1. Semente
Tudo começou com uma astromélia.
— Hm?
O tom áureo chamava a atenção em meio a tantas rosas escarlates. Era uma flor única, solitária, talvez por isso a curiosidade da princesa fora despertada.
Athanasia achou que alguém poderia ter derrubado a pequena planta em seu jardim, mas ao se aproximar notou que estava errada: ela havia sido plantada — o caule entrando na terra argilosa era a prova disso.
Aquilo era estranho.
Roçou o dedo na pétala mais alta, só para ter certeza de que o que via era real, sentiu a maciez e o úmido do sereno da noite. Era uma flor de verdade.
— Princesa, seu pai está te… o que é isso? — uma voz avulsa soou subitamente, parando ao notar que a herdeira do trono se encontrava agachada, cutucando o broto recém florido.
— Não é estranho, Lucas? — comentou com o rapaz sem desviar os olhos azuis do tom amarelo claro, o dedo agora acariciando de leve a extensão verde do caule firme.
— Que o jardineiro real tenha errado as sementes? Sim.
— Não… não é estranho que ela tenha sobrevivido?
— O quê? Essa astromélia aí? Não são flores fortes e essas coisas? — a princesa não conteve um sorriso, achando graça o pensamento do moreno.
— São sim, mas não é isso que eu estou dizendo. — desviou por um instante os olhos azuis celestes da flor, encarando o rapaz uniformizado, os trajes lhe caindo bem como sempre — Astromélias precisam de terra fofa, macia, o completo oposto do que usam nesse jardim. — explicava sucinta, não querendo se delongar. Voltou a observar a pequena astromélia que estava sob os dedos finos — Ela ter germinado e crescido assim tão forte não parece mágica?
— Magia ou não, seu pai está querendo conversar com você. — os rubis seguiram os movimentos graciosos da loira se levantando, ajeitando a saia do vestido esvoaçante enquanto observava se estava tudo ok — Quer que eu peça pra alguém tirar essa flor daí? Na verdade, eu mesmo posso tirar…
— Não precisa! — falou rápida ao notar que o rapaz estava prestes a estalar os dedos — Deixa ela aí, assim está bom.
Athanasia sorriu, era um sorriso caloroso, com uma pitada de felicidade que Lucas não entendeu bem. É que astromélias significam amizade. E para a princesa aquilo só podia ser um bom sinal, como se o mundo lhe dissesse que bons tempos viriam para as amizades que a herdeira tinha.
— Eu gostei dela.
Como não ficar feliz com aquilo?
— Princesa… ah, mago! — Félix chegou comentando, notando que a menina já estava acompanhada.
— Se for sobre o papai, Lucas já me avisou. — assinalou para o rapaz, os olhos ainda brilhando por conta da surpresa perfumada e germinada — Estava indo agora.
— Sim, sua majestade está… impaciente. — tentou escolher bem as palavras — Devo lhe acompanhar?
— Não precisa. — comentou antes de seguir seu caminho — Até depois, Lucas.
Félix trocou o foco dos olhos brilhantes entre os dois, a princesa já virando o caminho e sumindo entre os arbustos. Parecia contente, os passos saltitantes e a voz clara denunciavam o bom humor, que era comum de se ver na pequena.
O engraçado era que as íris escarlates continham uma tonalidade semelhante a da loira.
Félix tentou não transparecer os pensamentos que voavam longe — talvez estivesse vendo coisas — por isso notou a flor diferente no jardim.
— Hm? Que flor é essa?
— É uma astromélia. — Lucas respondeu também a olhando.
— Oh, nunca tinha ouvido falar.
Ao se aproximar da pequena amarela, sentiu uma sensação agradável, como se o interior se aquecesse ao ser abraçado por alguém especial. Prestou atenção no miolo da flor, notando o ar denso numa cor única, pequenas partículas brilhando de maneira quase imperceptível. Dessa vez não conteve o sorriso, voltando os olhos para o moreno.
— Não sabia que o mago sabia tanto sobre flores.
Lucas virou o rosto ao ouvir as palavras do cavaleiro real.
— Tenho muitas coisas pra fazer na Torre. — murmurou antes de se teleportar pra longe, deixando Félix sozinho ao lado de uma flor feita de pura magia.
Uma muito parecida com a de Lucas.
2. Broto
As coisas mudaram no florescimento de uma azaléia.
Mas não somente por seu significado ambíguo — poderia significar amor, pela natureza ou à alguém —, mas sim pelo simples fato de que a perfumada planta vinha acompanhada de outras mais. Camélias, violas e, durante um passeio noturno, Athanasia notou que também nasciam jasmins em seu jardim. Era como se alguém estivesse lhe dizendo que a acompanharia até tarde da noite, quando ninguém mais estivesse ali — o cheiro floral da jasmim era pra testificar isso. Alguém queria ficar ao lado dela.
Isso deixava Athanasia maluca.
Cada vez que saía para espairecer dava de cara com um broto novo. Quando viu as camélias, acreditou que se tratava apenas de um agrado vindo do jardineiro, os significados eram doces, retratavam respeito, grandeza de alma e reconhecimento. Ela tinha ficado surpresa, mas feliz.
Quando as jasmins brotaram e abriram as pétalas, Athanasia ficou confusa, mas permaneceu acreditando que era obra do responsável pelo jardim. Pensou que ele queria o local mais perfumado e agradável durante as 24h do dia, então se fez de cega para as plantas invasoras.
Então nasceram as violas, mas não qualquer uma, eram as tricolores — eram azuis e amarelas, com pequenas manchas brancas em suas pontas— e isso deixou a garota inquieta. Violas significam amor, mas não qualquer um, era um amor duradouro, desses que quando a gente escuta fica com vontade de viver.
E aquilo não se encaixava tão bem nas ideias que havia formulado. Talvez os jardineiros não soubessem o significado das flores? Ou era proposital? Na verdade, ela estranhava o fato de que eles haviam mexido em suas coisas sem que lhe pedissem permissão… talvez o pai tivesse pedido para que aquilo fosse feito?
A mente se enchia de perguntas todas as noites.
— Tem certeza?
Então decidiu que deveria tirá-las.
— É claro, princesa! — o homem de idade respondeu exasperado, tirando e colocando o chapéu de palha de maneira ansiosa, a pele clara ficando vermelha — Eu nunca seria capaz de cometer tal erro!
A sucessora do trono formou um leve bico, mente matutando a mil. Tinha ido esclarecer as coisas com o jardineiro, mas pelo visto tudo o que conseguira fora se afundar ainda mais nos pensamentos conflitantes.
— Então se você não errou as sementes… — apoiou o queixo com a destra — quem está plantando essas flores aqui?
— Talvez não seja melhor se nós nos desfizermos delas?
Estranhamente, não era aquilo que queria. As pétalas coloridas traziam consigo algo diferente, que não deixava Athanasia se livrar de querer se aproximar ou de voltar a admirá-las.
— Talvez.
Mas era certo deixá-las ali?
— Então chamarei alguns homens para me ajudar a limpar as roseiras amanhã pela manhã.
Poderia não ser a melhor escolha que faria em sua vida — na verdade, parecia uma decisão bem errada —, só que o que ela poderia fazer?
— Não! Deixe-as aí. Só… vamos deixá-las viver o seu ciclo. — o jardineiro deu de ombros, saindo em seguida.
Não era sua culpa se a curiosidade falava mais alto.
Ao voltar a caminhar pela grama verde, podia sentir de leve os perfumes distintos, o local mais bonito que o normal. O sol ajudava, não estava quente, mas brilhava dourado, manchando o céu em um degradê pomposo, os tons de rosa e roxo ocupando a maior parte da extensão celeste. Estava anoitecendo.
— Não deveria estar no palácio, princesa? Daqui a pouco as damas-da-noite irão desabrochar. — a menina ergueu a sobrancelha, calcanhares se virando para o mais alto.
— Damas-da-noite?
— As jasmins menores. — apontou para os arbustos, os botões ainda fechados.
— Ah, sim. — olhou para a direção que o mago sinalizava, silêncio sendo preenchido pelas folhas sendo lambidas pela brisa fresca — Não foi o jardineiro, Lucas.
O sol já se escondia no horizonte e as pontas opostas do céu ganhavam um tom mais escuro, pontos brilhantes começando a aparecer à medida que as flores noturnas se abriam, cheiro adocicado atraente exalando.
Jasmins significam doçura, amabilidade e modéstia. E o perfume que aquelas exalavam meio que diziam exatamente aquilo: podia sentir o acalento e zelo sobre si sempre que passeava no local, especialmente quando estava acompanhada de Lucas.
— Queria saber o responsável por isso tudo.
Athanasia sabia que, quem quer que fosse o jardineiro misterioso, suas palavras estavam sendo perfeitamente expressas. Mesmo que as rosas perdessem lugar e que as flores lhe sussurrassem palavras gentis, não se via capaz de desvendar-se para enxergar a verdade.
— Há uma antiga história que diz que se você fizer um desejo a uma dama-da-noite no momento em que ela exala seu primeiro aroma, ele se torna realidade. — o rapaz comentou como se não quisesse nada — São histórias pra crianças dormirem, é claro, mas já que você gosta dessas coisas, por que não tenta?
Mas era ali que estava o problema.
A princesa sentia uma mescla peculiar de sentimentos: queria tanto saber quem recitava sonetos entre as folhosas flores multicolores, mas ainda sim sentia uma ansiedade dentro de si — a boca do estômago murmurava enquanto as extremidades dos dedos ficavam gelados, tamborilando tudo o que pudessem alcançar.
— Você sabe muito sobre flores, Lucas.
Talvez sentisse tudo aquilo porque já tinha alguma ideia de quem era o responsável por tudo aquilo?
— Você sabe com quem está falando, não é? Saber sobre umas florzinhas não é nada comparado ao meu vasto campo de conhecimento.
Os olhos de jóia brilharam junto a uma risada curta, focavam no rosto sereno do menino, o pequeno sorriso no canto do lábio não passando desapercebido, assim como os pequenos traços de rubor.
— É claro que sei. — levou as mãos para trás, dedos se entrelaçando nas costas conforme sentia o frio na barriga aumentar — Por isso não preciso fazer pedido nenhum.
— O quê? — franziu o cenho, rubis cintilando em dúvida.
Athanasia se conteve a soltar um riso nasal. Não era necessário pedir ajuda para obter respostas do que já sabia.
3. Flor
As coisas terminaram com uma rosa.
Mas daquela vez a flor não aparecera no jardim, até mesmo porque seria incapaz de saber qual rosa era mais nova do que a outra, ou ainda se fora plantada pelo jardineiro real ou não.
A rosa apareceu na mesa de madeira escura, contrastando com o belo tom vermelho sangue que a flor continha.
— Hã?
Só que a mesa não era de Athanasia.
— Quem colocou isso aqui?
Mas sim de Lucas.
— Eu fiz uma pergunta. — dessa vez com um tom mais alto, Lucas reclamou com os demais magos presentes do lado de fora de sua sala. As prateleiras repletas de livros e potes transparentes de vidro pareciam ser os únicos a escutarem os bravejos do mais poderoso no local.
Ah, ele tinha esquecido como aqueles palermas só o ouviam quando se tratava de poções e magia.
— Idiotas. — comentou antes de estalar o dedo, as mesas abarrotadas do lugar sumindo subitamente.
— Mas o quê-... M-mestre Lucas?! — o pequeno alvoroço parou no mesmo instante em que tinha começado.
— Quem foi? — poupou-se de perder saliva com os mais novos, mostrando a rosa para que todos vissem.
Os rostos atônitos se entreolharam, alguns confusos, outros aborrecidos, mas um em específico não demonstrava grande comoção.
— A princesa passou aqui mais cedo. — o rosto tranquilo comentou.
A princesa?
Estranhando o ato da garota, decidiu que o melhor seria vê-la cara a cara. Antes de se teleportar, fez com que as mesas voltassem ao local.
— Eh?! Onde estão os experimentos?! — as vozes distintas se sobressaiam.
— Estavam ruins, então eu os destruí. Refaçam-os. — comentou antes de mudar de lugar.
O aroma fresco denunciava que Athanasia estava justamente onde o mago havia imaginado.
— Nasceram gladíolos.
Ajoelhada, admirava a flor de tom forte, rosa profundo.
— São lindas, não?
Levantou-se, limpando do joelho os resquícios de terra. Voltou os olhos para o amigo, interior tremendo, coração batucando em um ritmo perigosamente frenético.
— Mas quem as plantou foi cruel, você não concorda? — continuava a falar naturalmente, fazendo o mago esquecer o motivo ao qual fora até ali — Você sabe a linguagem das flores, Lucas?
Engoliu em seco inconscientemente.
— A cor dos gladíolos é ambígua, assim como seu significado. Dependendo da quantidade de luz, eles podem parecem rosas ou vermelhos… não é igual ao que elas querem transmitir? Dependendo de quem as entrega, elas podem ser mensageiras da lealdade em uma amizade, ou talvez um profundo desejo amoroso.
Parou um pouco, deixando o sol lhe banhar, as ondas douradas brilhando de modo hipnotizante, os olhos parecendo ainda mais brilhantes do que o comum. Lucas sentia um incômodo dentro de si.
— Só que como eu poderia saber o que essa flor significa se eu não sei quem está me dando, Lucas? — aproximava-se gradativamente do rapaz — Não soa cruel pra você?
Soava?
— Por isso eu te dei essa rosa. — agora mais próxima, tocou de leve nas pétalas delicadas, balançando-as sutilmente, como se as acariciasse.
— Pra eu saber como é cruel receber uma flor sem saber de quem? — tentava se manter focado, mas o calor que sentia nas pontas dos dedos parecia gritar em sua cabeça coisas incoerentes.
Fazia sentido ele querer sentir mais daquele calor por todo seu corpo?
— Não… — olhou no fundo dos olhos da mesma cor que a rosa que ambos seguravam, os pés ficando na pontinha pra ganhar mais altura, lábios tentadoramente próximos — é pra você aprender a falar diretamente o que sente.
Doces.
Não como os que comia quando ia ao palácio ou que sentia ao tomar chá no entardecer, era um doce perfumado — desses que você sente uma vez e fica marcado na sua memória — que sentia nos lábios da princesa.
A flor protegida pelas destras caiu na grama no momento em que Athanasia guiou a mão até o rosto do mais alto, polegar acariciando a bochecha vermelha, o sinal sendo o único a não alterar a cor. Lucas acompanhou o movimento rápido, puxando-a pela cintura só pra sentir o desejo anterior sendo cumprido — queria o calor corporal em si, envolvendo-o de tal forma que esquecesse que um dia já sentira o frio da solidão.
Mas com as palavras não ditas de Athanasia ele já teve toda a certeza que precisava.
Rosas significam eu te amo. E, assim como elas, o amor de Athanasia sempre esteve ali, desde o comecinho.
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