Em poucos segundos, muita água caiu do céu.
Embora Miroku tivesse agido rápido ao erguer o corpo de Lady Higurashi cuidadosamente do chão e guiado a moça envolta aos braços há alguns metros a frente, para dentro do celeiro, a quantidade pesarosa de gotas grossas encharcou suas roupas numa fração de segundo.
Não o bastante, mesmo chegando ao recinto, a grande porta de madeira jazia emperrada para contribuir com o enredo pouco favorável.
Miroku teve que fazer um bocado de força para conseguir que as fechaduras cedessem, ao menos o suficiente para que eles pudessem entrar. Chegou a trincar os dentes pelo esforço e a batucar com a lateral do corpo, umas cinco vezes, a fim de fazer as dobradiças enferrujadas gemerem e darem uma satisfatória passagem.
Tendo finalmente conseguido, Miroku indicou o caminho a Sango que não hesitou em entrar no ambiente empoeirado.
Depois da jovem dama, Lord Evans fez o mesmo movimento e, por fim, havia um teto sob suas cabeças.
Encharcados era pouco para descrevê-los.
Com a pouca claridade que vinha de fora, pela fresta que ambos passaram, Miroku fixou o olhar azul na tempestade arraigada de raios que cortavam o céu de ponta a ponta, proporcionando clarões que duravam segundos. Se não fosse pelo estrondo gutural logo em seguida, o Marquês podia dizer que a paisagem rústica o fascinava.
O zunido do vento por entre as frestas ocasionaram um som fantasmagórico, quase um lamento.
Sem verbalizar, Lord Evans ponderou que era provável que aquela tempestade inusitada demoraria a passar. E que, a casa dos Higurashi, deveria estar há pelo menos quarenta minutos de caminhada. Em poucas palavras, só restava esperar, até pelo menos a chuva amainar. Posto que, sair no meio daquela tempestade estava fora de cogitação. Além de ser extremamente perigoso era possível que a moléstia os assomasse no dia seguinte.
Apesar de não haver um único centímetro que seu corpo jazesse seco, Miroku foi despertado por uma gota fria que caiu bem na sua cabeça. Num estalo, ele saiu do seu devaneio e fitou o teto alto que contava com algumas goteiras.
Não era de se admirar que o antigo depósito sentisse o ricochete denso no seu telhado e danasse a desaguar em pontos eventuais. A estrutura abandonada não se encontrava no melhor estado, mas, pelo olhar analítico do jovem nobre, ele acreditava que aquilo era o máximo que aconteceria. O que não era nada mal ao se comparar ao contexto do lado de fora.
De qualquer forma, a gota não serviu somente para chamar a atenção de Lord Evans para a estrutura nauseabunda e quase mórbida do lugar que não tinha lá um cheiro muito agradável. Auxiliou também o marquês a retomar a realidade e voar com os olhos para Lady Higurashi.
Sango, que também mantinha os olhos assombrados na violenta chuva que caía do lado de fora, segurava o braço antes puxado com veemência pela sua égua.
— Lady Higurashi. — Miroku a chamou com um tom preocupado. — Deixe-me ver como está o seu braço.
Trazida de volta à órbita, Sango virou-se de costas ao Marquês para avaliar por si mesma.
— Só foi um arranhão, não é nada sério. — Sango falou, erguendo a manga com cuidado.
— Mesmo assim, gostaria de ajudá-la — Miroku disse dando um passo a frente.
A jovem dama, ao ouvi-lo se aproximar, fez o mesmo movimento. Numa clara evasão.
— Já disse, Lord Evans, não é… — ela interceptou a si mesma, mordendo os lábios pela dor. Tão logo, por baixo da manga, Sango pôde visualizar os grosseiros roxos saltando sobre a pele alva.
Miroku identificou o som doído e não mais se impediu de se aproximar da moça.
Involuntariamente, antes de virá-la pelo vestido ensopado, sua voz aflita ecoou pelo recinto.
— Sango!
Por mais que ser virada pela cintura de uma só vez fosse estranho, mais ainda era o fato de ouvir seu nome ser proferido por aquele timbre masculino. O som produzido por ele, elucidando com clareza letra a letra, retumbou no seu ser e, por um estranho motivo, fez seu coração batucar de forma desajeitada contra o peito.
Era a primeira vez que Lord Evans havia lhe chamado pelo primeiro nome.
O que era inadequado e totalmente fora das normas de etiqueta, mas, que apesar disso, da forma mais peculiar possível, soou oportuno.
Difícil dizer o que não era do avesso com aquele tal Marquês.
Miroku parecia empenhado em derrubar todo e qualquer padrão de normalidade, bem como a estabilidade que ela sempre amou caminhar.
Olhando para ele, com os cabelos molhados pendendo pelos ombros, recaindo ora ou outra por cima dos olhos azuis cobalto, ele pareceu enigmático até o último centímetro com as vistas atentas, tão analíticas e criteriosas aos seus ferimentos.
Num súbito, acompanhado das vistas irrequietas, as mãos de Lord Evans voaram para o braço franzino. Como se olhar somente não bastasse.
O toque dos dedos masculinos na sua pele contrastou com a água gelada ainda agarrada na pele macia. Um arrepio involuntário subiu pela coluna pelo contato. Nem o vento congelante do lado de fora seria capaz de eriçar seu escalpo da forma que sutilmente os dedos do homem percorriam pelas marcas no antebraço.
Sango sentiu o sangue subir para as bochechas e se contraiu involuntariamente.
Miroku notou o encolhimento.
— Dói quando faço assim? — Miroku indagou, erguendo o olhar para ela enquanto mexia com cuidado no seu braço.
Sango não conseguiu responder, a voz engasgou na garganta. Bastou a balançar a cabeça em negativa.
Lord Evans voltou a analisar o braço fino.
— Sei que não o quebrou, ao que parece está no lugar. Mas a senhorita deve estar sentindo muita dor, são marcas profundas das rédeas.
Sango arranhou a garganta e, com gentileza, puxou seu braço de volta, ainda com as maçãs do rosto coradas. Por sorte, o jovem nobre não havia notado seus pelos eriçados ou, quem sabe, não tivesse dado importância, afinal de contas a temperatura e os ventos não contribuíam para um cenário diferente.
— Não é a primeira vez que tenho que conter Kirara… — Sango falou, sem olhar diretamente ao homem à sua frente. — Ela odeia trovões, fica muito agitada.
— Desculpe não tê-la ajudado, mas realmente foi tudo muito rápido. Quando estava prestes a intervir, ela já havia puxado e saído com tudo. — Miroku falou, esfregando a testa lateralmente, um tanto sem jeito. — Lamento pelos cavalos.
— Tudo bem, não precisa se desculpar. Foi mesmo tudo rápido. — Mantendo o olhar baixo, Sango suspirou de maneira taciturna. — Deveria ter ido atrás deles…
— Sabe que não os alcançaria, ainda mais nessa chuva. Decerto, seria irrelevante o esforço da senhorita. É provável que Kirara e Kaze retornem à propriedade. — Miroku sorriu, de forma afável. — Tenho certeza que eles ficarão bem, Lady Higurashi.
Só então, a jovem dama ergueu o olhar.
Sua testa franzida, imediatamente, denunciou a confusão inerente mediante ao chamamento. Conquanto, não devesse.
— Há mais alguma coisa incomodando a senhorita? — Miroku indagou, franzindo a testa em igualdade. — Algum outro lugar que sente dor, fora o braço?
— Não… — Sango balançou a cabeça em negativa sutilmente, como se estivesse a afastar os pensamentos. — É só que… Hm…
— O que? — Miroku insistiu, sem desfazer a testa enrugada.
— O senhor me chamou pelo o meu nome. — Ela respondeu. E não demorou a coçar a garganta, de forma encabulada. — Quer dizer, tive a impressão de tê-lo ouvido me chamar de Sango.
Miroku piscou lentamente.
A princípio, ele pensou que havia trocado as palavras na última frase. Mas, depois, revisitando com cuidado a mente, ele compreendeu que, sem sentir, tinha mesmo evocado a moça a sua frente pelo primeiro nome, no instante em que a escutou murmurar pela dor.
Sem dúvidas, peculiar ter se remetido a Lady Higurashi daquela forma. Ela nunca deu abertura para que assim ele a evocasse. No entanto, não repercutiu tão estranho quando Miroku pensou a respeito. Sendo franco, até que calhava. O nome da moça à sua frente parecia mais bonito e prazeroso de ser pronunciado.
— Desculpe, foi na emoção. — Lord Evans justificou, levando a mão ao peito. Mas, rapidamente seu semblante mudou no conhecido tom irônico. — Para variar estava sendo teimosa. Fiquei preocupado e acabou escapando.
— Quem estava teimando era o senhor e não eu. — Sango rebateu, arqueando uma sobrancelha. — Disse que não era nada grave.
— Está certo. — Miroku assentiu e um sorriso de canto brotou na sua face bagunçada. — Mas já que iremos nos casar…
Sango sobressaltou com a insinuação.
Mal o sangue havia descido das bochechas, para retomarem num segundo.
— O senhor fala cada coisa, Lord Evans! — Sango o interceptou com a face um tanto estupefata e outro pouco enrubescida.
— O que disse de errado dessa vez? — Ele indagou, fingindo inocência. — Achei que queria que eu fosse categórico. Precisa decidir.
— Quem disse que irei me casar com o senhor? — Sango retrucou e seu tom saiu mais alto do que o normal, até um pouco mais fino do que gostaria. Por isso, ela teve que retomar a compostura antes de prosseguir. — Quero dizer, se essa história de casamento for mesmo verdade! E mesmo se for, eu…
— Por que não consegue aceitar que quero me casar com a senhorita? — Miroku a interceptou. Foi a sua vez de tomar um tom incrédulo. — Quero dizer, por que estaria sendo leviano a esse ponto?
— Mal nos conhecemos, Lord Evans! — Sango evocou o argumento anterior, com a mesma certeza e verdade no tom que poderia exprimir. Seus olhos não tremeluziam, mantiveram-se firmes.
— A senhorita insiste nessa premissa… — Miroku a respondeu, balançando a cabeça em negativa e com a face um pouco exausta. — Mas se quer saber, isso não é completamente verdade.
— O que…
— Lady Higurashi gosta de chá branco, sem cubos de açúcar e sempre coloca o leite ao final para poder controlar o sabor. Apesar disso, gosta de comer doces, embora duas garfadas já seja o suficiente para a saciar. No verão, gosta de cavalgar e vem até aqui ver o pôr-do-sol. Adora ler, mas dispensa um romance. As únicas situações que se prestou a ler poesia foi quando, mais nova, sua irmã Kagome a pediu, pois a forma que a senhorita entoa as palavras dá forças a elas. Creio que, por conta disso, quando Lord Villins disse que a senhorita tinha o dom da poesia, tenha ficado com tanta raiva.
Apesar de um pouco impressionada pela assertividade, Sango o interrompeu.
— Não é porque perguntou algumas informações sobre mim com a minha família que possa dizer que me conhece.
Miroku sorriu, dessa vez, um sorriso desmaiado.
— Sempre quando caminha, a senhorita leva a mão esquerda ao vestido, para puxar a barra. O que é engraçado, porque a senhorita é destra! Ao sorrir, o que é quase raro fazer para mim — ele riu brevemente, dando uma piscadela —, mas nas ocasiões que o faz, é difícil contemplar, porque, por algum motivo, a senhorita leva a mão à boca para esconder. Inclusive, gostaria de vê-la sorrir mais abertamente. Deveria parar de ocultar a sua risada, porque o som dela é muito bom de ouvir.
Sango entreabriu os lábios levemente.
Não havendo protestos, Miroku colocou as mãos nos quadris e prosseguiu com a face serena.
— Quando se irrita, mas ao mesmo tempo busca se conter, a senhorita ergue uma sobrancelha, só que, no final das contas, termina fuzilando a pessoa! O que é bastante assustador, porque não combina com o seu rosto tão delicado e acaba que não consegue disfarçar a irritação. Todo mundo percebe. — Miroku deu de ombros, com uma risadinha. Depois, retomou ao raciocínio, e seus olhos azuis pareceram mais densos. — Ao se fascinar, principalmente, por ouvir inéditas histórias, seus olhos brilham e acho que não percebe que inclina um pouco o corpo, como que para não perder uma única palavra. Ficando encabulada, a senhorita retrai os ombros e um leve rubor desponta pelas maçãs do rosto, como agora.
Lady Higurashi arranhou a garganta ao notar que seu rosto estava mesmo quente e os ombros contraídos. Rapidamente, ela ajustou a postura e o Marquês pôde prosseguir.
— A senhorita é audaz, habilidosa e tão competitiva quanto eu, o que é impressionante! Jamais pensei que encontraria alguém com tanta inclinação à disputa. — Miroku riu, balançando a cabeça em negativa. Tão logo, ele a fitou como antes, com a face límpida e um sorriso de canto que dessa vez não esboçava malícia. — E também, como disse antes, é de longe a pessoa mais inteligente que já conheci na vida.
Sango sentiu o coração errar uma batida. Como se o órgão pulsante, fora de ritmo, tivesse paralisado por um segundo e retomado no instante seguinte, numa cadência da qual nunca havia experimentado antes.
A sensação a fez paralisar.
Inerte, ela se manteve.
Mas, Lord Evans não estava com a mesma pretensão. Mesmo tendo feito uma sutil pausa, ele buscou a vez do diálogo e acabou dando um passo à frente, aproximando-se mais um pouco da moça que, numa perspectiva mais baixa, por ser menor, teve que erguer um pouco os olhos para encará-lo.
— Talvez tudo que disse agora possa não ser o suficiente. Concordo que há muitas coisas que eu não sei ainda sobre a senhorita, o que é uma pena. Eu poderia saber mais ao seu respeito, Lady Higurashi. Muito mais. E a senhorita também poderia ter me conhecido melhor. — Miroku sorriu de forma desvanecida. — Bastava ter me deixado cortejá-la adequadamente.
Foi como levar um soco no estômago.
As palavras de Lord Evans faziam um brutal sentido que a revirou do avesso ao menos três vezes.
Insistir no argumento de que eles mal se conheciam era como dar um tiro no próprio pé. Não fazia sentido, tendo em vista que a própria havia escolhido por aquele caminho. Se era para rechaçar o Marquês, outro argumento teria que ser evocado. Aquele não mais seria válido, nem pra ela, menos ainda para ele.
Mas, qual seria então o motivo para verbalizar?
As histórias referentes a Lady Cook? Por Miroku a irritá-la em demasia com suas provocações irônicas? Por não saber o que esperar dele e ao mesmo tempo ter a ciência de que qualquer coisa seria possível? Pelo dom que ele tinha em roubar-lhe as palavras? Ou, quem sabe, pelo sentimento estranho que ele sempre ocasionava em si?
Independentemente do que fosse, Sango não conseguiu a resposta.
E, se não fosse pela chuva pesada que caía do lado de fora, ricocheteando com fúria no telhado, ambos teriam afundado num intenso silêncio.
Isso porque, ao ponto que Lady Higurashi tentava organizar as ideias, Miroku também havia sido pego de surpresa ao perceber todas as suas falas que saíram, sem mais nem menos, mais sentimentais do que ele gostaria que fossem. E por, igualmente, pegar-se a poucos centímetros de distância daquela jovem dama.
Em situações normais, seria impensável e de extrema inadequação que ambos mantivessem um diálogo naquela proximidade. Tão perto que era possível sentir o aroma dos seus perfumes.
Cítrico, o dela. Refrescante como levar aos lábios framboesas recém colhidas.
Sem se preocupar com o que seria certo ou não, próprio ou não, Miroku não recuou da posição que ocupava. Diversamente, o Marquês manteve-se no mesmo lugar. Seus glóbulos oculares se prenderam à face de Sango e moveram-se com sucinta vontade de desvendá-la, se é que fosse possível.
Não se dando conta, suas vistas passearam pelos contornos da moça. Uma análise cuidadosa ele fez, a começar pelos cílios longos e tão pretos como seus cabelos. Depois, passeou pela pele lisa e que soava ridiculamente convidativa. Vislumbrou também o nariz pequeno, levemente arrebitado e legitimou que fazia um conjunto perfeito com os lábios carnudos, rosados naturalmente.
Por um minuto Miroku se perdeu de si mesmo naquela análise. Em especial, quando seus olhos voaram na extensão dos cabelos de Lady Higurashi que pendiam pelos ombros. A forma que os fios úmidos e grossos grudavam pelo pescoço e ao redor dos seios modestos, os ressaltando com maior precisão, o fizeram perder o ar. O jeito que a roupa, tão aderida ao corpo molhado, enfatizava as curvas perfeitas daquela mulher de olhar cortante poderia ter sido o suficiente para arrasar de uma só vez com sua sanidade.
O conjunto mais interessante e lancinante da face da terra, ele não podia negar. Nem mesmo queria ou possuía forças para retrucar consigo mesmo sobre aquilo que, decerto, era um fato irrefutável.
Sua mente já havia ido longe. Pensamentos, inclusive, que fizeram os pelos da nuca eriçarem e, definitivamente, nada tinha a ver com o vento frio que vinha de fora.
De sorte, a situação não se transfigurou em algo mais estranho. Posto que, além de Sango também estar perdida nas suas próprias questões e não notar a situação constrangedora da qual estava envolvida, sendo analisada por um olhar nada inocente, outra circunstância contribuiu para uma reviravolta do peculiar caso.
Um filete de terra, inusitadamente, escorreu pela lateral da cabeça da jovem dama, borrando parcialmente o rosto elegante. Um provável resquício da queda anterior. Tal situação fez o Marquês retomar os sentidos e notar o quão próximo e perdido estava na apreciação da figura feminina.
Como ensaiado, Sango também aparentou cair em solo firme e reparar na hedionda cena que se encontrava inserida.
Em todo caso, mesmo tomando tino a despeito do momento protagonizado, ela não teve tempo para qualquer reação, pois Lord Evans agindo mais rápido, retirou do bolso um lenço parcialmente molhado por conta de todo o contexto.
Embora não estivesse totalmente aprazível, Miroku acreditava que serviria.
Sem pestanejar, ele levou o tecido fino à face de Lady Higurashi que se assustou pelo movimento até então sem qualquer sentido.
— O que está fazendo? — Sango indagou, evadindo parcialmente.
— Ah, é só que… — Miroku declinou por conta de mais uma evasiva e também por compreender que seu movimento abrupto, de fato, não havia feito qualquer sentido. — Desculpe, é que o rosto da senhorita está sujo de terra. Só estava tentando ajudá-la, alguma poeira pode entrar no seu olho.
— Sujo… — Sango repetiu, levando ela mesma a mão ao rosto, na direção que o Marquês tentou alcançar.
De uma só vez, utilizando as costas da mão, ela esfregou a parte da face que imaginava estar tomada pela sujeira. Mas ao fazê-lo de qualquer jeito, seu rosto ficou mais caótico do que estava, sendo espalhada uma generosa camada marrom.
Miroku riu pelo fracasso na empreitada e no quanto a situação só havia piorado com o ato.
Sango girou os olhos, embora mantivesse um sorriso de canto.
— Não conseguirá limpar dessa forma, Lady Higurashi. — Miroku falou, erguendo o lenço novamente no ar. — Permita-me, sim?
— Que seja…
Ainda que não tivesse dito nem que sim e nem que não, a forma que a jovem dama pronunciou a frase deu a entender que o aval necessário para que Lord Evans a auxiliasse havia sido dado. Mais explícito ainda ficou, ao ter Sango levado as mãos aos quadris e se mantido parada, cerrando levemente os olhos, como quem aguarda uma ação.
Indo na contramão da coisa, Lord Evans não iniciou o procedimento de imediato. Para ser franco, assim que ele a viu, de certa forma, submissa aos seus próximos movimentos, o Marquês hesitou sentindo uma secura na garganta.
Por mais que Sango estivesse desalinhada e no dado momento com uma mancha grosseira de lama na face, ainda assim, era um tanto interessante vê-la quieta, quase serena demais. Outra vez, os lábios femininos se destacaram.
Miroku teve vontade de chorar.
Em primeiro lugar porque a pose pacata era somente aquilo, uma mera pose. Em segundo, nem em sonho Lady Higurashi o daria a devida vênia para passear por ali, em canto tão íntimo. E em terceiro, por ser tão promíscuo ao ponto de fantasiar com uma inocente moça.
— Vai fazer ou não? — Sango indagou, abrindo um único olho.
Por um breve instante, Miroku se postou aturdido pela indagação.
Mas, não era como se Lady Higurashi pudesse ler os seus pensamentos. Então, ao passo que ele sobressaltou pela indagação, no segundo seguinte, compreendeu que Sango se referia a sua ajuda para limpar a face.
O que foi esclarecedor, mas também decepcionante.
— Claro! — Miroku assentiu, arranhando a garganta. — Desculpe…
Sango fechou novamente os olhos e assim que o fez, o Marquês bastou-se a limpar cuidadosamente a sujeira espalhada pelo rosto delicado. A pele dela era como ele havia imaginado, macia como algodão.
Conquanto aquilo fosse muito estranho para Lady Higurashi, ela preferiu não pensar muito a respeito. Se deixasse sua mente divagar pela excentricidade da coisa e tentasse buscar razão, naturalmente, ela não encontraria. Afinal, estava presa num celeiro com Lord Evans, no meio de uma tempestade, após o dito cujo ter deixado claro seu desejo de casar com ela e que, no momento, limpava sua face depois de ter tido tantas coisas que agitaram o seu interior.
Difícil conciliar tantos eventos ao mesmo tempo. Sango, não podia negar. Mas, o que havia para se fazer a não ser fingir despretensão? Dentre todas as opções, tais como: surtar, chorar torrencialmente e sair correndo, a de manter uma naturalidade fictícia parecia mais sensata.
Não demorou muito para que Miroku retirasse até o último grão de terra da face alheia. A valer, levou menos tempo do que ele gostaria.
Que Lady Higurashi não suspeitasse, mas, sendo franco, ele até postergou mais do que deveria só para não se desvencilhar dela tão rápido.
Uma atitude hedionda, claro. O Marquês consentia com a tese da desnecessidade do fato, mas o que podia fazer? Ele simplesmente não conseguiu evitar. Desenhar a face daquela mulher, mesmo que discretamente, pareceu irresistível. Se tivesse deixado aquela chance passar, jamais se perdoaria.
— Pronto. Está melhor. — Lord Evans falou após finalmente ter terminado a limpeza inusitada.
Sango abriu os olhos e instantaneamente suas retinas foram preenchidas pela imagem de Lord Evans. Ele sorria, como de costume, enquanto dobrava o lenço para colocar de volta ao bolso.
Ela tossiu seco, jogando os braços para trás do corpo.
— Hm… Obrigada.
Miroku assentiu em resposta ao agradecimento e ambos só não afundaram em mais um silêncio, por conta de outro trovão enfurecido.
— Parece que não vai parar de chover tão cedo… — Miroku falou, observando pela fresta da porta a chuva intensa que caía.
— É… — Sango concordou, cruzando os braços na altura dos seios, numa tentativa de afago. — Pelo visto, não.
Pelo timbre tremeluzente, a princípio, Miroku deduziu que Lady Higurashi estava tensa por toda a circunstância. Para uma moça de família, estar na companhia de um homem, sem a devida supervisão e por longo tempo, seria suficiente para arruinar de uma só vez com a reputação.
Mas, ao olhar por sobre o ombro, ele identificou que na verdade Sango tremia.
Além dos ventos gelados estarem muito fortes, suas roupas encharcadas não estavam contribuindo para uma sensação agradável. Desse jeito, poderiam acabar ficando doentes.
Aquele pensamento fez Lord Evans franzir a testa e rechear o âmago de preocupação pela condição da moça ao seu lado.
— Lady Higurashi.
— Hm? — Ela ergueu o olhar a ele.
— Tentarei acender uma fogueira — Miroku disse com seriedade. Mas, depois, acabou dando um sorriso amarelo e coçando a nuca. — Quer dizer, não é como se eu fosse um ávido entendedor, mas não irei declinar até conseguir.
— Iria propor o mesmo — Sango falou, com um sorriso sutil.
Miroku ergueu ambas as sobrancelhas, um tanto surpreso pela fala da moça. Mas depois deu de ombros e ancorou as mãos nos quadris com um risinho de canto.
— É claro que a senhorita sabe…
…
No final das contas, não foi muito difícil atear fogo no feno deixado para trás naquele celeiro rústico.
Por sorte, o material encontrava-se seco o que foi primordial para que a incineração se desse, a partir dos esforços do casal. Conseguindo uma fagulha, tão logo, o fogo crepitante surgiu as suas vistas, lambendo o feno e restos de madeira posteriormente jogados.
Com cuidado, organizaram a fogueira improvisada, a fim de não deixar com que o fogo se dispersasse e fugisse do controle. Um belo trabalho em dupla que foi recompensado pela claridade das chamas bem como pelo calor a ela inerente.
Um alívio, sem dúvidas.
Afinal, além de começar a escurecer, o frio intenso já incomodava sensivelmente a ambos.
— Desculpe perguntar… — Miroku começou a dizer ao mesmo tempo que atiçava o fogo com um graveto e olhava a moça de canto —, mas com quem a senhorita aprendeu a arte da combustão?
— Aprendi com o meu pai — respondeu Sango, enquanto alocava as últimas pedras em volta do fogo. — Costumávamos fazer uma fogueira quando saíamos juntos para caçar.
— Compreendo. A senhorita é boa nisso.
— Não é como se tivesse feito sozinha, Lord Evans — Sango falou, finalmente o olhando. — Fizemos juntos.
— Está certo — Miroku assentiu com um sorriso franco, parando de uma vez de provocar as chamas por entender que já estava de bom tamanho o fogaréu a sua frente.
Ambos sentaram-se de frente à pira e o único som durante um bom tempo foi da madeira estalando à medida que o fogo crepitava e da chuva forte que insistia em castigar o telhado com arroubo.
Com as mãos esticadas perto do fogo, a fim de buscar a amabilidade do calor, Sango também mantinha os olhos castanhos presos na incendiária figura mística. Mergulhada com as orbes no fogaréu infinito, ela divagou nos últimos acontecimentos.
Havia muita coisa que precisava digerir, sobretudo aceitar.
Mas, dentre as inúmeras coisas, existia uma dúvida pontual que ela simplesmente não conseguia mais negligenciar. Aquilo a estava incomodando sensivelmente e já que jazia enfiada no meio de uma situação tão incomum quanto aquela, que resolvesse então de uma vez por todas.
— Lord Evans — Sango o evocou, de repente, sem muito mais pensar.
— Sim? — Miroku ergueu o olhar para ela.
— Por que cortejou Lady Cook?
Por mais que Sango houvesse sido direta, aquela questão levantada num súbito, não surpreendeu o Marquês em absoluto. Isso porque além de Miroku consentir que Sango era mesmo daquele jeito, a indagação não era absurda.
— Imaginei que me perguntaria sobre isso em algum momento — ele sorriu, mesmo sem vontade.
— Por que o senhor a cortejou se não tinha intenções de se casar com ela?
— Esse é um assunto problemático, Lady Higurashi…
— De fato, por isso mesmo gostaria que me esclarecesse.
Fitando Sango, Miroku soube que não haveria alternativa a não ser responder a dúvida legítima. Os olhos determinados dela, sem dar qualquer sinal de que desertaria, o fizeram engolir a seco.
Sendo assim, o Marquês teve que respirar profundamente e alinhar a postura para poder respondê-la devidamente.
— Irei contar, mas preciso que Lady Higurashi não comente este assunto com quem quer que seja. Posso confiar na senhorita quanto a isso?
Uma condição estranha que fez Sango piscar lentamente por não esperar um pedido como aquele. De todo modo, ela não demorou a concordar, acenando a cabeça em positivo.
Recebido a devolutiva silenciosa, Lord Evans organizou os pensamentos e iniciou o esclarecimento do fato.
— Conheço Koharu desde criança, quero dizer, os Cook de modo geral — Miroku coçou a lateral da cabeça, um tanto desconfortável. Mas, não hesitou. Bastou a cruzar os braços e cerrar os olhos antes de prosseguir. — Eles eram muito próximos ao meu pai. Então, mesmo depois da morte do papai, a nossa amizade seguiu normalmente.
“Acontece que, com o passar dos anos, eles adquiriram uma terrível dívida. Consequência de uma má administração das terras e dos negócios da família. Enfim, o fato é que eles estavam à beira da falência”.
“Sabendo disso, e como um bom amigo, resolvi ajudá-los. Custeei alguns luxos que eles estavam acostumados, como contas na modista, bebidas, bailes, cafés e tudo de mais frívolo que a aristocracia gosta de ostentar. Fiz com o intuito de ajudar Koharu a conseguir um bom marido. Até porque, só dessa maneira eles conseguiriam sair do buraco que se enfiaram”.
“Koharu é filha única, eles não tiveram a bênção de ter mais filhos. Logo, só havia uma oportunidade assim que ela debutasse e fosse apresentada à sociedade. Só que, como posso dizer… Koharu não é necessariamente uma jovem dama de atributos tão notáveis para atrair a atenção de um bom partido”.
— É impressão minha ou o senhor acabou de chamar a moça de feia? — Sango indagou arqueando uma sobrancelha.
— Feia é uma palavra muito forte — Miroku riu brevemente. — Mas, digamos que ela não possua encantos tão marcantes para um casamento expressivo.
— Continuo achando que está chamando a moça de feia.
— Enfim… — Miroku balançou a mão no ar, como que para dispersar o fato paralelo. — Em todo caso, eles sabiam que durante a temporada, Koharu não poderia passar despercebida. Nós precisávamos de um plano eficaz para atrair olhares, então…
— Espere um pouco. — Sango interceptou o Marquês com a face franzida. — Disse nós? Está querendo dizer que foi tudo uma armação?
— Lady Higurashi, a senhorita ainda se surpreende com o que ocorre por trás dos panos da alta sociedade? Mesmo diante de tanta leitura e coisas que já avistou? — Miroku indagou com uma face divertida.
— Não posso acreditar! — Sango montou-se no semblante mais incrédulo que podia fazer e, sem perceber, inclinou o corpo para frente.
Miroku sorriu por Lady Higurashi ter feito aquele movimento. Fez ele lembrar da descrição sobre ela durante o diálogo, do quanto estava certo sobre o detalhe.
— Com um falso cortejo, uma fofoca aqui e outra ali, Koharu foi pintada nos salões como uma inocente moça iludida. Mas, não só isso. Seu nome estava em todos os lugares e a cada vez mais que se falava sobre, uma qualidade a mais aparecia ligada a ela. — Miroku riu brevemente, jogando o corpo um pouco para trás e apoiando o peso nos cotovelos. — Quem é que não gosta de um drama, afinal? Um libertino sem classe aproveitando-se da desafortunada moça! Histórias assim aguçam a curiosidade e não foi para menos que logo depois, Koharu tinha uma fila na sua porta.
De tudo que havia pensado, definitivamente, aquele enredo não se aproximava nem um pouco do que Lady Higurashi imaginava.
Sango teve que permanecer em silêncio por alguns instantes para absorver a insana história.
— Creio que por essa a senhorita não esperava — Miroku falou, ainda na postura despojada.
— Claro que não! — Sango falou como se fosse óbvio. — O senhor só pode ser louco! Acabou de me dizer que liquidou com a própria reputação, quem no mundo faria algo assim?
— Ao que parece, eu — Miroku riu apontando para si.
— Inacreditável… — Sango balançou a cabeça em negativa.
— Veja, Lady Higurashi. Como disse, não era minha intenção me casar. Então, o falso cortejo também me apeteceria. Dessa forma, afastaria as moças e, sobretudo… — Miroku deu uma careta, fingindo um arrepio. — suas tenebrosas mães!
— Mas e quanto a questão do título? Não compreendo…
— Não existia essa obrigatoriedade de me casar na época. Paradoxalmente isso só se deu por conta da armação com Koharu. O rei ficou bastante bravo com a minha suposta conduta, leia-se, a rainha ficou bastante brava. Então, digamos que o ardil foi um tiro que saiu pela culatra, ao menos da minha parte.
Preliminarmente, Sango entreabriu os lábios pela história absurda, mas ao processar a sequência de fatos, em especial, o resultado desfavorável ao Marquês, acabou que não conseguiu abafar a risada.
— Não acredito que está rindo abertamente da minha cara — Miroku falou e, apesar da frase ter um tom de represália, ele não a disse com esse teor.
— O que esperava? É de longe um homem desafortunado, Lord Evans — Sango disse, em meio ao riso. — Deveria ter se casado com a moça, já que queria ajudá-la.
— Koharu é como uma irmã para mim, não a vejo dessa forma. Não seria capaz.
— Não se arrepende mesmo? Nem um pouco?
— Não. — Miroku sorriu, balançando a cabeça em negativa. — Koharu é uma boa moça, os Cook, de modo geral, são boas pessoas. Merecem ser felizes.
— Lord Evans, o senhor preferiu acabar com a sua reputação, para no final ter que se casar de qualquer jeito. Entenda, se tivesse casado com essa moça, não estaria aqui nessa situação.
— E que terrível seria, Lady Higurashi.
Uma indireta e tanto que fez Sango se retrair e voltar a postura ereta de antes. Coçando a garganta, ela tentou impedir o embaraço, o que foi em vão.
Miroku notou o tom rosado na face da moça e achou graça por ela resguardar um jeito pueril em meio a personalidade tão forte.
Decidido a não deixar aquilo esmorecer, ele tateou a roupa já não tão molhada em busca de um objeto do qual sua mente o remeteu. Com sucesso, ele encontrou, e de uma só vez retirou um cantil prateado de bolso.
— Iria oferecer a senhorita um pouco de Whisky para se aquecer… — Ele falou enquanto apontava o artefato a ela. — Mas vejo pelas maçãs coradas que já está aquecida o suficiente.
— Não estou corada — Sango falou, o olhando de canto. — E por que está andando com um Whisky no bolso?
— Nunca se sabe, Lady Higurashi — Miroku sorriu, dando de ombros. — A senhorita quer um pouco?
Sango ponderou que até que não era uma má ideia. No inverno, eles costumavam beber algumas doses de conhaque de frente a lareira. De fato, o destilado ajudava a acalentar o interior e, nas condições que se encontravam, não seria nada mal.
Prestes a acatar, Sango chegou a erguer parcialmente a mão a fim de aceitar de bom grado a oferta, mas, o que ela não podia imaginar, é que Lord Evans puxaria o cantil estendido e levaria até o peito novamente.
— Se bem que não seria uma boa ideia, Lady Higurashi — Miroku falou, com uma face pouco inocente.
— Deus sabe que irei me arrepender, mas por qual motivo não seria uma boa ideia? — Sango indagou sem muita paciência.
— É uma bebida muito forte, não acho que seria de bom tom uma jovem dama tomá-la, ainda mais estando sozinha com um libertino.
— Estamos sozinhos de toda maneira — Sango franziu a testa. — Só está falando isso para me irritar. Sabe que quando insinua o que uma mulher pode ou não fazer me deixa com raiva.
Miroku prendeu uma risada entredentes.
— Um ponto para a senhorita.
— Lord Evans, não estamos jogando coisa alguma. — Sango arqueou uma sobrancelha e esticou a mão. — E, de todo modo, o senhor já me ofereceu a bebida. Se se arrependeu de fazê-lo, é tarde demais para declinar.
— Está certo, eu a ofereci, mas não disse os termos.
— Termos? — Sango o fuzilou. — O que diabos está falando?
— Divido o meu Whisky se a senhorita, a partir de hoje, me deixar cortejá-la corretamente. O que me diz?
Sango quis ter dito a Lord Evans que ele só podia estar brincando com a sua face e que também não deveria ter cara para estar propondo a ela algo do tipo. Na verdade, Sango quis ter dito muitíssimas coisas, no quanto ele era descarado, desavergonhado e por estar se aproveitando explicitamente da sua condição.
Mas tudo aquilo ficou entalado na garganta. Tudo e mais um pouco.
Isso porque, como se fosse ensaiado ou obra do sobrenatural, uma das ripas de madeira do teto cedeu e caiu bem próximo aos dois, os assustando abruptamente não só pelo baque como também pela surpresa do evento.
O susto foi tanto, que Sango, simplesmente, se agarrou ao Marquês, emaranhando os dedos na casaca preta úmida do homem ao seu lado sem intenção de soltar.
Seus corações bateram forte contra o peito. Tão rápido e intenso que os fizeram arfar pela adrenalina.
Conjuntamente, ergueram a cabeça para o teto e puderam ver o pedaço da madeira apodrecida que havia despencado. Por sorte, não havia sido o suficiente para abrir um buraco e nem caído diretamente em suas cabeças.
Suspiraram de alívio ao identificarem que tudo ainda estava sob controle.
Isso é, até abaixarem suas cabeças…
Pois, somente ao retomarem a posição correta da face que ambos perceberam a posição que se encontravam. Uma ínfima distância os separavam, tão pequena que a ponta dos seus narizes se encostaram.
Em resumo, Sango estava envolta aos braços do Marquês, com as mãos enterradas na sua roupa. Enquanto ele mantinha as mãos nas costas femininas, a amparando, numa postura de quem está a proteger um terceiro.
Se antes seus corações batucavam fora de ritmo pelo horror, na circunstância, passaram a martelar por outro motivo. Um difícil de detalhar, mas que ocasionava de igual forma a taquicardia.
No entanto, daquela palpitação, pouco se exprimia terror. Ao contrário. Só uma vontade exasperada e uma expectativa atroz que não dava para nomear.
Difícil pensar com clareza quando os neurônios entram em colapso. Menos ainda, quando submerso em si mesmo, não se consegue conceber o final do mar revolto que o afoga.
Talvez a palavra que os exprimisse naquele momento era aquela: asfixia.
Não adiantava puxar o ar ao redor, ele simplesmente se negava a preencher os pulmões sedentos por um mísero alívio.
Estando tão próximos, sufocados pela beleza, calor, cheiro e todo o resto, foi difícil pensar em qualquer outra coisa a não ser nadar a favor da corrente e acabar de uma vez por todas com a agonia. Ninguém quer morrer afogado, afinal.
Então, independentemente de ser ultrajante e quem sabe uma tremenda falta de juízo, não se controla o que não se da.
E não se luta contra aquilo que não se pode.
Assim, numa quinta-feira, de uma semana incomum, numa chuva que parecia disposta a arrasar com tudo pela frente, um impulso milimétrico dos seus corpos foi suficiente para que seus lábios se encontrassem.
Ao longo da vida, Miroku já havia beijado mais mulheres do que era capaz de se lembrar.
Prostitutas, senhoras casadas, viúvas, jovens damas disfarçadas de inocentes moças etc, etc, etc…
Uma vastidão incansável de personalidades e belezas que ele não podia enumerar, tampouco tinha pretensão de um dia fazê-lo.
Então, em tese, beijar mais uma moça, só aumentaria sua vasta lista da qual ele não se importava em absoluto.
Ocorre que, daquela vez, um frenesi percorreu toda a extensão da sua espinha ao ter a boca daquela mulher abrindo-se obedientemente aos seus comandos e o recebendo como se fosse óbvio.
Um baque!
E um delicioso martírio…
Um que ele não conseguia desvendar.
Porque ao passo que ele não queria parar de se afundar cada vez mais nos lábios rendidos, que o correspondiam com a saborosa vontade — e que vontade —, ele também sabia que precisava se conter.
Ainda que sequenciais arrepios eriçassem o escalpo, que o sabor dela fosse único e que a língua tão macia fosse uma amostra do paraíso, ele precisava libertá-la dos seus domínios. Mesmo que isso significasse que iria morrer ao desvencilhar, que talvez sugá-la até a última gota de saliva fosse um sonho, ele precisava parar com aquela sandice!
Agarrando-se a um mísero resquício de sanidade mental, com um esforço descomunal, Miroku, que mantinha os dedos emaranhados nos fios grossos de Sango, a puxou levemente para trás, interrompendo de uma só vez o contato das suas bocas ávidas.
Mais uma vez na vida seus olhos se encontraram.
E menos razão havia, desde a primeira vez.
— Creio que isso tenha sido um sim — Miroku falou, com um sorriso ladino e com a respiração tão pesada que quase as palavras se embolaram. Obviamente, uma referência irônica ao pedido de cortejo já esquecido pela jovem dama.
E foi só naquele momento, com a respiração mais ofegante da vida toda e com a face extremamente próxima à daquele homem tão incendiário como o fogo crepitante ao lado, que Sango caiu em si do que havia acabado de fazer.
Levada pelo torpor do toque inédito e pela cadência perfeita da língua que acariciava pontualmente a sua, ela tinha agido de forma quase mecânica. Tão sensorial e intuitiva que não havia um mísero pensamento a respeito que não convergisse unicamente para a experiência única e perigosa da qual havia se atirado.
Indubitavelmente, ela havia beijado Lord Evans…
E estava a um minuto de uma crise!
…
CONTINUA...
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