Eles pararam por um segundo e olharam a sala ao seu redor. Quase tudo estava encaixotado, mas ainda tinha muito trabalho a ser feito. Poncho sentou-se em uma das caixas, cansado já de tanto trabalhar
“Hey não senta aí” Annie disse sorrindo “Vai estourar a caixa”
“Tá me chamando de gordo é?” ele perguntou a puxando para perto de si até que os dois caíram para trás, abraçados um no outro, e a caixa de papelão realmente se rompeu
“Poncho!! Olha o que você fez!” ela disse rindo, mas ainda assim tentando se soltar de seu abraço “Vamos, já é quase uma e meia da manhã, precisamos arrumar essa bagunça”
“Ah não, eu to cansado, quero ficar aqui com você” ela olhou em seus olhos e sorriu
“Podemos pelo menos sair de cima dessas coisas?” ele assentiu e a deixou sair. Estavam exaustos, mas ele sabia que ela tinha razão, ainda tinham muito o que fazer. Aproveitaram muito e se divertiram com seus amigos na casa de Maite, mas quando chegaram no loft de Anahí o trabalho duro começou. Todo mundo sabia que a loira parecia menos teimosa do que Dulce, mas que quando colocava alguma coisa na cabeça, nada a fazia mudar de ideia. E ela tinha colocado em sua cabeça que queria fazer a mudança na manhã seguinte. Dulce estaria na casa de Maite e ela não queria que se estressasse com a mudança, sendo a oportunidade perfeita. Também não queria esperar até que ela fosse internada novamente, fazia questão de já estar morando com a amiga antes disso. Annie estava muito feliz com ele, realmente estava. No entanto tudo estava acontecendo rápido demais, como se estivessem famintos um pelo o outro, os dois começaram a se envolver de uma forma profunda e em muito pouco tempo. Era como se tudo o que estava acontecendo com Dulce fosse um chamado para que despertassem e ela sabia que a amiga estava sentindo o mesmo – provavelmente de uma forma ainda mais intensa.
“Eu vou preparar um café pra gente, senão não vamos dar conta” ele disse também se levantando e ela concordou. Esperou que ele saísse de seu campo de visão e então caminhou até a varanda. Apoiou-se no parapeito e observou a noite, reflexiva. O céu misturava as nuvens com a luz da lua e apenas algumas estrelas apareciam timidamente. Torceu para que não chovesse, porque estava decidida a terminar aquela mudança antes da hora do almoço. Queria fazer – mais uma – surpresa pra sua amiga. Queria também manter-se ocupada, porque não conseguia parar de pensar em tudo aquilo e a matava por dentro. A primeira cirurgia de Dulce estava cada vez mais próxima e todos fingiam não lembrar, mas pensavam nisso todo o tempo. Os médicos lhes asseguraram de que não era um procedimento muito perigoso, mas era uma cirurgia cardíaca, o que era por si só muito delicado. Ela estava com medo, mas não podia admitir isso. Sentiu o vento frio em seu rosto e respirou fundo. Queria que tudo aquilo não passasse de um sonho, ou alguma cena de novela, que alguém fosse gritar “corta!” e tudo iria acabar e voltar ao normal. Pensou então em Poncho. Estava muito feliz com ele, realmente sentia-se bem ao seu lado, mas algo não a deixava sossegada. Ela sabia de tudo o que ele já tinha sentido por sua amiga. Até poucos dias ele teve um comportamento ciumento em relação à Dulce e ela não conseguia deixar de se questionar... ele estava com ela porque realmente sentia algo, ou queria se esquecer de sua melhor amiga? “Hey” ela ouviu a voz dele se aproximando “Tudo bem aí?” ele perguntou se colocando ao seu lado na varanda e lhe oferecendo a sua xícara de café. Ela concordou e pegou o café agradecida “Um centavo pelos seus pensamentos” ele disse e ela respirou fundo, olhando em frente, para uma cidade quase totalmente adormecida. Alguns carros passando na rua, algumas janelas de outros prédios com as luzes acesas, pessoas vivendo suas vidas normalmente, enquanto ela sentia que sua vida estava mudando completamente.
“Não sei” ela finalmente respondeu entre um gole e outro no líquido quente “Faltam dois dias para a cirurgia” ela afirmou simplesmente
“É, eu sei’
“Tudo isso... é muita informação eu acho” ela afirmou novamente, como se ele não tivesse dito nada. Ele então percebeu que tinha algo que ela queria colocar pra fora, mas o faria em seu ritmo. Por isso ao invés de oferecer-lhe palavras, lhe ofereceu seu silêncio atencioso. “Eu acho que todo mundo mudou um pouco o jeito de pensar a vida nesses últimos dias” ela continuou pausadamente “Nessas horas a gente percebe como não sabemos de nada e como a vida pode ser frágil” ela disse agora o encarando e sentindo seus olhos lacrimejarem “Acho que é por isso que estamos aqui agora, certo? Não queremos perder tempo...” ele assentiu
“Nunca mais vamos perder tempo”
“Mas é só isso mesmo? Digo...” ela voltou a desviar o olhar “Sei que estamos vendo que não podemos ter certeza de nada, mas... como podemos saber que isso, que nós somos a coisa certa?”
“Porque eu sinto” ele disse se aproximando e a fazendo encarar nos olhos “Eu acredito muito que tudo acontece por um motivo meu amor” ele tirou uma mecha loura de cabelo de seus olhos “Eu estou aprendendo que não posso e não quero perder tempo e que não quero viver minha vida sem amor, sem o seu amor”
“Como sabe que sou eu mesma quem você quer? Até pouco tempo você estava com ciúmes da Du...”
“Annie, até pouco tempo eu não tinha me permitido abrir os olhos” ele a interrompeu “Eu estava ouvindo o que meu ego queria, não o meu coração. Você sabe melhor do que ninguém o quanto eu amo a Dulce, eu sempre vou amá-la, sempre, mas é distinto. Você é a mulher da minha vida. Há quanto tempo já sabemos disso? Há quanto tempo tentamos fugir dessa realidade, para provarmos algum ponto, eu não quero mais isso. Não tenho mais tempo para viver egos e caprichos, eu quero estar com você” ele sorriu e ela deixou algumas lágrimas caírem “Yo te quiero a ti”
“Yo también te quiero a ti” ela respondeu e deixou-se levar pelo beijo amoroso e caloroso daquele que a fazia sentir-se viva. Era disso que precisava, saber que estava viva, para superar o medo de que uma parte muito importante de sua vida pudesse simplesmente morrer.
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Segunda-feira chegou mais rápido do que todos pretendiam. A cirurgia deveria ser na terça-feira, o dia seguinte daquele. Dulce tinha conseguido se esquecer de tudo aquilo por mais alguns momentos no dia anterior, quando chegou em casa depois do almoço e encontrou Anahí e Poncho a esperando com todas as coisas dela já arrumadas e até algumas coisas da decoração alteradas pela amiga. Algo que talvez há alguns anos a deixaria irritada a deixou extremamente animada, ter alguém mudando a decoração de sua casa lhe parecia a prova de que havia vida ali. Os dois pareciam dois zoombies e ela logo concluiu que deviam ter virado a noite para conseguirem deixar tudo tão arrumado àquela hora, mas também pareciam felizes e satisfeitos. Desde quando tinha saído do hospital, aquele domingo tinha sido o dia em que se sentira pior. Não conseguiu ficar muito tempo fora da cama, seus remédios estavam acumulados em seu organismo e os efeitos colaterais estavam gritando. Náuseas, tonturas e cansaço... ela não gostava de perder a noção do que era a doença e do que era o tratamento. Seus amigos estavam se doando muito para que ela não se sentisse sozinha, estavam reunidos novamente, para inaugurar a “casa nova” de Anahí, mas ao contrário da noite de jogos na casa de Maite, Dulce não conseguiu acompanhar o ritmo e eles ficaram preocupados. Foi mais um dia de surpresas e companhias agradáveis, mas tinha passado como um borrão para Dulce. Agora o dia já tinha passado e ali estava ela, na véspera de sua cirurgia. Ela acordou em sua cama e levou algum tempo para conseguir enxergar com clareza. Tinham mais pessoas em sua cama. Ela levantou a cabeça, que estava muito pesada, e encontrou Claudia e Maite deitadas quase que uma em cima da outra, adormecidas. Pareciam desajeitadas naquela posição, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa a respeito sentiu seu estômago reclamar. Num movimento não processado por seu cérebro, ela levantou-se e foi até o banheiro de sua suíte o mais rápido que conseguiu, esvaziando o pouco conteúdo de seu estômago e sentindo-se tonta. Apoiou-se contra a parede, sentada no chão do banheiro. Não estava conseguindo se situar no tempo ou espaço. Sentiu uma mão em seu braço e logo ouviu a voz suave de Annie “Shh tá tudo bem” ela disse tirando seu cabelo de seu rosto. Dulce abriu os olhos novamente e a encarou “Bom dia flor do dia”
“Bom dia” ela respondeu com a voz rouca “Cadê os outros?”
“O Chris e o Ucker foram embora ontem a noite” ela disse ajudando a ruiva a levantar-se “Eles têm uma cena pra gravar hoje bem cedo, mas o Poncho tá dormindo no meu quarto” Dulce reuniu todas as forças que tinha para lhe enviar um olhar provocador
“Sei, dormindo” e riu
“Nem assim você me dá uma folga né?” ela respondeu sorrindo “Toma coloca seu chinelo” ela disse colocando o par de chinelos na frente de Dulce e então a ajudou a irem até a sala, onde preparou alguma coisa para que comessem.
Aquele dia também se arrastou de uma forma dificultosa para a ruiva e terminou com uma má notícia. Depois da hora do almoço Blanca a buscou para que fossem até a última consulta antes da cirurgia, mas o doutor lhes disse que ela ainda não poderia operar, porque seu organismo ainda estava muito frágil. Mais uma vez que ela foi até o hospital e não voltou para casa tão cedo, foi mandada direto para a internação e a cirurgia adiada em uma semana. Dessa vez sem altas inesperadas, precisavam ter certeza de que seu organismo estaria cem por cento pronto para a cirurgia.
“Hey, como está dorminhoca?” Ucker perguntou para a namorada quando viu que estava acordando novamente. Ela o tinha visto chegar pouco depois de seu internamento e não lembrava de ter adormecido. Ela sorriu quando ele acariciou seu rosto “Como se sente”
“Melhor” ela respondeu aceitando a água que ele lhe ofereceu
“A enfermeira me mandou te entregar um recado” ele disse com um tom de animação “Acho que é da sua amiga secreta” e então lhe entregou um papel dobrado em quatro partes, com uma árvore desenhada na frente. Ela abriu a folha e então leu a mensagem de Clara
Eu já conquistei todas as enfermeiras daqui, elas são muito boazinhas e disseram que vão deixar você me visitar! Tem que ser depois do horário das visitas, mas tudo bem, a noite tudo é mais quieto mesmo né? Te espero hoje, te amo!
A mensagem era escrita por uma caligrafia infantil e tinha um ar misterioso, como se a menina sentisse que estivesse agindo como alguma espiã. As duas estavam no mesmo hospital, mas a menina precisava ficar na área pediátrica. A ala cardíaca, no entanto, ficava no mesmo andar, o que facilitava muito essa suposta visita e então Dulce sentiu algum ânimo voltando ao seu organismo. Foi quando notou que para não perder o ânimo ela precisava ter algum objetivo, isso fazia com que não desanimasse.
“O que diz a mensagem?”
“Segredo, não posso te dizer” ela disse sorrindo e ele a beijou
“Tudo bem, se te fez sorrir eu já estou satisfeito”
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Realmente, as enfermeiras estavam de acordo com a visita inusitada de Dulce à menina. Confidenciaram à ela que na verdade aquilo faria muito bem à pequena, que não estava nada bem. Miranda, a enfermeira do turno noturno, acionou a trava de segurança de seu acesso venoso, para que não precisasse andar empurrando seu suporte para o soro. Deixou muito claro, no entanto, que se demorasse demais, teria que ir até lá para lhe dar a medicação e certificar-se de que se hidrataria.
Quando Dulce entrou no quarto da menina mal a conseguiu reconhecer. O quarto que no outro dia estava animado e claro, estava escuro e parecia menor. Algumas flores ainda enfeitavam o lugar, assim como os enfeites da ala pediátrica, mas tudo parecia muito mais sem vida. A menina parecia menor, deitada naquela cama que agora parecia muito maior que ela, tinha sua cor muito mais branca do que antes, seus lábios secos e seus olhos não guardavam mais tanto brilho. Ela sentou-se ao seu lado e segurou sua mão
“Você veio” a menina disse sorrindo
“Claro, eu não iria perder a oportunidade de fugir um pouco” ela disse fazendo a menina dar risada. “Como você se sente?”
“Um dia mais perto do meu coração” ela respondeu de imediato, como se fosse apenas aquilo que estivesse pensando todo o tempo. Ela respirou um pouco e então disse em tom de confissão “Mas eu queria muito poder dar uma fugida também” Dulce olhou ao seu redor. Daria tudo para poder tirar a menina dali e leva-la a qualquer lugar do mundo, mas não podia. Por isso levantou-se e abriu a cortina de uma das grandes janelas de vidro do quarto “O que você vai fazer?” a menina perguntou curiosa, mas Dulce não respondeu de imediato. Juntou forças e então empurrou a cama da menina com cuidado, juntamente com o suporte de seu soro, para mais perto da janela
“Onde está sua mãe?” ela perguntou enquanto empurrava a cama, com um pouco de medo de ser pega no flagra
“Ela foi até a cafeteria. Ela quis fingir que não sabia que você vinha, mas eu sei que ela foi pra deixar a gente conversar” ela respondeu, fazendo Dulce sentir-se aliviada, não seria pega de surpresa. “Você vai me explicar o que tá fazendo ou não?”
“Tem duas coisas que me fazem sentir em qualquer lugar que eu queira” ela disse terminando de ajeitar a cama como queria e então subiu ao lado da menina, deitando-se com ela “Uma delas são histórias, por isso eu amo tanto escrever, podemos ir para onde nossa mente quiser”
“E a outra?”
“As estrelas. Quando olhamos as estrelas também podemos estar em qualquer lugar no mundo” ela disse e então as duas miraram as estrelas pela janela
“Elas fazem a gente se sentir como formiguinhas” a menina observou
“Depende do jeito que você olha pra elas”
“Como assim?”
“Bom, as estrelas parecem muito pequeninas quando olhamos pra elas, mas são na verdade muito, muito grandes. Maiores do que podemos imaginar... Eu gosto de pensar que às vezes nos sentimos pequenos, mas podemos ser grandes, maiores do que podemos imaginar, como as estrelas são”
“Isso é lindo” Clara disse olhando fixamente para as estrelas e então sentiu o olhar de Dulce sobre ela “O que foi?”
“Nada”
“Pode dizer” ela disse e as duas estavam se encarando, Dulce sorriu e falou com a voz suave
“Você tem muito medo?” a pequena deixou de encará-la e voltou a olhar para as estrelas, considerando a pergunta com sinceridade e com aquela sinceridade ela respondeu
“Não tenho medo de morrer” Dulce então também voltou a mirar as estrelas, na tentativa de não deixar cair nenhuma lágrima “Mas eu tenho medo do tempo... Digo, do tempo que eu vou perder, do que eu não vou poder viver”
“Mas você sabe que vai ter esse tempo, certo? O transplante está quase chegando, falta pouco”
“É... às vezes é como se eu vivesse com o coração batendo no peito de outra pessoa, não é estranho?” ela olhou para Dulce e a ruiva apenas concordou com a cabeça, voltando-se as estrelas novamente a menina fechou os olhos e disse “Então, já que podemos escolher qualquer lugar, para onde vamos fugir?” e as duas fugiram para longe, para uma história que a moça contou para a menina, onde podiam viver outra realidade e terem seus corações em seus próprios peitos.
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