》Dominic《
7:30 - Segunda-feira
Abro os olhos.
A mesma cama, a mesma janela, a mesma porta... está tudo igual.
Do meu lado, o despertador grita. Realmente estava hora de levantar. Não poderia esquecer- me de tomar meus remédios. Algo ruim poderia acontecer se eu não fizesse isso. Desligo o despertador.
Estou com o mesmo pijama de sempre: calça de algodão preta e moletom. Atualmente estou achando preto uma cor depressiva. Anotei isso mentalmente para ligar a minha tia e pedir para me trazer roupas novas.
Saio das cobertas e vou cambaleando até o banheiro. Ele está limpo agora, comparado com o banheiro da semana passada, onde tinha remédios e pomadas espalhadas pela pia. Me encaro no espelho. A barba está aparecendo tímida, como se não passasse de uma sombra em meu rosto. Meus cabelos estão grandes demais para alguém que tem câncer, não sei como eles ainda não caíram.
Fecho a porta do banheiro e faço minhas necessidades. Fico encarando a parede branca e sem graça. Ainda sinto o cheiro da água sanitária. Fico um pouco enjoado e saio do banheiro rapidamente. Meu estômago agradece. Será que a enfermeira sabe que eu já estou acordado?
Resolvo esperar dentro do quarto, não quero passar por todo aquele procedimento do "não pode sair do quarto sem que alguém te dê os remédios antes". Todas as vezes eu digo que não preciso de todo esse cuidado para sair do quarto, já tenho vinte anos. Mas eles sempre usam o mesmo argumento de "todo cuidado é pouco" e resolvo ficar quieto. Na situação que estou, discutir com alguém só perderia o tempo precioso... que é minha vida.
Pego o meu notebook que descansava na cômoda e volto para a cama. Pelo menos o hospital tem Wi-Fi liberado para todos os pacientes. Ligo ele enquanto eu me aconchegava nas cobertas que ainda estavam quentes. O visor mostra um "bem-vindo". Sempre agradeço, não se sabe que dia a tecnologia se virará contra nós, nem sei se estarei vivo até esse dia. Ser educado é o mínimo que poderia fazer no momento.
Digito minha senha e o notebook abre direto no facebook. Eu não tenho amigos no hospital, só alguns conhecidos. As redes sociais me acolhem de uma forma que eu não saberia dizer como funciona. Gosto de ficar vendo a vida das pessoas na tela. Tem de tudo por aqui. Fotos, vídeos, eventos, memes e até um grupo para desabafar.
Vejo a foto de uma pessoa de costas. Ela está segurando alguma coisa. Não consigo ver direito. A foto parece ser tirada de noite, por causa do efeito do flash, mesmo assim a foto está em preto e branco. A pessoa que postou se chama K.McNamara. É um nome legal. Vejo a descrição da foto: "Ah, hoje meu dia foi horrível! O personagem da minha série morreu! Minha vida é um lixo". Arrasto a tela para baixo. 4729 curtidas! São muito mais números que meus de vida restantes. São muito mais números que os quartos desse hospital, talvez até mais números que as pessoas que ficam aqui.
Queria ter esses problemas que as pessoas da Internet tem. No caso dessa pessoa, era só assistir a série tudo de novo que o personagem automaticamente estaria vivo e vivendo sua vida normalmente. Queria que fosse assim na vida real também. Você ter o direito de escolher sua história. A vida é uma caixinha de surpresas, seja elas boas ou ruins.
Deixo meus devaneios de lado quando escuto a porta bater. Mal percebi que a enfermeira já estava dentro do quarto, enchendo o copo de água na bandeja.
- Bom dia, Dominic. - Ela disse.
- Bom dia. - Cocei os olhos e levantei. Fechei o notebook discretamente e o deixei na cama. - Você demorou para vir aqui hoje.
- Ah, me desculpe se você queria tanto me ver. - A enfermeira deu um sorriso breve e voltou a ficar séria. - Na verdade, tive que ajudar os médicos nessa madrugada. Uma menina vai ficar no quarto sete.
Ela entregou os remédios enquanto falava. Peguei os medicamentos e tomei, depois de dizer:
- Quarto sete... é do lado do meu. O que essa menina tem?
- Ela, por algum motivo, cortou sua perna com um canivete. A lâmina atingiu um nervo responsável pelo movimento da perna.
- Então quer dizer que ela não está andando?
- Exato. - A enfermeira pegou o copo da mão de Dominic e colocou na bandeja. - Está livre, pode andar por aí. Mas até as 10h, você tem outro remédio nesse horário.
Dom assentiu e agradeceu. A enfermeira saiu do quarto e fechou a porta.
"Ligar para a tia, ligar para a tia..."
Saio do quarto, ao mesmo tempo que Lola, do quarto oito, sai. Ela tem olhos azuis e os cabelos castanhos, até o meio das costas. A garotinha tem esquizofrenia, sempre está batendo nas paredes ou nas portas para achar o mundo secreto das fadas. Ela me conta histórias tão detalhadas que eu mesmo começo a achar que ela realmente pertence a outro mundo paralelo.
Lola está aqui no hospital há um ano. Quando ela me vê, ela vem correndo na minha direção para me abraçar.
- Oi Dom. Oi Dom. - Ela me apertou e eu abracei ela de volta. Já tinha acostumado com seu TOC: repetir as últimas palavras.
- Oi Lola. Dormiu bem?
- Dormi infinitamente bem, infinitamente bem. - Ela me solta e mostra a saia longa, rosa com margaridas brancas. - Gostou, gostou?
- Gostei. Está parecendo a verdadeira fada perdida do reino das fadas.
Ela sorri e bate palmas.
- Ainda vou voltar pra lá, pra lá, elas precisam de mim, de mim. - ela fica triste e depois sorri de novo.
- Eu vou com você? - ela assentiu levemente e eu continuei - Vamos tomar café da manhã. Até as fadas precisam se alimentar.
Eu estendi a mão para ela. Lola segurou minha mão e me guiou até o refeitório, sem dizer mais nada. Ela realmente não falava quando estava com as outras pessoas. Alguns pacientes já me perguntaram como eu entendo ela. Eu digo que é preciso entender os problemas de cada um para entender a pessoa em si.
Lola se senta em uma das mesas e aponta para a cadeira para eu me sentar também. Quando eu quase encosto na cadeira, ela grita.
- SAI, SAI SAI!
Eu me afasto rapidamente da cadeira. Alguns pacientes que chegaram aqui há pouco tempo olham para nós. Eu faço um joinha com a mão pra eles e eles voltam a comer.
Olho para Lola.
- O que foi?
- A fada da Lua tá sentada aí, sentada aí! Senta naquela ali, ali.
Ela aponta para a cadeira da frente dela e eu me sento. Confesso que de vez em quando eu me assusto com as reações dela.
Eu pego um pedaço de bolo e como. Depois eu cuspo, enquanto tossia descontroladamente.
- O que foi? Que foi? - Lola olha para mim, alarmada.
- M-maçã. Droga. - despejo água na xícara e tomo rapidamente.
- Mas a fada da floresta disse que podemos comer as frutas, as frutas. - Lola come o mesmo bolo e dá de ombros. - Viu, viu?
- É que... - eu começo a tossir de novo e abano meu rosto com as mãos. - Eu sou alérgico a maçãs!
Lola parece não entender o significado disso e toma o chocolate quente enquanto balançava as pernas por baixo da mesa.
Eu pego uma torrada e sirvo café na mesma xícara que tinha usado.
Às vezes Lola me encarava no fundo dos olhos, rindo sozinha e ficava séria de repente, encarando o chão, parecendo que ia matar alguém. Eu sei que ela não faz nada disso de propósito. Alguns tem medo, preconceito e trocam olhares feios para ela. Mas ela não tem culpa de nada disso e precisa de companhia.
- Acabei, vamos lá fora... tenho uma coisa pra te mostrar, te mostrar.
Lola se levanta e segura minha mão. Eu pego uma última torrada e acompanho ela.
Nós vamos até o jardim do hospital. Tem flores muito coloridas e plantas de todos os tipos. O ar aqui é mais leve e refrescante. Me permito fechar os olhos e sentir o vento bater no meu rosto. Lola me puxa e quase levo um susto. Ela me guia para uma moita e fica parada, encarando a planta.
- O que foi, Lola? - aperto os olhos para tentar ver alguma coisa.
- A fada dos animais me disse que vai ter uma festa hoje, festa hoje. - ela espalha as folhas da moita e lá no fundo, tem um coelho com cinco filhotes.
- Que fofos. - olho para os filhotes assustados e ariscos.
Lola se afasta e caminha de um lado para o outro. Ela dá exatamente os mesmos passos e a mesma distância. De um lado para o outro.
- Eu vou para o meu quarto, ok Lola?
Ela acena com a mão e volta a dar os mesmos passos de todos os dias.
Hoje eu quero ficar no meu quarto, não estou muito animado para explorar o hospital, como sempre faço. Ainda estou sob o efeito da quimioterapia de ontem, drogado pelos remédios e com muito sono. Vou para o meu quarto e fecho a porta.
Abro a janela e observo a vista. Vinte e dois prédios, vinte e sete antenas parabólicas e setenta e três janelas visíveis. Morando em um hospital, decoramos coisas inúteis, tanto pelo tédio quanto para fugir do tédio. Sento na cama e ligo o notebook. Aparece automaticamente o facebook, que tinha deixado aberto. Fico observando a foto preto e branco por um tempo. Como essa pessoa poderia ser? Será que ela gosta dos filmes da Disney? Ela tem irmãos?
Do outro lado da parede, escuto um barulho. Alguém está batendo na parede, como se estivesse me chamando.
Tap.
Fico atento para tentar escutar mais alguma coisa.
Tap.
O barulho na parede, de novo. Será que era a cama?
Mas ninguém ficava no quarto sete. E se fosse fantasmas?
Fantasmas não existem, Dominic.
Tap.
Resolvi ter a ideia de responder o som. Bati na parede com meus dedos.
Toc.
Nada. A pessoa não gostou da minha presença. Tentei chamar de novo.
Toc.
Nada. Deve ser os remédios.
Dou de ombros e volto a explorar o meu facebook. Me lembrei de mandar uma mensagem para a minha tia.
》 Tia? Está por aí?
Ao lado do nome dela, aparece uma bolinha verde. Está online. Ela respondeu.
》 Oii, querido. Estou ss, como vc está?
》Tô bem, consegui dormir depois da quimio. Pode trazer roupas novas p mim? Cansei de preto
》 Sim. Vou levar alguns doces para você tb.
Eu sorrio. Minha tia era sempre atenciosa comigo.
》 Uhuul.
Ela sai do Facebook.
20:04 - Segunda-feira
Acabei de sair do banho. Estou usando um pijama novo que minha tia me deu. É do tema do Rei Leão. Com certeza sinto mais adulto. Eu rio sozinho. Um pouco de cor pode fazer toda a diferença quando está em um hospital.
Estou vendo TV quando escuto o mesmo barulho de manhã.
Tap.
Não espero nenhum segundo a mais para responder.
Toc.
Por incrível que pareça, eu tenho resposta.
Tap.
Sorrio e bato duas vezes.
Toc toc.
Tap tap.
Parece uma coisa besta como duas pessoas batendo na parede oposta, mas mesmo assim eu fico feliz. Eu tenho companhia.
Continua...
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.