completar a frase. Com uma expressão maliciosa, ele inclinou-se um bom tanto a ela, aproximando-se, talvez, mais do que deveria.
Tão perto que ela pôde sentir com precisão o cheiro amadeirado que subitamente a fez se arrepiar.
De forma involuntária, Sango jogou um pouco o corpo para trás, mas não desfez a face absorta e nem demonstrou estar acuada pela movimentação atípica e recheada de intimidade do cavalheiro à frente. Ainda que os glóbulos oculares dele se movimentassem, numa análise clínica e demorada, subindo e descendo lentamente, ela não disse qualquer coisa.
— Isso me faz pensar no quão intenso deve ser beijá-la — Miroku concluiu de uma só vez, com a face mais deslavada possível.
Sango arregalou os olhos de imediato e não houve um centímetro da sua face que não tenha corado. Dentre todas as coisas espalhafatosas, nenhuma poderia se comparar a frase pervertida, dita em alto e bom tom, sem qualquer pudor.
Dessa vez, ela não conseguiu ser sutil. Acabou por demonstrar claramente o choque e dar um belo passo para trás, a fim de se afastar o máximo possível daquele olhar demasiadamente profundo e do aroma amadeirado.
— Lord Evans, isso não é algo muito inadequado de se verbalizar? — Sango indagou com um timbre cortante, sentindo o coração bater forte contra o peito.
— De fato! — ele concordou, apesar de dar de ombros e fingir despretensão. Voltando a postura ereta de antes, ele sorriu com placidez —, mas não pude deixar de dizer.
Sango franziu a testa e levou a mão ao quadril, mantendo a pose repressiva da qual seu tom endossou o estado de espírito.
— Lord Evans, o senhor é mesmo uma criatura peculiar. É estarrecedor como sempre fala o que dá vontade, sem se importar com o bom senso e as normas de etiqueta.
— Ora, e não é que encontramos mais uma característica incomum, Milady?
Ainda que quisesse rebater, Sango não o fez. Um tanto por não ter exatamente o que dizer e outro tanto pelos olhos azuis que fincaram nos seus com saborosa intensidade e com um resquício de ironia.
Um baque da qual tirou as palavras da sua boca e fez a língua, sempre tão afiada, se postar recatada entre os dentes.
Uma situação inusitada que já estava se tornando clichê…
Mas, independentemente de qualquer coisa, mesmo se ela viesse a querer discutir ou tivesse as palavras alojadas numa linha de pensamento, Sango não conseguiria prosseguir com o caso, pois Sir. Mushin finalmente havia se aproximado com a mesma alegria de antes.
— Estou realmente impressionado com a beleza da propriedade, Lady Higurashi — Sir. Mushin falou, fitando diretamente Sango. — Desculpe pela demora, mas às vezes me perco nos meus devaneios quando se trata de natureza.
Sango sorriu sem muita vontade ao assentir ao cavalheiro.
Sir. Mushin notou um ar estranho entre os dois e, por isso, coçou a nuca um pouco confuso.
— Perdi algum assunto empolgante?
Miroku riu comedido e não tardou a voltar a caminhar, não se prolongando a questão pautada.
— Na verdade, muitos, meu tio! — Miroku voltou a dizer, em meio a caminhada. Tão logo, o Marquês retomou o olhar a Sango, como se nada houvesse acontecido. — Mas voltemos ao assunto inicial, Lady Higurashi. Gostaria de saber um pouco mais desse tal de Voltaire e suas ideias. Poderia esclarecer? Estou um tanto curioso.
Sango não conseguiu decidir se Lord Evans era dissimulado, sem vergonha ou insano.
Ou quem sabe ele não fosse os três?
Para todos os efeitos, fosse o que fosse o Marquês, ela refletiu que aquilo não importaria dentro de algumas horas.
Dado que, após a visita ao Visconde, tão logo Lord Evans partiria.
Mas, o que Lady Higurashi não imaginava, é que teria outra surpresa...
…
CONTINUA...
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