Algo estava diferente naquela manhã. O ar estava mais denso, com um forte cheiro de mofo devido à umidade. Encolhi-me sobre a cama, tentando aquecer o meu corpo. Não consegui entender o motivo de meu quarto estar mais frio hoje e minha cama tão dura. Estiquei os braços para tentar alongar-me, ainda com os olhos cerrados, mas assustei quando as palmas de minhas mãos foram de encontro a uma superfície gélida e áspera, semelhante à pedra.
Levantei minhas pálpebras minimamente e deixei meus olhos se acomodarem com a fraca luminosidade daquele lugar. Precisei piscar repetidamente para conseguir me ambientar. Por um segundo, achei que ainda estivesse sonhando, porém, minhas esperanças foram brutalmente destruídas no momento em que percebi onde eu estava: aquele não era meu quarto; era uma cela.
Apoie-me com os cotovelos, forçando meu corpo a se levantar daquele leito que não poderia ser denominado propriamente como uma cama. Era apenas uma tábua suspensa por pés de madeira baixos e uma espécie de manto felpudo, que acabei descobrindo posteriormente ser uma capa muito bem bordada.
Tomei um impulso e levantei-me, sentindo uma forte fisgada na bacia. Era doloroso permanecer em pé e ainda mais tentar andar. Minha cabeça latejava loucamente e eu sentia que a ferida em minha têmpora esquerda continuava aberta. Levei a ponta dos dedos com cuidado até ela, tocando minimamente.
Fechei os olhos, reprimindo um gemido de dor.
Sim, ela estava aberta.
Olhei ao meu redor, analisando atentamente todos os detalhes daquele lugar que me encarcerava. Enormes barras de ferro, repletas de ferrugem, estavam a minha frente, combinando com as paredes de pedra tomadas por arranhões que marcavam o tempo. Uma tocha acesa se encontrava na parede oposta, do lado de fora, esquentando minimamente meu corpo com o calor que emanava de suas chamas. Parecia até mesmo um cenário de filme, mas eu sabia que estava longe de ser isso.
Entretanto, o mais estranho era que aquele lugar me era familiar.
Estiquei meu pescoço por entre as grades, apenas conseguindo ter a visão de alguns metros do corredor. Em algum canto, um homem cantarolava uma cantiga que me remeteu a uma canção de pirata. Seus únicos acompanhamentos musicais eram o gotejar em um balde, respirações pesadas e o ronco de outro alguém.
— Está aproveitando os aposentos, princesa? — Uma voz arranhou o ambiente.
Arregalei os olhos, tentando encontrar quem havia dito isso.
— Posso saber o que uma dama como você fez para acabar aqui? — ele disse novamente, com um tom malicioso soando em cada palavra.
Era um homem encarcerado na cela à minha frente. Sua barba batia na altura do peito e seus dentes estavam podres e escuros. Todo seu corpo se encontrava vestido em retalhos sujos e surrados. Ele realmente estava em péssimas condições.
— Quem é você? — perguntei, me afastando instintivamente da grade. — E porque eu estou aqui?
O homem gargalhou.
— Não importa quem sou eu, amor. E também não me interessa saber quem você é. Eu só quero saber o que tem debaixo de seu vestido.
Mais homens deram risada e se juntaram ás grades de suas celas, ansiando para ver o espetáculo que aquele indivíduo planejava fazer com suas palavras. Pude notar diversos olhares cravados sobre mim, como se eu fosse um animal destinado a servir de refeição.
— Talvez ela seja uma bruxa. — Alguém da cela ao lado gritou.
— Não. — Um velho respondeu desinteressadamente. — Provavelmente é uma prostituta. Por qual outro motivo ela estaria usando essas roupas íntimas?
Olhei para meu próprio vestido. Ele era branco (inicialmente) e de alcinhas, com o comprimento alguns centímetros acima do joelho. Minha jaqueta de couro ainda estava por cima, cobrindo meu braço até os cotovelos. Não havia nado de sugestivo naquela peça de roupa.
— É... Talvez ela seja uma vadia. — O homem à minha frente analisou-me de cima a baixo. — Mas isso torna as coisas melhores ainda, já que eu vou pedir para o guarda me deixar visitá-la esta noite. — Ele aumentou o tom de voz.
Cambaleei para trás, chocando minhas costas contra a parede de pedra.
Os outros prisioneiros se animaram com aquela fala. Eles começaram a gritar frases obcenas e maliciosas em minha direção, criando um verdadeiro show de horrores. Também se balançavam nas grades enferrujadas, assemelhando-se a macacos de zoológico.
— Não se preocupe meu bem! — O mesmo encarcerado gritou. — Você estará em ótimas mãos!
— Talvez mais de uma mão. — Seu companheiro de cela acrescentou, dando uma risada histérica e lambendo a barra de ferro enferrujada.
Tapei meus ouvidos com a mão, tentando abafar o som daqueles abutres masculinos, mas não adiantava. A algazarra ficava cada vez mais alta.
Sentei-me naquela tábua coberta pelo manto felpudo e apoiei minhas costas nas pedras, deixando minha cabeça tombar para trás. Tentei respirar fundo, controlando minha respiração, mas era inútil. Eu me recusava a aceitar que aquilo estava realmente acontecendo. Como eu pude voltar 400 anos ao passado? Como?!
Meu olhar rodou pela cela, procurando identificar algo que indicasse que aquilo tudo fosse uma pegadinha e eu ainda estivesse em 2010. A única coisa contemporânea que encontrei foi minha bolsa, que havia sido jogada de qualquer maneira contra a parede. Levantei-me e a apanhei do chão, vasculhando se havia algo que pudesse cessar minha dor. O máximo que consegui achar foi meu espelho de bolso e meu celular. Nada mais.
Apertei o teclado do meu aparelho eletrônico, fazendo sua tela se iluminar. Ainda existia bateria; 32% para ser mais exata. Mas não havia sinal. Desliguei a máquina, escondendo-a dentro de um bolso falso que havia sido acidentalmente criado quando o forro da bolsa rasgou-se.
A agitação vinda do corredor se quietou subitamente, me fazendo entrar em estado de alerta. Passos agitados ecoavam pelas paredes de pedra, seguido de alguns murmúrios. Tentei me concentrar para identificar o que as vozes diziam e consegui entender algo soando como “alteza”.
Duas pessoas pararam em frente à minha cela, se posicionando como soldados de guarda. Talvez eles fossem exatamente isso, ao considerar as armaduras de ferro e as espadas embainhadas.
Levantei-me em um salto, atravessando a alça de minha bolsa na transversal do meu tronco.
A dupla abriu minha porta, dando passagem para outro homem adentrar. Ele era alto e forte, apesar do gibão escuro e as mangas encobrirem boa parte de seu porte físico. Seus cabelos cacheados não estavam mais da mesma maneira que eu me lembrava de ter visto ontem à noite, na floresta. Agora eles possuíam um tom mais puxado para o mel. Os olhos azuis sofriam do mesmo ocorrido também, assumindo uma cor mais intensa neste momento.
O rapaz parou a alguns metros a minha frente, me olhando por completo. Ele também analisou minha cela e o corredor, fazendo uma expressão de desgosto posteriormente. Pude ver um dos guardas torcer o nariz também.
— Sinto muito por ter que deixa-la nessas... Condições. — disse o jovem. — Especifiquei que você deveria ser levada para outro lugar, mas acho que minhas ordens não foram muito bem compreendidas. — Ele olhou para um garoto baixo e de aspecto frágil parado próximo de si.
O menino arregalou os olhos verdes e abaixou a cabeça ao ver que James estava o repreendendo. Seus cabelos ruivos e o corpo magro, totalmente ausente de músculos, me fizeram reconhecê-lo como o adolescente que também estava presente na floresta, ontem à noite.
— Mas peço que entenda que você é uma estrangeira que estava junto aos norklianos. — prosseguiu, limpando a garganta. —Toda precaução é pouca nesses dias que vivemos.
Não consegui reagir. Eu me lembrava perfeitamente das informações que os guias do castelo haviam dado sobre como Mastla e Norkland estiveram em guerra durante anos, no passado. Também me recordava de que o homem à minha frente poderia ser James II, o príncipe que herdaria o trono de seu pai, Eduard IV, em 1577. Algo que, se minhas hipóteses estivessem corretas, iria ocorrer daqui a dois anos.
Okay, Rosie. Agora você está soando como uma completa maluca.
— Pode me dizer novamente qual o seu nome? Receio em dizer que não me recordo mais.
Abri a boca para responder, mas fui interrompida pelo garoto ruivo.
— Ela disse que era Rosie Smith, Vossa Alteza.
James fechou os olhos, respirando fundo.
— Obrigado, Elliot. — disse rispidamente — Agora deixe que apenas a garota responda, está bem?
Ele assentiu com a cabeça, recuando um passo para trás.
Senti que James se aproximava de mim, então levantei o rosto, me deparando com seus olhos azuis me encarando. Tentei manter minha postura ereta, demonstrando que não estava com medo, mas não consegui disfarçar. Eu estava apavorada.
Ele analisou o ferimento em minha têmpora esquerda, sem tocar. Direcionou seu olhar para o meu duas vezes, me fazendo desviar para não ter que encará-lo. Apenas senti que havia prendido a respiração quando o garoto se afastou e eu pude finalmente liberar o ar contido em meus pulmões.
— Pedirei que alguém a leve para tratar seus ferimentos... — informou, jogando as mãos para trás. — Mas antes, poderia me dar mais informações a respeito de sua pessoa? — requisitou com uma voz paciente.
— Sim... — respondi, entretanto acredito que minha resposta soou quase como um sussurro.
Tossi, limpando a garganta. Eu teria que me concentrar bastante para não cometer nenhum deslize e dizer algo que não deveria ser dito.
— Você disse que era “Americana”, estou certo? — perguntou James, antes que eu começasse a me pronunciar. Apenas concordei com a cabeça. — De que parte do “Novo Mundo”? — Ele abaixou seu rosto um pouco e cruzou os braços sobre o peito.
— Es... — comecei a dizer, mas tive que interromper minha fala.
Eu não podia dizer que vinha dos Estados Unidos. Como raios iria falar que nasci em um país que só seria descoberto em 1606?
— Eu nasci nas colônias... — meu tom continuava receoso. — Mas me mudei para Mastla quando pequena. — acrescentei rapidamente.
O príncipe encarou as próprias botas de couro, remoendo minha resposta em sua mente. Talvez estivesse tentando identificar a veracidade de minha resposta. Ou também poderia estar elaborando a próxima pergunta que entregaria minha mentira.
— Como você acabou terminando na floresta? — perguntou, avançando mais um passo.
Merda!
Eu não havia me preparado para a mais obvia das questões.
Pense Rosie, pense! Você não pode dizer a verdade: “Uma chave me trouxe até aqui diretamente de 2010?”. Quem iria acreditar? O mínimo que aconteceria é acharem que você é uma bruxa e, em questão de minutos, lhe atirarem à fogueira.
— Os norkelianos. — respondi com um tom eufórico demais. Não sabia muito bem a qual rumo queria chegar, mas tinha que me esforçar ao máximo. — Eu estava sendo feita de... Refém.
James franziu a sobrancelha, me encarando por mais tempo que o normal. Senti que não devia ter dito aquilo. O rapaz jogou os braços para trás novamente, assumindo uma posição parecida com a de um soldado. Ele me analisou por mais alguns segundos, fazendo com que meus ombros se encolhessem instantaneamente.
— E porque você foi capturada? — questionou.
Droga! Eu também não estava preparada para essa pergunta.
Você precisa pensar mais rápido, Rosie! Ou então, não irá sobreviver tempo suficiente para conseguir voltar àquela floresta e pegar a maldita chave de volta.
— Eles... Eles saquearam meu apartamento. Vila! Minha vila. — gaguejei, gesticulando demasiadamente com as mãos. — Eles atacaram e capturaram algumas pessoas. Disseram que iam nos usar para realizar uma troca com o... Rei.
Cale a boca agora, Rosie! Antes que você exagere demais e comece a descrever um filme medieval qualquer.
— É... — conclui. — Foi isso.
— Eles queimaram sua vila? — Repetiu calmamente James, se assegurando de que havia escutado certo.
Concordei com a cabeça, sentindo minha garganta secar.
— E onde exatamente ela ficava? — prosseguiu, arqueando as sobrancelhas.
— Wellins.
O príncipe olhou para trás, encarando Elliot. O menino piscou repetidamente, ajeitando sua armadura no corpo. Aquela era uma peça grande demais para ele.
— Eu escutei que os norkelianos atacaram alguns povoados à caminho do castelo, Vossa Alteza. — O ruivo comentou. — Wellins provavelmente também estava incluído.
Deixei acidentalmente meu corpo se afundar em um suspiro de alívio, mas logo tratei de retomar à postura. Entretanto, não havia sido rápida o suficiente, pois o soldado dos cabelos loiros desgrenhados havia notado minha mudança de estado, franzindo o cenho.
James grunhiu, vociferando algo em baixo tom. Não sabia ao certo, mas eu tinha um forte pressentimento de que ele realmente acreditara em minha palavra.
— Você tem algum parente para recebê-la de volta? — ele ainda permanecia frustrado, mas não acredito que fosse mais por minha causa.
— Sim. Não! — corrigi depressa.
Senti uma gota de suor escorrer por minha nuca. Eu nunca havia me sentido tão intimidada como naquele momento.
— Não, não tenho ninguém. — falei, tentando manter a calma.
Precisei dizer aquilo. Não tinha como eu passar o endereço de pessoas que nem haviam nascido ainda.
Esperei que mais alguma questão viesse à tona, mas não foi o que aconteceu. James se locomoveu até Elliot e sussurrou algo para o menino. Pelo fato dos dois se posicionarem de costas, não consegui ler os lábios, então fui tomada por uma enorme sensação de insegurança e temor.
Ele caminhou até a minha cama improvisada e retirou a capa de pelo que estava estendida sobre. Deu dois tapinhas para retirar a poeira e sacudiu-a. Percebi que o manto possuía as medidas exatas para vesti-lo. Ao julgar pelos bordados dourados e a confecção bem feita, deduzi que talvez aquela peça de roupa pertencesse mesmo a ele.
O garoto retornou até mim e entregou-me o casaco, indicando que eu deveria cobrir meu corpo. Ele tentou evitar ao máximo olhar para meu colo parcialmente amostra e minhas pernas descobertas, demonstrando um pouco de desconforto e constrangimento.
— Você tem permissão para permanecer no castelo então. Poderá servir como criada e ter uma moradia aqui se desejar. — James se virou depois que eu tomei a peça de roupa de suas mãos. — Pedirei que algum soldado à leve para Madame Cercyra. Ela saberá o que fazer com você. — Sua voz estava firme.
Após dizer aquilo, se retirou da cela, sendo acompanhado por Elliot e um outro soldado, permanecendo apenas o guarda loiro.
— Não! Espere! — gritei.
Impulsionei-me para ele, praticamente correndo, mas fui brutalmente barrada pelo soldado restante. Debati-me contra, tentando me soltar, mas suas mãos apertavam meu braço com muita força.
— Você não pode me prender aqui. Eu preciso voltar!
James se virou, avançando de volta para onde eu me encontrava. Uma de suas sobrancelhas se arqueou naquele momento. Sua língua umedeceu os seus lábios e seu tom de voz começou a se tornar mais baixo e cauteloso.
— Voltar para onde? — perguntou desconfiado. — Pensei que havia dito que não possuía mais ninguém. Não foi o que me informou?
— Sim, mas... Eu... — gaguejei.
Ele estava quase curvado sobre mim, com os olhos azuis cravados nos meus.
— Estou começando a me questionar sobre a veracidade de suas informações... — comentou vagamente. — Talvez eu devesse mantê-la aqui por mais tempo... — senti meus pelos do braço eriçarem. — Apenas até que eu possa ter absoluta certeza de quem você é.
— Não! — minha voz saiu trêmula. Pude jurar que já possuía lágrimas escorrendo sobre minhas bochechas. — Eu não estou mentindo...
Forcei meus olhos a não desviarem dos seus. Eu precisava me manter firme e transparecer confiança, mesmo que eu estivesse completamente apavorada por dentro.
— Então, porque quer voltar? — Ele tornou sua voz mais ríspida.
Abaixei a cabeça, evitando olhar em seu rosto.
— Eu não quero voltar. — menti. — Eu apenas quero procurar algum lugar para ir.
James deu uma risada cínica.
— Acho que o incidente de ontem afetou sua capacidade de escutar... — falou sarcasticamente. — Mas irei repetir: você pode ficar aqui no castelo, servindo como criada. — As palavras saíram frias como gelo, me fazendo levantar a cabeça assustada. — Não estará sendo feita de prisioneira, como mesmo mencionou. Têm permissão para deixar Bedwell a qualquer momento. — Ele retorceu os lábios, me olhando por mais tempo que o normal, bem no fundo dos olhos. Talvez estivesse mesmo tentando me intimidar. — Mas não vejo porque faria isso, já que não tem outro lugar para ir. A não ser que ainda esteja insistindo na mentira...
— Não! — falei rápido demais. — Eu ficarei.
O garoto me analisava com extrema atenção, ansiando por qualquer vestígio de uma encenação por minha parte.
— Excelente. — Ele sorriu friamente, sem mostrar os dentes. — Pedirei que este soldado leve-a para Madame Cercyra. — O garoto olhou de forma desinteressada para o rapaz loiro, que ainda se prontificava perto de mim a uma maneira exagerada. — E tome cuidado com seu tom de voz... — acrescentou — É uma serva do palácio e uma súdita de Mastla... Algo poderá acontecer com você se não demonstrar o devido respeito.
Não consegui identificar se havia algo por trás de sua mensagem. Também não tive tempo de questionar, pois, em seguida, James se retirou da cela, sendo acompanhado pelo outro guarda e o menino magricela, me deixando com milhões de perguntas na cabeça. Minha única certeza naquele momento era de que eu precisava partir o quanto antes. Precisava voltar para o meu tempo e esquecer-me de tudo o que aconteceu.
Eu precisava sobreviver.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.