04 de Março de 2020
Seres humanos são complexos, ao mesmo tempo em que querem uma coisa, podem simplesmente passar a querer outra – de uma hora para outra – tanto por motivações emocionais, tais como euforia ou tristeza, quanto por questões de ordem física, como cansaço, dores no corpo, e uma porção de outras opções.
Eram cinco e meia da tarde de quarta-feira quando Love chegou em casa e foi tomar banho, após um longo dia de estudos e trabalho. Felizmente, quarta não era seu dia mais atarefado, trabalhava numa academia como personal trainer das seis às dez da manhã, e dedicava-se as aulas do doutorado de uma às cinco da tarde.
Para Love, nos últimos seis meses, as noites de quarta-feira eram reservadas para jogar RPG, mais especificamente, Dungeons and Dragons, pois ele e Lisa, junto de Nanao e Akon, que eram um casal de amigos da morena, e Kira – primeiro assistente da 3ª divisão – tinham iniciado uma campanha, e cada aventura levava duas ou três noites para ser concluída.
O tabuleiro, os dados, bonequinhos e demais acessórios pertenciam a Love, que exercia o papel de mestre do jogo. Apesar de adorar festas e rolês mais agitados, o moreno também tinha um lado mais nerd, e não abria mão de suas noites de D&D com os amigos.
Após o banho, Love foi até a cozinha, preparar um lanche para si, estava sozinho em casa. Rose e Kensei treinavam em suas respectivas divisões nas noites de quarta, e Shinji – por qualquer que fosse o motivo – ainda não havia chegado.
Preparou um sanduíche de atum, e após alguns minutos, ouviu a porta da sala se abrir, e então Shinji e Kensei se juntaram a ele.
– Você não tinha que estar no treino a essa hora? – Love perguntou, encarando Kensei, que lavava as mãos na pia da cozinha.
– Mashiro está me substituindo – respondeu. – Tive que resolver umas coisas, não ia dar tempo.
Love estranhou aquela afirmação, e por pouco não engasgou dando um gole em seu leite de soja. Sabia que Kensei era extremamente responsável para com os treinos e quaisquer assuntos relacionados a 9ª divisão, diferente de Mashiro, que se comportava como uma folha ao vento sobre absolutamente qualquer coisa que não fosse sua pesquisa ou a padaria de Hachi.
– Você deixou a Mashiro te substituir? – Questionou, pronunciando cada uma das palavras devagar e pausadamente.
Kensei concordou com a cabeça, mas não disse nada. Abriu a geladeira, pegou um pote com pedaços de frango assado que haviam sobrado do dia anterior, e passou a comê-los quase que imediatamente. Love nunca compreendeu a tara que Kensei tinha por frango frio, e o observou sentar-se a mesa com o semblante perplexo – mais por saber que ele havia deixado Mashiro substituí-lo do que por causa do frango – pois já havia se acostumado com os hábitos esquisitos do platinado.
– E você foi junto resolver essas coisas com ele? – Love indagou, agora encarando Shinji.
– É – respondeu o loiro, que analisava o interior da geladeira, aparentemente tentando decidir o que comer.
– Desistiu da Hiyori e agora tá pegando o Kensei? – Provocou, pois apesar de não ser um cara invasivo, jamais perderia a chance de fazer uma piada.
– Não é isso – começou Kensei, enquanto mastigava um generoso pedaço de peito de frango frio. – Shinji foi fazer exame de próstata, e eu fui acompanhá-lo.
Dessa vez não teve jeito, Love engasgou fortemente com o sanduíche, e quase morreu de tanto rir. Shinji deu de ombros, como se não desse a mínima pro que foi dito, enquanto preparava uma grande tigela de cereal.
– Se não querem contar o que andam fazendo, de boas, só não tentem me matar – disse Love, após se recuperar do ataque de risos.
– Aqueles seus amigos do RPG vêm hoje? – Kensei perguntou, enquanto saboreava sua inusitada refeição.
– Sim, estamos na reta final da campanha.
– Saudades RPG – comentou Shinji. – Tão jogando o quê?
– D&D – respondeu Love.
– Quando forem começar uma campanha nova, me avise, quero jogar também.
– Pode deixar.
Antes do loiro ir para a Inglaterra, Love e Shinji jogavam World of Darkness, junto com Lisa e alguns outros colegas da Seireitei. Dentre os Vizards, apenas eles três tinham interesse por RPG, e com a ida de Shinji para o exterior, apenas Lisa compartilhava daquele hobby. Felizmente, ela havia conseguido captar colegas no campus para jogar com eles.
– Nunca entendi a graça nesse tipo de jogo – afirmou Kensei, levantando-se da mesa e caminhando em direção a pia, para lavar o pote que havia esvaziado.
– Imaginação nunca foi o seu forte, e sem isso não dá pra jogar RPG – Love rebateu.
– Rose é muito mais imaginativo que você e Lisa juntos e nem ele tem saco pra essa merda – devolveu Kensei, em tom neutro. – Vou tomar banho.
Love não se ofendeu com o comentário – que não era nenhuma mentira – sabia que muita gente detestava RPG, mas defendia seu hobby com unhas e dentes. Esse não era o único tópico em que ele e Kensei tinham opiniões diferentes, mas, apesar das alfinetadas, respeitavam muito um ao outro, e nenhum deles jamais arrumaria treta por algo tão trivial. Um sempre zoaria o outro, por inúmeros motivos, mas sem nenhuma má intenção, era o jeito deles.
Após a saída de Kensei, Love e Shinji ficaram sozinhos na cozinha, entretidos com seus respectivos celulares por alguns momentos.
– E aí, se acertou com a Hiyori?
– Oi? – Shinji tirou os olhos da tela de seu celular, parecendo não entender a pergunta do amigo.
– Não se faz de desentendido, eu vi você saindo ontem, era quase meia-noite. – Fez uma pausa, encarando Shinji com um olhar malicioso. – Se acertou com ela?
– Quem dera. – Suspirou. – Não fui encontrar a Hiyori ontem, saí para resolver umas pendências…
Love estranhou a fala de Shinji, mas antes que pudesse dizer alguma coisa, uma notificação fez seu celular vibrar, desviando-lhe a atenção. Era uma mensagem de Kiyone “Minha irmã e o marido vão visitar alguns amigos em Naha, e só voltam depois das onze, quer vir aqui? Podemos comer lámen =)”.
Com o coração disparado, Love digitou a resposta quase que imediatamente “Claro, que horas?”. Um convite para comer lámen na casa de Kiyone – com ela estando sozinha – era um avanço que veio bem mais rápido do que Love poderia esperar. Eles tinham saído no sábado e se beijado quando se despediram, mas não passou disso. Não desgrudou os olhos da tela enquanto ela digitava “Umas sete horas, pode ser?” verificou o horário no canto superior da tela, eram seis e dez “Pode”.
Levantou-se num impulso, com o objetivo de trocar de roupa e ficar ainda mais cheiroso, mas se lembrou de algo que o impediu.
– Shinji, preciso do seu carro emprestado – pediu, com o olhar semi suplicante.
Kiyone morava com a irmã e o cunhado numa bela casa em uma área nobre, do outro lado da ilha. Poderia ir de ônibus, mas teria que subir uma baita ladeira até a residência dos Ukitake, correndo o risco de ficar suado, e o serviço de táxi era bem caro por ali.
– Ta pedindo minha “banheira” emprestada? – Caçoou Shinji. – Não é você que vive falando que o carro do Kensei é muito melhor, pede pra ele.
– Mano, Kiyone me chamou pra ir na casa dela – disse Love, ignorando completamente a ironia. – Você sabe que o Kensei embaça para emprestar o Jeep, e eu não tenho tempo para ficar argumentando com ele.
– Você vai sair agora? Mas, e o RPG?
Merda, tinha esquecido completamente. O pessoal chegaria por volta de vinte para as sete, para arrumar as coisas, preparar as fichas, e começariam a jogar mesmo as sete horas, ficando até as dez. Não daria para conciliar, e naquele momento, questões de ordem física pareciam mais relevantes do que o compromisso com os amigos. Precisava de uma solução, rápido.
– Você pode me substituir no jogo de hoje, é um mestre muito mais talentoso que eu – disse Love.
– Tá maluco? É D&D, e vocês estão no final da campanha! Se não pode ficar, liga pro pessoal e cancela – Shinji respondeu seriamente.
– Cara, faz isso por mim, nunca te pedi nada!
Love não fazia o tipo que implorava, mas estava chegando lá. Shinji suspirou profundamente, claramente contrariado.
– Vou cobrir você, mas quem decide os termos sou eu – disse o loiro, com semblante sério. – Quando terminar de transar, lê suas mensagens, vamos precisar de uma boa desculpa para Lisa não fatiar a gente ainda vivos.
– Você é o melhor! – Love comemorou, antes de correr para o quarto e se arrumar.
Eram seis e vinte e cinco quando voltou correndo para cozinha, todo trabalhado no 212 – que havia ganhado de Rose como presente de aniversário – usando uma bonita camiseta cinza, calça jeans e tênis preto. Pegou as chaves do carro de Shinji, e saiu rapidamente, pois não desejava encontrar com nenhum dos amigos, sobretudo com Lisa.
Deu partida no custom lincoln continental, estranhou um pouco, não estava acostumado a dirigir carros antigos, e partiu rumo ao bairro de Kiyone. Love não tinha carro, dirigia o dos pais durante as férias, mas não era um motorista exemplar, então quando precisou subir a ladeira com o carro rebaixado de Shinji, sofreu um bocado.
Chegou a casa de Kiyone faltando dez minutos para as sete horas. Verificou a aparência no espelho que ficava no quebra sol, e procurou uma bala de hortelã no porta-luvas, uma vez que ter escovado os dentes não foi o suficiente para tirar o cheiro de atum da boca. Sentiu o celular vibrar no bolso, havia treze notificações, oito delas eram de Lisa, e ele não as visualizaria, pois não queria ter que respondê-la – Lisa odiava gente que visualizava e não respondia – e havia duas de Shinji e outras duas de Kiyone.
No momento em que pegou o celular para ver a mensagem de Kiyone, o carro começou a descer ladeira abaixo – pois havia esquecido de puxar o freio de mão – felizmente, agiu a tempo e conseguiu parar o veículo e estacioná-lo corretamente. Na confusão, o celular caiu no assoalho, tendo aberto as mensagens de Lisa.
Agora que já haviam sido visualizadas, ainda que por acidente, não havia mal algum em ver do que se tratavam:
Lisa
18:36 – Olha o que eu consegui pra gente [foto em anexo].
18:36 – O pacote chegou hoje, vamos comer até morrer!
18:41 – Kira mandou mensagem dizendo que vai atrasar um pouquinho.
18:41 – To chegando
18:49 – Mano, o que houve? Shinji disse que você saiu às pressas por causa de uma emergência O.o
18:50 – To preocupada
18:51 – Manda notícias, arrombado --’
18:52 – Vou ficar aqui até você voltar, se precisar de algo grita.
A foto em anexo nada mais era do que uma grande caixa de papelão, contendo inúmeros pacotes de chips de batata-doce sabor bacon – o favorito de Love – de uma marca que não era comercializada no sul do Japão, e que de alguma forma, Lisa tinha conseguido encomendar pela internet. Naquele momento, Love se sentiu um babaca.
Abriu as mensagens de Shinji, tentado ter alguma ideia do que faria em seguida.
Shinji
18:50 – Se eu dissesse pra Lisa que você me pediu pra te substituir, ela enfiaria um nabo no meu traseiro. Falei que você pediu meu carro emprestado, e não disse para onde ia.
18:50 – Seja criativo, ou diga a verdade, tanto faz. Quero meu cu intacto.
Merda, agora Lisa estava preocupada. Mas, sequer poderia culpar Shinji. Que tipo de mestre de D&D pede para um amigo substituí-lo, ainda mais numa reta final de campanha? Não era nenhum virgem desesperado, e aqui estava ele, no auge de seus vinte e seis anos de idade, agindo como gado.
Kiyone
18:49 – Estou te esperando!
18:49 – [Foto em anexo].
Kiyone tinha enviado uma foto com inúmeros pacotes de lámen, de sabores variados. Droga. Seria uma piada? Ou será que pra geração dela “comer lámen” significava, de fato, comer lámen? Kiyone era uma garota alegre porém tímida, de apenas dezoito anos, que havia saído com ele uma única vez. Não podia negar que existia a possibilidade do convite dela ser realmente para comer lámen. E o pior de tudo, é que agora isso nem importava mais, já que a culpa que sentia por dar mancada com Lisa fez com que toda sua libido voasse ladeira abaixo. E que ladeira.
Eram sete da noite quando, um pouquinho relutante, enviou uma mensagem para Kiyone, dizendo que havia se esquecido de um compromisso, mas que podiam sair no final de semana, se ela assim o desejasse. Ela mandou um emoji com uma carinha triste, mas disse que tudo bem.
Passou no posto de gasolina para abastecer o carro do amigo, e voltou para casa, sentindo-se um idiota. Um acadêmico que estudava sobre os maiores pensadores da história da humanidade, agindo como gado. Talvez Epicuro lhe desse um desconto, afinal de contas, só se vive uma vez, mas Love definitivamente não era um epicurista.
Quando chegou em casa eram sete e quarenta. Notou que a scooter de Lisa estava estacionada em frente a casa, assim como o carro de Nanao. Entrou lentamente, e por mais que estivesse imaginando o que os amigos fariam em sua ausência – pois certamente não jogariam D&D sem ele – nada poderia prepará-lo para a cena que viu ao abrir a porta.
– Que porra é essa? – Exclamou perplexo, ao deparar-se com Lisa, Akon, Nanao e Kira, posicionados acima de um tapete com bolinhas coloridas, num emaranhado humano, digno de uma suruba.
– Bem-vindo ao mundo invertido – disse Shinji, soltando uma de suas típicas risadas estranhas, voltando a atenção para uma roleta, e girando-a em seguida. – Pé direito no azul, Nanao-Chan!
– Então você voltou, seu arrombado! – Lisa berrou, virando a cabeça para trás com certa dificuldade, pois encontrava-se de quatro, com um dos braços entre as pernas de Nanao, e a perna esquerda por cima do braço de Kira. – Onde você tava?
– Depois eu conto – respondeu Love, ainda tentando compreender o que via. – Ainda vamos jogar D&D?
– Vamos, mas agora você vai ter que esperar a gente terminar essa partida de twister – disse Nanao, ajeitando os óculos, enquanto tentava evitar uma queda.
Kensei estava sentado no sofá, e se divertia vendo os amigos nerds de Lisa e Love contorcendo-se no tapete sob o comando de Shinji. Love se sentou junto dele, e observou a partida. O fato de Lisa ser absurdamente flexível não era surpresa para ninguém, mas após os dois rapazes caírem, ela e Nanao conseguiram se manter firmes por mais algum tempo, tendo a segunda saído vitoriosa.
Nanao Ise era uma doutoranda da área de ciências contábeis, colega de Lisa, pois seus respectivos cursos tinham algumas pesquisas em parceria. Ela também era vice-orientadora da primeira divisão, cujo líder era o atual reitor da Seireitei. O namorado de Nanao, Akon, era terceiro assistente da 12ª divisão e fazia doutorado na área de farmácia bioquímica.
Quanto a Izuru Kira – primeiro assistente da 3ª divisão, portanto, subordinado de Rose – era um doutorando da área de biomedicina, especialista em autópsia forense. Ele dividia casa com Renji Abarai, Shūhei Hisagi – irmão mais novo de Akon – e, muito em breve, com Shinji, pois o loiro se mudaria para a casa dos rapazes na sexta-feira.
Finalizada a partida de twister, Love e os demais se organizaram e começaram a jogar D&D, enquanto Shinji e Kensei preparavam uma refeição na cozinha.
A aventura do dia havia sido emocionante para todos os participantes – tão emocionante quanto um RPG pode ser – e no fim, Love ficou feliz por ter voltado para casa. Não sabia onde estava com a cabeça, gostava muito de Kiyone, mas dar bolo nos amigos de última hora, sendo mestre do jogo, teria sido uma atitude mega babaca, sabia disso, e não estava disposto a mentir para Lisa quando ela viesse lhe perguntar que merda tinha acontecido.
Jogavam na sala quando Rose chegou acompanhado de Mashiro, eles traziam algumas sacolas e foram direto pra cozinha. Mashiro sempre vinha para casa dos rapazes nas quartas-feiras, sob o pretexto de ir embora junto com Lisa, mesmo o apartamento delas sendo muito mais próximo do campus.
Já passava das dez quando terminaram o jogo. Shinji, Kensei, Rose e Mashiro arrumaram a mesa baixa na sala, para que todos pudessem comer confortavelmente, já que a cozinha ficaria muito apertada naquela ocasião. O jantar parecia um piquenique de lunáticos, pois além de Shinji e Kensei terem cozinhado, Rose e Mashiro trouxeram algumas coisas prontas, então tinham mais do que o suficiente para alimentar as oito pessoas presentes.
– Kensei, não se atreva a faltar aos treinos novamente – disse Rose, enquanto se servia com uma taça de vinho branco. – Mashiro e eu não temos carro, tivemos que vir de carona com Hisagi, e o carro dele é uma daquelas porcarias elétricas que anda a menos de vinte por hora.
– Não fala mal do Hisagi-Kun – exclamou Mashiro, com a boca cheia.
– Mas você vive zoando ele – Rose devolveu. – Vai fazer a pêssega agora?
– O irmão dele tá sentado do seu lado…
Rose pigarreou brevemente, lançando um sorriso amarelo na direção de Akon, que saboreava tranquilamente um guioza de carne suína.
– Podem falar o que quiserem – disse Akon, após dar um gole em sua taça de vinho. – Nós não moramos juntos justamente por ele implicar com meus cigarros.
– Muito me admira aquela veneração dele pelo Kensei – Love comentou. – Ele sabe que o líder é alcoólatra?
– Provavelmente não – respondeu Akon. – Mas um dia desses eu pergunto, quero só ver o que ele vai fazer com aquela tatuagem na cara quando souber.
– Quase morri de vergonha alheia quando ele fez aquela tatuagem – disse Kira, fazendo uma expressão de desgosto. – Lá em casa ninguém fuma, mas ele vive implicando com Renji por outros motivos.
– Fodeu – exclamou Shinji. – Não sabia que a casa de vocês só tava disponível para não fumantes.
– Você fuma? – Indagou Kira.
– Mais do que uma chaminé – Love respondeu rindo, antes mesmo do amigo se pronunciar. – Acho que já era a mudança, Shinji vai ter que ficar no colchão de ar por mais um tempo.
– Prefiro morar no carro do que ter que parar de fumar, avise os rapazes que não vou mais me mudar – declarou Shinji.
Kira concordou com a cabeça, um pouco sem graça, enquanto os demais continuavam conversando sobre trivialidades.
– Isso é frango? – Kensei perguntou, após abrir um dos pacotes de Rose e Mashiro haviam trazido.
– É salpicão – respondeu Mashiro com um sorriso. – Já que gosta tanto de frango frio, pelo menos vai poder comer do jeito certo.
Love esperou que uma das clássicas discussões daqueles dois se iniciasse, mas não. Ao invés disso, Kensei apenas colocou uma porção de salpicão em seu prato, e após experimentar soltou um espontâneo “gostei” ainda com a boca cheia.
Era muito estranho estar no mesmo ambiente em que aqueles dois sem presenciar nenhuma briga – assim como aconteceu com Hiyori e Shinji, logo que voltaram de viagem – mas, ao contrário dos dois loiros, não havia clima estranho entre Mashiro e Kensei, eles pareciam estar, na realidade, se tratando melhor, o que era ainda mais esquisito aos olhos de Love.
Eram onze e quinze quando Nanao, Akon e Kira foram embora. Mashiro, Rose, Kensei e Shinji continuaram conversando na sala, mas Lisa foi para a varanda, e Love sabia que aquela era sua deixa.
Não tinha muito o que fazer, contou a verdade, nunca mentira para Lisa antes e não começaria agora.
– Sério que você ia deixar a gente no vácuo só pra transar? – Exclamou a morena, já irritada.
– Ia, mas não fui – argumentou. – Eu voltei, não é o que importa?
– Não to te reconhecendo, Love. – Cruzou os braços, e virou o rosto em direção a rua. – Você não é moleque, arrumar buceta nunca foi uma dificuldade pra você, e nós sempre priorizamos os amigos.
– Não é assim com ela. – Love suspirou. – É claro que se rolasse seria bom, mas não estou saindo com a Kiyone por causa de sexo.
– Qual é, vai falar que tá apaixonadinho? – Lisa debochou. – Era só o que faltava, você sempre foi um solteiro convicto, que merda é essa agora?
– Eu nunca fui nada disso, você que é – Love rebateu, num tom ligeiramente mais alto. – Você que sempre fez questão de berrar pro mundo que não queria um relacionamento sério e fica projetando essa imagem em mim e no Rose.
– Como é? Projetando em vocês? Vai pagar uma de puritano agora? – Despejou possessa. – Você e o Rose sempre foram adeptos de sexo livre, bem mais que o Shinji, que leva toda a fama por nós quatro, e agora vai querer pagar uma de romântico?
– Não é nada disso, para de colocar palavras na minha boca – respondeu irritado. – A gente sempre fez o que quis e com quem quis, mas isso não significa que somos “solteiros convictos” como você diz, só não achamos ninguém que interessasse o bastante.
– E a Kiyone te interessa o bastante? – Questionou incrédula.
Love concordou com a cabeça.
– Eu aposto todas as minhas fichas que aquela garota é virgem – disse Lisa. – Percebe o quão patético é um cara da sua idade dizer que está apaixonado por uma garota como ela? Por acaso você é incompetente demais para arrumar uma mulher da sua idade? Cansou de galinhar por aí e agora vai se escorar na primeira novinha caloura que baba-ovo por você?
Um silêncio ensurdecedor tomou conta da varanda. Love estava chateado, um pouco irritado e se sentindo injustiçado pelas palavras da amiga, mas acima de tudo, chateado.
– Lisa, se ela é virgem ou não, não faz a menor diferença – começou, tentando manter o tom baixo. – Eu gosto dela, da personalidade dela, e não to com ela pra me sentir mais macho, mais experiente ou mais inteligente, se ela tivesse quarenta anos, ainda sim, eu gostaria dela.
Lisa não respondeu, seu maxilar se contraiu e ela ficou olhando para o chão verde de ardósia.
– A gente se conhece a quase sete anos – Love continuou. – Se você realmente acha que eu sou esse tipo de cara escroto, por que somos amigos?
– Eu não acho que você é assim, to dizendo que o seu comportamento tá fazendo parecer isso – ela respondeu, ainda olhando pro chão.
– O problema é o meu comportamento, ou o fato de você não querer que nenhum de nós seja comprometido, só pra se sentir melhor consigo mesma?
Lisa não respondeu, deu as costas a Love e saiu pisando duro, em direção a scooter.
– Lisa, espera – Correu na direção dela.
– Vai se foder! – Colocou o capacete e deu partida na scooter, deixando Love parado no meio da rua, sozinho.
Talvez tivesse pegado pesado demais… Talvez, não, sabia que tinha pegado pesado com Lisa.
Alguns minutos depois, seus amigos vieram também. Ficaram os cinco parados no meio da rua, com a iluminação pública amarelada lhes conferindo um ar ainda mais melancólico. Por alguns minutos, ninguém disse nada – obviamente, tinham ouvido toda a discussão – e era difícil saber o que dizer numa situação como aquelas.
– Ela se esqueceu de mim – disse Mashiro, quebrando o silêncio e fazendo um biquinho.
– Eu te levo – ofereceu Kensei. – Vou pegar as chaves.
Enquanto Kensei e Mashiro entravam no Jeep, para que ele pudesse levá-la para casa, Love, Rose e Shinji ficaram sentados na calçada. Os dois últimos – provavelmente – o fizeram em solidariedade ao primeiro, que não havia dito uma única palavra desde que Lisa tinha ido embora.
– Você contou para a Kiyone sobre o jogo de D&D? – Shinji perguntou, enquanto acendia um cigarro.
– Não, só falei que tinha me esquecido de um compromisso
– Se gosta mesmo dela, melhor ser sincero sobre as coisas – sugeriu, após dar uma tragada. – Até sobre as pequenas e aparentemente insignificantes.
– Ouça o oráculo fumante – disse Rose, fazendo um gesto grandioso na direção de Shinji. – Ele tem razão.
Love se limitou a concordar com a cabeça. Entraram em casa, e cada um tomou seu rumo.
Após o banho, Love se deitou no futon, era meia-noite, colocou os fones de ouvido e ligou o player no modo aleatório. Estava com a cabeça cheia, sentia-se estranho.
Was an honest man
Asked me for the phone
Tried to take control
Oh, I don't see it that way
I don't see it that way
Love nunca foi o tipo de cara que se achava o dono da verdade. Odiava esses tipos, e não pôde deixar de pensar no por quê de Lisa ter lhe dito aquelas coisas. Estaria ela vendo algo que ele não era capaz de enxergar?
Oh, we shared some ideas
All obsessed with fame
Says we're all the same
Oh, I don't see it that way
I don't see it that way
Raised in Carolina
I'm not like that
Trying to remind her
When we go back
Ou talvez ela só estivesse com medo, afinal de contas, nenhum deles era muito chegado à mudanças. A partida de Hiyori e Shinji, a mudança do barracão, todos tinham odiado aquilo. De certa forma, todos eles eram apegados ao estilo de vida que tiveram de 2015 a 2018, mesmo que a princípio tivessem topado morar juntos apenas para economizar dinheiro.
He said he can't decide
I shake my head to say
"Everything's just great"
Oh, I just can't remember
I just can't remember
Raised in Carolina, she says:
"I'm not like that"
Trying to remind her
When we go back
Era estranho pensar no quanto a amizade daquelas pessoas tinha peso em sua vida. Num momento eram um bando de universitários fodidos dividindo casa, no outro, eram mais que família. Não suportava a ideia de magoar Lisa – nunca haviam brigado, pelo menos não daquele jeito – mas não estava disposto a deixar para lá o que sentia por Kiyone. Gostava dela, de verdade, e mais cedo ou mais tarde, Lisa teria que lidar com isso.
I say the right thing but act the wrong way
I like it right here but I cannot stay
I'm watching TV; forget what I'm told
Well, I am too young, and they are too old
Oh man, can't you see, I'm nervous, so please
Shinji tinha razão afinal de contas, mesmo não tendo capacidade de consertar a própria vida amorosa, aquele bastardo loiro sempre dava bons conselhos. Se quisesse ter sucesso na relação com Kiyone, teria que ser sincero com ela, assim como sempre havia sido com Lisa.
Pretend to be nice, so I can be mean
I missed the last bus, we'll take the next train
I'll try but you see, it's hard to explain
Seres humanos são complexos… As vezes é difícil expressar com palavras o que sentimos. Se não forem acompanhadas de atitudes, palavras, dificilmente servem de alguma coisa. Love daria um jeito de se acertar com Lisa depois, agora não havia muito o que fazer.
No entanto, quando se é possível resolver algo de imediato, não devemos protelar, e Love sabia disso.
Love. 00:11 – Ta acordada?
Kiyone. 00:12 – Sim
Love. 00:13 – Posso te ligar?
Kiyone. 00:13 – Claro =)
Quando se quer algo muito intensamente, é preciso fazer algo a respeito. E ele fez.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.