01 de Março de 2020
Domingo, dependendo da forma que você acorda, pode ser um dia bem cinza, ainda que o sol brilhe intensamente lá fora.
Já passava de meio-dia quando Kensei se levantou, com a maior dor de cabeça de todos os tempos. A ressaca era tão palpável, que parecia ter vida própria – como se estivesse deitada ao seu lado, na estreita cama de solteiro – martelando seu crânio.
Ficou encarando o teto enquanto tentava se acostumar com a claridade do quarto, e quando finalmente conseguiu erguer seu tronco, deparou-se com um envelope endereçado a si, o qual ele havia recebido na sexta-feira, porém não teve coragem de abrir até aquele momento.
O envelope parecia inocente, repousando em sua escrivaninha ao lado da cama, junto de seus livros de matemática, apostilas, e um monte de outras pequenas bagunças de um doutorando. Mas, o nome do remetente era tão nocivo quanto um revolver calibre 38, e Kensei não tinha conseguido criar coragem para ler – o que quer que fosse – o que sua mãe havia escrito, após longos dezessete anos sem mandar notícias.
Na sexta, a desculpa foi aproveitar o churrasco e curtir com os amigos que haviam retornado do exterior. No sábado, a desculpa foi a mesma, mas havia o agravante de ter se comportado como um boçal para com Mashiro, então adiou mais uma vez a leitura, pois precisava se desculpar com ela, antes de irem ao bar.
Sábado havia sido um dia de altas emoções – daqueles que você não esquece, mesmo que queira – e ele sabia que se não fosse por Shinji, as coisas poderiam ter simplesmente desandado, única e exclusivamente por culpa sua.
Foi até a cozinha passar um café para si – preferia o de Hachi, mas teria de se contentar com o seu – e encontrou Love e Rose tagarelando enquanto comiam.
– Bom dia, bela adormecida – cumprimentou Love.
Kensei não respondeu, apenas balançou a cabeça e começou a preparar o café mecanicamente, pois a dor de cabeça estava a ponto de matá-lo.
– Parece que alguém bebeu além da conta ontem – comentou Rose, que havia notado a cara de poucos amigos do platinado.
– Não enche – respondeu Kensei em voz baixa.
Os amigos o observaram se retirar em silêncio com a garrafa de café, e não disseram mais nada, pois sabiam que Kensei de ressaca era simplesmente intragável.
Entrou em seu quarto e passou a tomar seu café sentado na cama. Não se lembrava de ter bebido tanto assim, mas apesar dos excessos, a noite anterior permanecia cristalina em sua mente.
Flashback ON – Sábado 29 de fevereiro de 2020
Embora o dia de praia tenha sido salvo por Shinji e a boa vontade dos demais, foi com grande pesar que Kensei retornou para casa, tomado por uma enorme vontade de se enterrar vivo, e não comparecer ao Shiba’s naquela noite.
Chegando ao lar, foi direto para o quarto tomar um banho e não disse absolutamente nada a ninguém. Enquanto a água escorria pelo corpo, as cenas do que havia ocorrido mais cedo se repetiam em sua mente. Ele não conseguia evitar a imagem de Mashiro com os olhos marejados, correndo para longe. Sentia-se um troglodita, cretino, estúpido, e uma série de outras coisas.
Vestiu uma camiseta branca, calça jeans de lavagem escura, e o primeiro par de tênis que viu pela frente. Precisava se desculpar – mesmo que em sua mente não houvesse palavras boas o bastante para tal – era o mínimo que poderia fazer, além de ser o que havia combinado com Shinji.
Antes de sair do quarto, sentiu a tentação de abrir o envelope endereçado a si, que parecia encará-lo de cima da escrivaninha, mas afastou tais pensamentos, precisava colocar a cabeça no lugar e resolver as coisas antes de lidar com aquilo. Pegou uma jaqueta preta no armário, as chaves do carro e foi até a cozinha.
Kensei não tinha muita experiência em pedir desculpas, sentia-se arrependido, mas não sabia ao certo como demonstrar isso a Mashiro. Desde que se conheceram sua relação havia sido conturbada, brigavam com uma enorme frequência, e pareciam tolerar um ao outro única e exclusivamente por terem o mesmo grupo de amigos. Não eram raras as vezes em que ele sentia que ela o provocava de propósito, apenas para vê-lo explodir. Mas, o fato é que nada disso justificava sua atitude para com ela, então daria o melhor de si para se redimir.
Lavou as mãos na pia e passou a preparar bolinhos de arroz. Ele desconhecia a existência de alguém que amasse oniguiris mais profundamente do que Mashiro, e felizmente, ele sabia fazê-los muito bem. Decidiu preparar duas dúzias, mesmo sabendo que dificilmente ela conseguiria comer tudo aquilo, pois não queria parecer mesquinho.
– Nem pense que vou deixar você faltar no rolê – disse Love, que havia entrado na cozinha.
– Se eu vou ou não, não faz a menor diferença – respondeu Kensei – Não estou no clima hoje.
– Pois trate de entrar no clima, porque eu não vou se você não for – insistiu o moreno.
– Vai perder seu encontro por minha causa?
– Não quero chegar ao bar com a banheira do Shinji, faça o que precisa fazer e depois venha me buscar.
– Por que todo esse preconceito contra o meu carro? – disse Shinji, que havia acabado de chegar da praia naquele momento.
– Não é questão de preconceito, é só que o carro do Kensei é muito mais legal – respondeu Love – Estava com a Hiyori na praia até agora?
– Sim – disse o loiro – Senti falta do pôr do sol da ilha, a Inglaterra é tão cinza na maior parte do ano...
– Sei – comentou Love rindo – Vai se arrumar logo, você vai buscar o Hachi.
– Sim senhor – respondeu Shinji, ironicamente.
Kensei não era bobo, sabia que Love implicava com o carro de Shinji por pura brincadeira, e que todo aquele discurso era basicamente para se certificar de que ele iria ao rolê. Por mais que quisesse se trancar no quarto pelos próximos cem anos, sentia-se grato com a atitude de Love, que era um bom amigo, sempre demonstrando preocupação “disfarçadamente”.
Quando Kensei perdeu o pai, no primeiro ano da graduação – embora não se conhecessem há muito tempo – Love fez questão de acompanhá-lo até Yokohama para o enterro, ajudá-lo com sua mudança definitiva, e convidá-lo para passar as férias com ele e sua família, com a desculpa de que seria tedioso demais ficar um mês inteiro com seus parentes, e que Kensei precisava ir junto para “salvá-lo”.
Logo no final de 2013, quando conheceu os pais de Love, pôde perceber que tudo não passava de uma desculpa esfarrapada para não deixá-lo só nas férias. O senhor e a senhora Aikawa eram pessoas maravilhosas, muito bem humoradas, e até o gato da família era um siamês carinhoso, que o receberam muito bem. A mãe de Love era tão gentil, que desde que havia conhecido Kensei, mandava tudo em dobro para o filho – doces, frutas, agasalhos – e dizia que metade era para o platinado.
Love jamais puxaria assuntos de natureza pessoal, nem tentaria “confortá-lo” em um momento difícil, pois ele não era esse tipo de pessoa. Mas, marcava presença, fazia piadas, e jamais permitiria que Kensei deixasse de ir ao bar naquele dia.
Quando terminou de preparar os oniguiris para Mashiro, acomodou-os em uma bonita marmita, dentro de uma sacola de papel.
– Eu volto logo – disse Kensei – É melhor estarem prontos quando eu chegar.
– Estaremos te esperando – respondeu Love.
Dito isso, partiu rumo ao apartamento das garotas, sem ter absolutamente a menor ideia do que dizer naquela situação, mas torcendo para que conseguisse falar alguma coisa que pudesse amenizar a merda que havia feito. Lá chegando, tocou a campainha e após alguns minutos, foi atendido por Lisa.
– O que quer? – perguntou a morena com cara de poucos amigos.
– Você sabe – respondeu Kensei olhando-a nos olhos – Pode chamá-la?
– Se ela chorar outra vez, eu arranco as suas bolas – disse Lisa, retirando-se em seguida para chamar Mashiro.
Não demorou muito, ela apareceu diante dele, fechando a porta atrás de si, e encarando-o com seus olhos castanhos enormes. Usava um vestido curto branco com uma camiseta preta por baixo, e nenhuma maquiagem – provavelmente estava se arrumando quando ele chegou – e Kensei sabia que ela colocaria seu desgastado par de Vans antes de sair, além de um gloss com cheiro de frutas, pois a conhecia há tanto tempo, que ficava fácil adivinhar os elementos que iriam finalizar aquele look.
Alguns segundos se passaram, nenhum dos dois disse nada, Kensei se sentiu atordoado com o cheiro de maçã verde que vinha dos cabelos de Mashiro – e ainda mais com o fato de reparar em tantas coisas sobre ela – até mesmo a fragrância de seu xampu, então se esforçou para quebrar o silêncio.
– Eu trouxe isso aqui para você – disse ele, estendendo a sacola de papel na direção dela.
Mashiro abriu a sacola, pegou a marmita prateada nas mãos, abrindo-a com cuidado e deparando-se com os vinte quatro bolinhos de arroz. Um sorriso iluminou sua face, e rapidamente, pegou um e comeu ali mesmo.
– Hummm, está muito bom! – disse ela, ainda com a boca cheia – Bem melhor que aquele do quiosque.
Kensei não sabia como reagir, estava feliz por ela ter gostado dos bolinhos, sabia que não podia sair correndo dali, mas também não conseguia pensar direito, não com Mashiro olhando-o daquele jeito. Quando estava na presença de Mashiro, o estado de espírito de Kensei variava entre apenas dois modos: hipnotizado ou puto da vida, e naquele exato momento, encontrava-se no primeiro.
– Obrigada pelos bolinhos...
– Eu sinto muito – disse Kensei, que havia finalmente saído do transe após ouvir a voz dela novamente – O que eu fiz foi imperdoável, então não vou pedir perdão nem desculpas, tudo o que eu posso fazer é expressar o quanto me arrependo da minha atitude estúpida.
Kensei despejou – falando um pouco mais rápido que o normal – e quando olhou para ela, notou uma expressão surpresa em seu rosto, então retomou seu raciocínio, pois não desejava que ela lhe entendesse errado.
– Seria muita cara de pau minha pedir para me perdoar, você tem todo o direito de estar com raiva de mim, e até me odiar se quiser...
Sentiu os delicados dedos de Mashiro tocarem seus lábios, interrompendo-o.
– Eu entendo o que está dizendo – disse Mashiro sorrindo levemente – É maduro e gentil de sua parte, mas, os bolinhos, foi você que fez?
Kensei estranhou aquela pergunta repentina, e apenas concordou com a cabeça, sem entender onde ela queria chegar.
– Não dá para odiar alguém que faz bolinhos de arroz tão gostosos! – Ela sorriu amplamente – Agora preciso terminar de me arrumar, Love não vai nos perdoar se atrasarmos pro rolê hoje.
Dito isso, Mashiro se aproximou – ficando nas pontas dos pés por um instante – e depositou um suave beijo em seu rosto. Antes que pudesse reagir, ela simplesmente voltou pro apartamento, deixando-o sozinho com seus pensamentos no corredor.
Kensei era simplesmente incapaz de compreender aquela mulher. Ela sempre discutia com ele, chamava-o de estúpido ou idiota por qualquer coisa, e quando finalmente tinha um motivo para xingá-lo de todos os nomes possíveis, optou por reagir de forma completamente doce e inesperada.
Quando foi buscar Love e Rose, milhares de pensamentos perturbavam sua mente. Aquela tentativa de redenção não serviu em nada para aliviar sua consciência, ao invés disso, havia colaborado para deixá-lo ainda mais confuso com seus sentimentos.
Ele procurava manter uma postura firme com Mashiro, sentia-se alerta, irritado e completamente sem chão quando ela estava por perto, porém jamais teve forças de afastá-la. O beijo que haviam trocado na sexta à noite – o qual não podia negar que havia apreciado – provava o que há anos tentava negar: sentia-se completamente atraído por ela.
E claro, sua atitude horrenda de beijá-la a força diante de todos era só mais uma prova de seus sentimentos, uma vez que não pôde suportar ouvi-la dizer que “jamais beijaria um idiota como ele”.
Para Kensei, a noite no bar se resumiu a cervejas, batatas fritas e introspecção. Mesmo com inúmeras coisas boas acontecendo ao seu redor, como Rose sendo ovacionado por sua belíssima performance musical, Love felizão com a crush, e até mesmo Hachi ficando com uma belíssima mulher, tudo isso parecia acontecer em universo paralelo ao do platinado.
Felizmente, Mashiro parecia bem, conversando e rindo normalmente com todos. Estava lindíssima, e de fato, havia passado seu gloss e usava o desgastadíssimo par de Vans.
Talvez devesse lhe comprar um novo par – pensou – Mas é claro que isso não mudaria porra nenhuma.
Ao final do rolê, Rose teve de levá-los para casa, pois Kensei não estava em condições dirigir. Estava um trapo: bêbado, confuso e infeliz.
Flashback OFF
Ao esvaziar a garrafa térmica de café, Kensei finalmente começou a sentir a dor de cabeça diminuir. Tomou um banho gelado, jogou-se na cama e ficou ali, de olhos fechados, tentando esvaziar sua mente conturbada.
Ouviu leves batidas na porta, seguidas da voz de Shinji, convidando-o para se juntar a eles num treinamento no Gotei, alguma coisa sobre tirar a ferrugem dos ossos, mas se limitou a responder um “hoje não”.
Kensei não era o tipo de cara que ficaria mofando a tarde toda sentindo pena de si mesmo. Era um homem de ação, estava sempre em movimento, ocupando seu corpo e sua mente, ou na pior das hipóteses, bebendo até cair. Nunca fora um procrastinador, e sabia que precisava parar de adiar a leitura da bendita carta.
Pegou o envelope branco na escrivaninha, sentou-se no tapete do quarto, e após alguns segundos, abriu a carta de sua mãe.
※
Querido Kensei, deve ser uma surpresa para você receber notícias minhas após tanto tempo, mas gosto de acreditar que você ainda pensa em mim de vez em quando, da mesma forma que eu penso em você.
Decidi escrever esta carta, pois acredito que mereça saber os motivos que me levaram a ir embora. Na época, você ainda era uma criança, jovem demais para entender o que acontecia entre seu pai e eu, mas agora é um homem adulto, então deve saber a verdade, pois eu não desejo que me odeie, apesar de não termos mais contato.
Quando conheci seu pai, ele era um homem maravilhoso. Um pouco ciumento, bravo, já tinha um certo apreço pela bebida, mas ainda sim, maravilhoso. Namoramos por pouquíssimo tempo, logo eu engravidei, e tive que abrir mão do meu sonho de ser atriz, com apenas dezenove anos. Nessa época, eu e seu pai passamos a morar juntos, e nos primeiros três anos tudo correu muito bem, ouso dizer que até fomos felizes.
Mas, quando eu decidi voltar a trabalhar, seu pai passou a ficar ainda mais ciumento e implicante, me fez pedir demissão do café onde trabalhava – por ciúmes do gerente, e por achar o uniforme indecente – e passou a implicar com absolutamente tudo que eu fazia, dizia, vestia ou desejava.
Consegui um emprego de secretária em um escritório de advocacia onde havia apenas mulheres, e achei que depois disso ele iria melhorar. No entanto, ele chegava em casa bêbado todos os dias, me batia, forçava relações, e eu simplesmente não tinha a quem recorrer, pois ele era um policial com muitos contatos, e na mesma hora que eu tentasse fazer um boletim de ocorrência, ele seria avisado.
Nós não éramos casados no papel, o que dificultaria conseguir sua guarda, mas ao mesmo tempo, facilitava a minha partida. Eu sei que você deve ter ficado muito magoado quando parti, mas seu pai havia me ameaçado de morte caso tentasse abandoná-lo, e eu não podia arriscar fracassar na minha fuga, e uma criança só tornaria tudo mais difícil.
E eu confesso que uma parte de mim temia que você se tornasse como o seu pai no futuro. Vocês eram tão parecidos fisicamente, que isso me fazia projetar a imagem dele em você, mesmo ainda criança, e com um temperamento tão doce. Você era uma criança meiga, gentil e amorosa, e me conforta saber que se tornou um adulto diferente do seu pai.
Quando resolvi procurá-lo, soube que seu pai faleceu e você vendeu a casa em Yokohama – a vizinha, senhora Sato, me contou – e que estava estudando numa Universidade de prestígio em Okinawa. Então eu decidi vir até aqui, me informei sobre você no campus, e fiquei muito satisfeita com tudo que vi e ouvi. Inclusive, tem uma foto sua no Instituto de artes marciais, adorei ver seu cabelo descolorido, te deixa diferente do seu pai, mesmo os traços de vocês sendo tão parecidos.
Acredito que você ficará satisfeito em saber que eu me casei novamente, e você tem duas irmãs mais novas. Eles não sabem sobre você, por isso deixei esse envelope pessoalmente na sua caixa de correio, e não coloquei meu endereço no envelope. Eu comecei uma vida nova, e trazer o passado a tona só traria sofrimento a todos, espero que compreenda minha decisão.
Tudo que eu vi e ouvi sobre você indica que é um homem inteligente, maduro, sensato e completamente diferente do seu pai, e isso me deixa muito orgulhosa. Estou feliz por suas conquistas, e espero que fique feliz pelas minhas também, e quem sabe, agora que sabe a verdade, possa me perdoar pelo que eu fiz.
Desejo que sua vida seja longa e feliz.
Com todo amor e carinho, sua mãe.
※
Ao terminar a leitura Kensei não sabia ao certo o que pensar, mas sentia uma dor esmagadora em seu peito. Dobrou a carta cuidadosamente, guardou no envelope, e saiu em direção a cozinha, sem muita noção do que fazia, como se estivesse em piloto automático.
Estava sozinho, e mesmo que não estivesse, não saberia como conversar sobre isso com alguém, era um cara reservado, não tinha costume de falar de si, muito menos sobre seus sentimentos. Pegou uma garrafa de saquê no armário e tomou uma dose – era a única forma que ele conhecia de aplacar a dor – mas, sentia-se sufocado, como se as paredes da casa estivessem ficando cada vez mais próximas, aprisionando-o.
Pegou a chave do carro e saiu dirigindo sem rumo, sentindo imensa dificuldade para respirar, as janelas estavam abertas e uma brisa suave lhe acariciava, mas isso não aliviava a sensação sufocante que havia lhe tomado, tampouco a dor em seu peito.
Dirigiu até chegar à praia mais deserta da ilha, não era um local apropriado para banho, mas lhe permitiria ficar sozinho, pois quase ninguém ia até aquele lugar, e o mar costumava exercer um efeito reconfortante em Kensei.
Sentou-se na areia, observou as ondas arrebentando a menos de três metros de si, e deu mais um gole no saquê. Decidiu ler a carta novamente – talvez não tivesse lido corretamente – mas, o efeito foi ainda mais devastador do que o da primeira leitura.
Ele sabia que o pai era bêbado e corrupto, mas descobrir que ele também era violento e abusivo com sua mãe era algo que piorava ainda mais as coisas e contaminava qualquer resquício de bondade em sua memória. Kensei nunca havia odiado o pai – mesmo com todos os seus defeitos – pois apesar de tudo, ele era um bom pai, que o apoiou em seus estudos, nunca lhe bateu, e parecia determinado a fazer com que ele tivesse uma vida melhor.
Agora, ele sequer poderia pensar no pai com o mínimo de carinho, e isso o deixava triste. Além de que, apesar das palavras doces e de ter se dado ao trabalho de viajar até Okinawa para obter notícias e entregar uma carta, a mãe deixou claro que não fazia questão alguma de retomar contato, muito menos de lhe apresentar suas irmãs.
Kensei sentia uma enorme dor em seu peito, mas o que mais lhe desolava, era saber que estava se tornando cada vez mais parecido com seu pai. Estava apaixonado por Mashiro, mas isso não lhe impediu de ser um patife com ela. Lembrou-se de todas as vezes em que criticou suas roupas, seu comportamento ou suas palavras, e não pôde deixar de imaginar o que faria se tivessem um relacionamento.
Será que bateria nela, como seu pai batia em sua mãe? Será que lhe forçaria, como havia feito no sábado a tarde? Será que roubaria seus sonhos e destruiria sua vida, simplesmente por já ser um homem destruído? Não saberia responder, embora gostasse de pensar que jamais chegaria aquele ponto, não sabia mais o que pensar.
Sentia-se repugnante, desolado e sozinho. Ninguém jamais poderia amar alguém como ele, pois nem sua mãe o amava, mesmo que ela dissesse o contrário.
Talvez o fato de não demonstrar interesse pela vida pessoal de seus amigos fosse simplesmente por não desejar compartilhar seus sentimentos com mais ninguém. Afinal, o que ele tinha a oferecer? Uma historinha triste? Uma pá de traumas? Ou a herança maldita de seu pai, que ele achava tão diferente de si, mas agora enxergava que não?
E quem seria idiota a ponto de estreitar os laços com ele? – Pensou – Love devia sentir pena dele, por isso o levava para passar as férias na casa de sua família. Talvez, pena fosse o sentimento mais gentil que alguém dirigiria a si, pois ele não merecia ser amado. Ou será que merecia?
Todas aquelas perguntas faziam a dor em seu peito aumentar, e nem mesmo a garrafa de saquê, que agora se encontrava vazia, pôde aplacá-la. Queria que a dor parasse; que não tivesse recebido aquela carta; que jamais tivesse agido daquela forma com Mashiro; que jamais tivesse sido abandonado; que jamais tivesse existido. Provavelmente ele era apenas o resultado de uma camisinha furada, não tinha propósito e seu nascimento havia sido uma enorme fatalidade para todos os envolvidos.
Quando se levantou, pôde finalmente sentir os efeitos do saquê, tirou a camiseta e caminhou com passos desajeitados em direção ao mar. O mar era reconfortante, não importava se não iria voltar, ansiava por paz, silêncio, e acima de tudo, queria que toda aquela dor fosse embora.
Sentiu as primeiras ondas arrebentarem em seus pés e seguiu em frente, e em poucos passos, já não podia mais seguir caminhando – aquela praia era famosa por sua profundidade logo no início – por um momento, pensou ouvir alguém lhe chamar, mas continuou nadando por mais alguns metros, e então parou, e foi engolido por uma enorme onda.
Ar, ausência de ar, sal, ausência de ar, sal, ausência de ar e então, finalmente, escuridão.
Um impulso o fez erguer o tronco, cuspindo água salgada e tossindo fortemente. Sentia a garganta, as narinas e os olhos ardendo, e quando puxou o oxigênio, sentiu mãos lhe auxiliando a mudar ligeiramente de posição.
“Seu maldito” ele ouviu uma voz feminina berrar desesperada “como pôde?”. Kensei demorou algum tempo até perceber que se encontrava sentado na areia, com Hiyori chorando copiosamente diante de si.
– Como você pôde fazer uma merda dessas?! – disse Hiyori, completamente fora de si, com os olhos encharcados e o rosto vermelho de tanto chorar.
Por que ela está chorando tanto? – Pensou – Não se lembrava de ver Hiyori tão frágil e transtornada. Percebeu que além dos olhos, as roupas e os cabelos também estavam molhados, e havia areia grudada nela.
– Eu – começou a responder com dificuldade – S-sinto muito.
Não tinha mais o que dizer numa situação como aquelas. Hiyori estava preocupada, triste, desolada, tudo por sua culpa. O que mais poderia dizer?
Ela o encarou por alguns segundos, se ajoelhou diante dele, abraçando-o em seguida. Kensei não se lembrava de ter sido abraçado muitas vezes ao longo de sua vida, e demorou alguns segundos até retribuir o gesto carinhoso de sua pequena amiga. Ele não fazia ideia de como ela havia chegado até ali, como tinha conseguido resgatá-lo, mas a sentia tremendo em seus braços, chorando. Ela estava chorando por ele, e havia arriscado a própria vida para salvar a sua.
Naquele momento Kensei percebeu que havia subestimado sua importância na vida de seus amigos, pois jamais esperaria uma reação daquelas de Hiyori. Quando ela finalmente parou de chorar, restava apenas uma fina linha laranja no horizonte, e quando se levantaram, notou que não estavam sozinhos.
A namorada do vice-orientador da 12ª divisão também estava ali – era assim que Kensei a conhecia – notou que ela também estava molhada e suja de areia, que havia pego a camiseta dele e o envelope e os entregado nas mãos de Hiyori.
– Seria bom marcar uma consulta depois – disse a garota olhando para ele e também para Hiyori – Ele ficou algum tempo sem respirar, e o ideal é verificar se não houve sequelas.
– Nós vamos marcar essa consulta – respondeu Hiyori – Essa é a Nemu, foi ela que te trouxe de volta – disse Hiyori, dirigindo-se a Kensei.
– Obrigado – disse sem jeito – Sinto muito por tudo que as fiz passar...
– Não sinta – respondeu Nemu com uma expressão neutra – Espero que possamos nos reencontrar em circunstâncias mais felizes.
Kensei concordou com a cabeça, achava que Nemu se expressava de uma forma estranha, mas isso não mudava o fato de que ela havia salvado sua vida.
– Preciso voltar para casa, se Mayuri me encontrar nesse estado, é capaz de ter um colapso nervoso – disse Nemu – Querem vir comigo?
– Não, acho melhor levá-lo para casa – respondeu Hiyori – Posso deixar meu carro na sua garagem?
– Claro, ela já é sua, eu sequer a uso.
– Certo, então amanhã eu levo minhas coisas pro apartamento – disse Hiyori – Obrigada por tudo, Nemu.
Nemu deu um leve sorriso, se despediu deles com um aceno e partiu.
– Onde está seu carro? – perguntou Hiyori.
Kensei apontou a direção e eles foram até o Jeep, que havia ficado aberto e com as chaves no contato.
– Ainda bem que o Japão é um país seguro – comentou Hiyori, que havia se sentado no banco do motorista, ligando o carro em seguida.
Kensei olhou aquela figura diminuta dirigindo seu Jeep, sentada mais na ponta do banco para que os pés alcançassem os pedais, achando tudo muito surreal, mas sem se atrever a dizer uma única palavra.
– Eu te ajudo a limpar depois – disse ela, percebendo o olhar dele.
– Limpar o quê? – perguntou, sem entender o que ela queria dizer.
– O carro – respondeu simplesmente.
– Não se preocupe com isso.
– Achei que estivesse me encarando por sujar o banco de areia – disse a pequena loira, olhando-o de rabo de olho.
Kensei riu daquela fala, todos os amigos sabiam o quanto ele gostava do carro, e Hiyori não era uma exceção. Mas é claro que ele não estava olhando para ela por isso.
Quando chegaram a casa dele, faltavam poucos minutos para as sete da noite.
– Os meninos estão em casa? – perguntou Hiyori.
– Não, devem estar no Gotei.
– Ótimo.
Dito isso, eles entraram na casa, e foram direto para o quarto de Kensei. Hiyori estava séria, abriu a porta do banheiro e fez menção para que ele entrasse.
Ele entrou e achou que ela fosse se retirar, mas ela simplesmente sentou na tampa do vaso e ficou ali.
– Você vai ficar sentada ai enquanto eu tomo banho?
– Vou – respondeu simplesmente – Estou de costas pro Box, e você sabe que não vou te espiar.
– Sei que não, mas...
– Não vou te deixar sozinho, Kensei – disse com a voz séria e levemente embargada – Não depois do que aconteceu hoje a tarde, então não adianta discutir.
Kensei não tentou argumentar, tomou banho, depois pegou toalhas e uma camiseta limpa para Hiyori – com ela seguindo-o – e esperou ela se banhar também, sentado na tampa do vaso sanitário.
Nunca imaginou viver uma situação como aquela, mas entendia os motivos da amiga – ainda que fosse surpreendente constatar o quanto ela se importava – então não discutiu, e se limitou a obedecê-la. Ele não pôde deixar de rir quando a viu com sua camiseta verde escura, que batia quase nos joelhos dela.
– Belo vestido – ele disse rindo.
– Também gostei – respondeu a loira, olhando-se no espelho que havia no quarto dele – Acho que não vou devolver!
– Fica melhor em você de qualquer forma. – Fez uma pausa, encarando-a brevemente – O que vai dizer pros rapazes quando chegarem e te verem aqui comigo?
– O que você quer que eu diga? – perguntou Hiyori.
Kensei entendeu de imediato o que ela queria dizer, e sentiu-se imensamente grato por isso.
– Não quero que eles saibam...
– Então inventaremos alguma coisa –respondeu simplesmente.
Sentaram-se lado a lado na cama dele e ficaram em silêncio, até Hiyori se pronunciar.
– O que tem no envelope, Kensei?
Kensei não saberia responder aquela pergunta de forma simples, ou de forma alguma, sabia que ela havia visto o envelope e o colocado na escrivaninha antes de entrarem no banheiro, mas não fazia ideia de como conversar sobre aquele assunto. Levantou-se, pegou a carta e entregou nas mãos de Hiyori, pois julgou que seria a forma mais fácil de resolver aquilo.
Ela leu a carta em silêncio, e quando terminou, colocou-a novamente na escrivaninha.
– Se meu pai viesse com uma merda dessas pra cima de mim nessa altura do campeonato, não sei o que eu faria – disse Hiyori.
– Ele foi embora? – perguntou Kensei.
– Foi, quando eu tinha três anos – respondeu simplesmente – E sua mãe?
– Quando eu tinha sete.
Kensei não sabia que Hiyori havia sido abandonada pelo pai. Na verdade, ele não sabia muitas coisas sobre ela, e nem ela sobre ele. Eram ambos reservados e de temperamento irritadiço e não tinham o costume de dividir seus assuntos com ninguém.
Conversaram sobre inúmeras coisas de forma tão leve e honesta, que Kensei ficou surpreso. No fim, não havia nada de ruim em dividir seus problemas com outra pessoa, e ele pôde constatar, na prática, que não era a única pessoa “quebrada” no mundo.
– Você toca piano? – questionou Kensei, parecendo não acreditar no que tinha ouvido.
– Toco – respondeu Hiyori – Estudei dos sete aos dezesseis, junto com Shinji.
– Eu achava que ele tocava só teclado – comentou.
– Não, fizemos piano clássico – disse Hiyori – A ideia foi dele, eu só fui na onda.
– Não acredito nisso, você vai ter que me provar.
Não sabia dizer como haviam chegado naquele assunto, talvez fosse porque ele havia contado que tentou aprender a tocar bateria quando era mais novo, e após mais algumas considerações, Kensei afirmou duvidar da palavra de Hiyori, e quando viram, já estavam invadindo o quarto de Rose para que ela provasse suas habilidades.
– O que quer que eu toque? – perguntou ela, sentada junto ao piano.
– O que quiser – respondeu Kensei, sentando-se no chão do quarto – Só acredito vendo.
Ela pareceu ponderar por alguns segundos, e então começou a dedilhar as notas de uma canção. Pelo visto ela sabia, de fato, tocar piano, mas Kensei não esperava que ela fosse cantar também.
You say you are fine
But I see pain
Behind those eyes
You play the game
By the rigid rules
But you cheated yourself
There ain't nothing you can say
To scare me away
I got history too
And it's never to late
Share a secret today
I reciprocrate
Baby I got you
Enquanto ela tocava e cantava, Kensei se lembrou do dia em que fizeram uma festa no karaokê, onde todos se surpreenderam com a beleza de sua voz. Ele não era muito bom na pronúncia do inglês, mas entendia a letra da música, e sentiu seu coração aquecer com ela.
Someday you'll taste
The freedom and release
Of the trouble shared
Oh, oh today
I'm here loving you
Can find in me
There ain't nothing you can say
To scare me away
I got history too
And it's never to late
Share a secret today
I reciprocrate
Baby I got you
So hurt with me
I'll hurt with you
Baby you know we can hurt together
Quando Hiyori terminou sua performance, Kensei ouviu palmas e assovios. Olhou em direção a porta e lá estavam Rose, Love e Shinji – não havia notado a chegada deles – levando um leve susto, compartilhado com Hiyori.
Kensei não era um cara criativo, sabia que precisavam de uma desculpa para o fato de Hiyori estar na casa, usando suas roupas, além de que ela também dormiria ali. Esperava que ela fosse capaz de inventar alguma história convincente, pois a última coisa que desejava era que eles soubessem do que houve durante a tarde. Agora, sua única opção era confiar em Hiyori.
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