"(...) Com o poder dos yeageristas, Eldia continuou enviando artilharias todos os dias. Com a preocupação de que as pessoas do lado de fora iriam invadir a ilha, Paradis viveu em meio ao medo. O reino se tornou um, e bradava: 'se ganharmos, vivemos! Se perdermos, morreremos! Se não lutarmos, não podemos ganhar! Lute, lute!' Eldia, ou o mundo: até que um deles desapareça, a guerra não acabará."
(Attack on Titan, capítulo 139)
XXX
A rainha Historia e o marido foram assassinados em uma emboscada armada na Capital. Apenas a princesinha, Ymir Reiss, escapou. A facção Yeager, que se auto denominava governante de Paradis, nomeou Ymir a nova representante da ilha. A única filha de Historia, aos oito anos de idade, assumiu o trono de Paradis. A facção Yeager vinha cultivando o imaginário da pobre Ymir para convencê-la de que sua mãe era uma péssima pessoa, e que ela era a verdadeira escolhida da Santa dos eldianos. Dessa maneira, quando a garotinha fosse crescida o bastante para compreender o poder confiado a suas mãos, governaria atendendo aos caprichos de seus guardiões sanguinários.
O assassinato da monarca de Paradis ocorreu seis meses atrás. Há cinco, Paradis cortou tratados de paz com todos os países à exceção de Hizuru, sua fiel aliada. Paradis e Hizuru criaram inimizades com inúmeras nações, sobretudo com a Inglaterra, o primeiro país que os eldianos tentaram invadir depois de usurpar o Médio Oriente.
Newcrest se manteve neutra o quanto pôde. Foi a única a não ameaçar Paradis após as quebras de contrato. Entretanto, comer quieto nem sempre é uma boa ideia. Paradis não a poupou. No mês passado, Hizuru e Paradis atacaram a base naval Pérola, localizada no estado newcrestiano Íavah. A investida inesperada enfureceu o presidente Vladimir. Por sorte, graças à reação rápida do exército newcrestiano, que aprendeu direitinho a lição ensinada na Revolta, Paradis e Hizuru não afundaram mais do que três navios de guerra antes de fugirem com o rabo entre as pernas. O ataque levou Newcrest a, enfim, descer do muro.
Esses foram os principais acontecimentos transcorridos desde a notícia comunicada pela rádio. A população era a mais prejudicada pela guerra recém declarada. Newcrest e os outros países, determinados a unir forças e derrotar Paradis de uma vez por todas, anunciaram que os homens entre dezoito e quarenta e cinco anos deveriam se apresentar ao posto militar de recrutamento mais próximo. A candidatura era facultativa aos garotos maiores de dezesseis e às mulheres, e descartável para os aleijados e os doentes. Aqueles a quem a candidatura era obrigatória que ousassem negá-la sofreriam as consequências da lei da traição.
Nessas circunstâncias, Leona agradecia por ter nascido menina. Mas, mesmo que fosse um garoto, Leona não iria. Preferia fugir das autoridades, a matar e ser morta em prol dos interesses de um bando de adultos egoístas e idiotas que não conseguem viver em paz.
Por essas e outras, Leona desprezava o cartaz que os voluntários do exército colaram na loja de chás, bem ao lado do retrato de Zeke – o desenho não saiu de lá desde o desaparecimento do liberiano. Esse cartaz ilustrava um homem grisalho usando uma fabulosa cartola com as estrelas da bandeira de Newcrest. O velhote, portando uma expressão de severidade ausente, apontava sugestivamente para o observador. Em baixo, lia-se, em vermelho-escuro: EU QUERO VOCÊ PARA O EXÉRCITO NEWCRESTIANO.
— Pouco me importa o que você quer, tiozão. — Leona murmurava ao cartaz sempre que passava por ele, e levantava o nariz com dignidade.
Leona detestava tudo relacionado à guerra e fugia das notícias como o soldado foge do titã. Todavia, as informações chegavam a ela de igual modo, seja por intermédio do senhor Onyankopon, ou pelos clientes sempre dispostos a dar uma palavrinha sobre "aqueles demoniozinhos sem Deus no coração". Leona não sabia o que a aborrecia mais: os belavitenses caluniando sua terra natal, ou o fato de o falatório não ser infundamentado. Com Paradis e Hizuru atacando todo o mundo sem dó nem piedade (e nem inteligência, dado o ataque à Pérola), Leona não os defendia nem em suas reflexões pessoais. Para ela, Paradis acabou no momento em que os yeageristas assassinaram a rainha Historia.
Se a Schoul já perdia alunos sem a guerra, agora, com, perdia-os aos montes. Após o ataque à Pérola, alguns refugiados remanescentes em Belavista resolveram voltar às suas terras, isso sem falar nos órfãos que, não havendo nada a perder, alistaram-se no exército para vingar os familiares que Paradis lhes roubou na Revolta. Esse era o caso de Simon, por exemplo.
Por falar em Simon, acabara de chegar uma carta anunciando o nome do inglês no remetente. A mensagem foi feita de próprio punho. Isso surpreendeu Leona, pois era Verônica quem sempre escrevia.
Leona,
Fui aceito no exército. Os oficiais gostaram bastante de mim, elogiaram o meu condicionamento físico e tudo o mais. Hoje, às cinco da tarde, estarei saindo da cidade para o treinamento militar, que vai ocorrer em Willow Creek. Só voltarei à essa porcaria de Belavista depois que a guerra acabar, imagino.
Às três e meia, eu irei ao centro tirar algumas fotografias. Verônica também vai. Eu gostaria muito que você fosse.
Simon
Leona leu a carta duas vezes, bufando e passando a mão pelo cabelo um tantinho comprido demais para o seu gosto. Apesar de Simon e ela terem as suas diferenças, a enervava ver o irmão de sua melhor amiga se entregar aos velhos briguentos. Se os jovens do mundo inteiro se negasse a lutar, esses países asquerosos não iriam guerrear, pois não haveria trouxas para mandar para a morte. No entanto, é óbvio, Leona jamais diria essas palavras a Simon, que assim como Peter, Hange, o senhor Levi, e tantos outros amigos seus, tem os seus próprios motivos para se alistar no exército.
Guardou a carta de Simon na gaveta. Em seguida, Leona pegou um pacotinho de bala de goma da caixa sobre o balcão e começou a mascar três de uma vez. As balas baratas tinham todas o mesmo sabor indefinido. Leona as chamava de "sabor vermelho", "sabor amarelo", em vez das respectivas frutas as quais as cores deveriam pertencer. Ela mastigou com força. Escutava, pelas vibrações do ouvido interno, os dentes quebrando os cristais de açúcar. O movimento mecânico da mastigação e a dose de dopamina recebida pelo açúcar a acalmaram.
Nesse instante, o sininho da porta da loja anunciou um novo cliente. Leona olhou distraidamente para o salão, e ao ver a figura estranhíssima e suspeita que entrara, parou de mastigar, fazendo uma cômica cara inchada por causa das bochechas redondas de tanto pedaço de bala.
Por um olho, o visitante analisava as prateleiras lotadas de caixas de chá, buscando algo que lhe chamasse a atenção, já o outro olho observava Leona de canto. Esse indivíduo era um homem sujo de terra e de carvão. A camisa esfrangalhada estava em igual estado. O fedor fez Leona trancar a respiração. Ele possuía uma barba cujo comprimento esticava até o peito. O cabelo, do mesmo loiro escuro da barba, estendia-se até quase a cintura do homem. O nariz curvado sobre a barba caracterizava os genes eldianos do sujeito.
O visitante, ao perceber que só havia chás nas prateleiras, desistiu delas e se aproximou do balcão. Suas mãos, duas coisas sujas de dedos tortos, tremiam como se o homem sentisse frio. Bom, pouco importa a nacionalidade eldiana daquela figura; Leona não iria arriscar levar uma facada. Ela, com muito cuidadinho, levou a mão ao taco que o senhor Levi guardava em baixo do balcão, colocado lá com a finalidade de afugentar os eventuais vagabundos e ladrões...
O homem, sem olhar nos olhos de Leona, sorriu com humildade.
— Com licença, você teria alguma moedinha sobrando?
Leona, ao ouvir a voz conhecida, arregalou os olhos e largou o taco. O taco caiu em seu pé. Leona deu um grito de dor que fez o mendigo ganir e pular de susto. Ele se virou para fugir. Ela berrou, atirando o corpo por cima do balcão:
— NÃO! ZEKE, VOLTE!
O mendigo parou. Assombrado, porém curioso, fitou Leona profundamente, sem nenhum rastro de reconhecimento.
— Você sabe o nome do Zeke? — O sujeito apontou para si mesmo.
— Eu sabia! Reconheci a sua voz.
Zeke retornou! Leona, com os olhos marejados de felicidade, deu a volta no balcão para abraçar aquele cliente inusitado. Zeke, entretanto, recuava conforme Leona se aproximava. Baixos gemidos ansiosos e olhadas para a porta indicavam a insegurança e a desconfiança. A garota parou no meio do salão. Chateou-se um pouco por Zeke a repelir, mas esse breve sentimento negativo não ofuscava a felicidade.
— Aonde você esteve, Zeke? Te procuramos por toda a parte. Eu até fiz um desenho. — Indicou o retrato pregado ao lado do cartaz do tiozão.
Zeke, acalmando-se, encarou o desenho por tanto tempo que até dava para pensar que ele era um crítico de arte.
— É o Zeke de cabelo curto! — Concluiu ele, mostrando a arcada dentária incompleta no sorriso.
— Sim, é você! — Confirmou Leona. — Por onde você andou?
— Não sei. — Respondeu Zeke com simplicidade.
— Como assim?
— Não sei. — Insistiu Zeke, balançando a cabeça.
Aquele certamente era Zeke Yeager Duster, o liberiano que tocava saxofone e que ia à escola para orgulhar a avó. Entretanto, ele não se comportava como o Zeke que Leona lembrava. Algo aconteceu no entretempo do desaparecimento. Afobada, avançou um passo:
— Zeke, converse comigo. Cadê o seu saxofone?
O sorriso de Zeke desvaneceu. Ele abaixou a cabeça e começou a embalar o corpo consoante aquela face gentil se contorcia em dor. Leona, que convivia com alguém que já experimentou uma situação de estresse pós-traumático, imediatamente captou que a simples pergunta engatilhou um trauma na cabeça de seu amigo.
— Zeke, esqueça, não precisa responder. — Ela moveu os braços e fez shhh.
Zeke, entretanto, já entrara em colapso. Agarrando a própria cabeça, o garoto sapateava em câmera lenta, levantando uma perna de cada vez. Ele choramingava, repetindo:
— Os mecânicos maus quebraram o saxofone do Zeke. Os mecânicos maus quebraram o saxofone do Zeke. Os mecânicos maus quebraram o saxofone do Zeke. Ai, vovozinha, pobre do Zé, pobre do Zé...
Leona não estava entendendo nada. Tentou se aproximar dele com a mão estendida, mas, novamente, quanto mais perto Leona chegava, mais Zeke se afastava. Ele se contorcia de maneira a esconder a cabeça, temendo que a garota fosse atacá-lo.
— Zeke, calma. Sou eu, a Leona, a sua amiga. — Ela falava pausadamente e em bom tom. — A Leona quer ajudar.
— Leona... Leona... — Murmurava Zeke. — Leona... Leona... amiga do Zeke...
— Isso. Leona... amiga do Zeke...
A eldiana manteve a distância segura e continuou com as palavras curtas e diretas. O garoto pouco a pouco parou de sapatear, e por fim seu choro reduziu-se a uma mera respiração descompassada.
— O Zeke precisa ir ao hospital, ok? — Sugestionava Leona, andando para trás. — A Leona, amiga do Zeke, vai levar o Zeke lá... levar o Zeke ao hospital. Tudo bem?
— Hospital... Zeke está dodói? — Ele perguntou numa voz infantilizada.
— Nós vamos tentar descobrir. — Leona alcançou o balcão. Devagar, ela passou as seguintes instruções: — O Zeke não vai sair daqui. A Leona já volta. A Leona vai avisar pro padrasto dela que o Zeke e a Leona vão no hospital.
— A Leona e o Zeke vão ao hospital. — Reproduziu o liberiano.
Ao chegar nos fundos, Leona pulou na escada e subiu-a de dois em dois degraus, berrando o nome do senhor Levi a cada salto. Quando estava para pôr a mão na maçaneta da porta, o senhor Levi apareceu de repente, abrindo-a antes de Leona. Ele perguntou, numa variação inquieta do seu tom de voz fleumático:
— O que aconteceu, Smith? Pra que todo esse escândalo?
— Eu preciso que o senhor fique na loja pra mim. — Leona já fazia o trajeto inverso. — Eu achei o Zeke.
— Zeke!? O seu amigo?! — Sobressaltou-se o senhor Levi, mancando a toda velocidade atrás de Leona. — Como você o encontrou?
— Ele apareceu na loja do nada. Ele está todo sujo, o senhor vai ver!
O capitão, entretanto, não pôde conhecer o amigo de quem Leona tanto falava: a loja estava vazia. Leona, abobalhada e muda, contemplou o salão desabitado. O senhor Levi, em contrapartida, logo deduziu o que aconteceu. Ele passou o dedo no local em que ficava a caixinha de balas de goma.
— Leona, fomos roubados.
— Hein...? — Exteriorizou Leona, alarmada de um jeito vago e lento. Ela olhou para o local indicado e soltou uma exclamação muda. No ínterim em que fora buscar o senhor Levi, Zeke roubou os doces e fugiu.
Leona não dava a mínima para uma caixa de balas baratas. Voou loja afora. Mirou a esquerda e a direita, tentando adivinhar para qual lado Zeke correu. Ela interrogou os transeuntes, mas os passantes negaram com displicência e pressa – Leona tomava-lhes tempo precioso.
Voltou para a loja com a cabeça girando e um mal-estar crescente no coração – aonde Zeke andava dormindo? Como vinha se alimentando? Pelos trejeitos, pelo fedor e pela magreza, em uma casa quentinha é que o liberiano não morava.
Encontrou o senhor Levi conferindo a caixa registradora. Zeke roubou as balas e possivelmente o dinheiro das vendas. No entanto, Leona não conseguia se zangar com o seu amigo.
— Quanto ele roubou, senhor Levi? — Indagou Leona num gemido afetado.
— Zero dólares.
A resposta surpreendeu Leona.
— Quer dizer que ele só pegou as balas de goma?
O capitão aquiesceu com um triste aceno de cabeça que evidenciava sua opinião compassiva. A garota sentou numa das mesas e, com a mão na bochecha, se pôs a olhar o retrato colado na parede há mais de um ano. O senhor Levi se aproximou, mas não muito, a observando de uma distância respeitosa.
— Vou ter que desenhar um cartaz atualizado, senhor Levi.
— É... — Assentiu o capitão, infeliz. — Ele deve estar bem diferente.
Leona estudou o retrato. Observou os olhos ingênuos, o sorriso gentil, o cabelo curto, o nariz aquilino, o queixo fino. Ele estava tão diferente que Leona não o teria reconhecido senão pela voz. Nunca lhe ocorreu que Zeke teria mudado nesses meses. Ela se perguntou, quantas vezes deve ter passado por Zeke nas ruas, nas esquinas?
Pensou sobre a tarde no bar. Não recordava a música que Zeke tocava no palco, mas lembrava claramente da paixão cadenciada em cada nota. Zeke (o barbudo de hoje, não o garoto de outrora) dissera algo sobre mecânicos maus...
Leona soltou um suspiro chocado e desanimado de realização. Haviam quatro mecânicos no bar; ela recordava-se dos olhares maliciosos e maldosos que eles davam a Zeke. Então, foi isso o que aconteceu: aqueles homens preconceituosos, impulsionados pela superioridade étnica que julgavam ter, decidiram causar mal a um eldiano. E por que? Porque Zeke era bom no saxofone. Zeke era um eldiano, ele não tinha o direito de ser bom em alguma coisa que não fosse em se transformar em titã.
Chateada, ela deitou a cabeça ressentida entre os braços. Desvendou o mistério tal qual os detetives de Conan Doyle e de Agatha Christie, só que aquilo era vida real. Leona não podia retornar para a página em que os mecânicos apareciam e rasga-la.
— No que está pensando? — Indagou o senhor Levi.
— No Zeke. Acho que sei o que houve. No bar, uns homens da plateia olhavam estranho pra ele. Eu vi, mas não pensei que... — Leona engasgou-se. Franzindo as sobrancelhas e rosnando de raiva, ela bateu o punho na mesa. — Se ao menos o Peter não estivesse lá para me distrair...
— Não se culpe. — Aconselhou o monocórdio senhor Levi.
— Que droga. — Leona se levantou e arrancou o desenho da parede. O olhou por um longo momento, se questionando se jogava a ilustração fora. Por fim, decidiu guarda-la – não tinha coragem de destruir Zeke nem em formato de papel.
Enquanto isso, o senhor Levi a analisava com seus olhos cinzentos e inexpressivos. Querendo desvirtuar Leona do assunto arrasador, ele falou em entonação de ordem, contudo com ternura sutil:
— O seu cabelo está grande.
— Eu sei. — Leona passou a mão pela nuca. As mechas passando do pescoço a irritavam.
O senhor Levi começou a mancar para o apartamento. No meio do caminho, ele parou e olhou Leona por cima do ombro, reforçando a ordem dada. Leona, compreendendo, baixou a cortina da loja e pendurou a plaquinha de "volto logo".
XXX
No apartamento, Leona pegou uma cadeira da cozinha e a pôs na sala, propositalmente longe do tapete para o cabelo cortado não cair nele – é um inferno varrer tapetes. Levi apanhava, no banheiro, a tesoura de cortar cabelo, uma toalha, um pente, os seus óculos e uma vasilha de água. Ele cortava o cabelo de Leona desde que passaram a morar juntos, embora o capitão não permitisse a ela fazer o mesmo consigo – Levi tinha certeza de que Leona o deixaria calvo.
— Ainda não me acostumei a ver o senhor de óculos. — Riu Leona. O capitão usava os óculos de lente retangular há dois meses, quando a presbiopia surgiu.
— Nem eu a usar.
O capitão pôs a toalha nos ombros de Leona e avaliou o estado do cabelo da enteada. Ele deixou as mechas deslizarem pela mão que não tinha os cinco dedos (a outra segurava a tesoura). O cabelo de Leona era dourado e sedoso como o de Erwin. Cortar o cabelo dela sempre lhe dava déjà-vus.
— Ei, posso fazer o corte do seu pai? — Pediu ele.
— Huh? — Murmurou Leona, arrancada de seus devaneios. — Pode ser, senhor Levi.
— Vou pegar a navalha.
O capitão retornou com uma navalha novinha em folha, poupando Leona da que ele usava para fazer a barba. Nesse ínterim, Leona trouxe outra cadeira e pôs a vasilha de água sobre ela. Curvada, Leona molhava o cabelo na água. Ela sentou reta quando o capitão voltou. Levi pôs a navalha e a tesoura sobre a cadeira nova e levou a vasilha para trás de Leona, a instruindo a inclinar a nuca até molhar a parte de trás da cabeça.
— Me passa a tesoura.
Leona obedeceu. Levi, então, iniciou a relaxante tarefa de cortar o cabelo dourado. Ele cortou além do excesso; já que ia fazer o corte de Erwin, o cabelo de Leona precisava estar curtíssimo. Era engraçado como ele recordava o procedimento com clareza, como se a mecânica gestual estivesse gravada em seu DNA.
Enquanto o veterano trabalhava, a garota refletia sobre a humanidade desalmada. Zeke, um garoto que nunca fez mal a uma mosca, fora atacado simplesmente porque sim. Leona, suspirando, refletiu que a guerra entre Paradis e o resto do mundo nada mais era do que o reflexo do ódio das pessoas, desde o nutrido pelo mais pobre até o dos ricos políticos. O sentimento extremista e nocivo transpassa barreiras socioeconômicas, culturais e raciais.
— Coitado do Zeke. — Pensou Leona em voz alta. — Essa história de Paradis é só uma guerra formalizada. Olha só o que fizeram com o Zeke, só por ele ser eldiano. Nós já vivíamos em guerra, e nem sabíamos.
— Eu sei que é revoltante. Me passa a navalha, por favor. — O senhor Levi estendeu a mão. — Infelizmente, temos que estar sempre atentos a tudo que acontece ao nosso redor, e até ao que acontece longe dos nossos olhos e ouvidos. Mas, Leona, em Paradis não estaríamos mais seguros. — O senhor Levi aparava a nuca de Leona. — Paradis também tem os seus problemas. Todo lugar tem, na verdade. As pessoas arrumam motivos da puta que o pariu para pegarem ódio da sua cara, e razões do inferno para te fazerem mal. Se nós vivêssemos em Paradis, continuaríamos de mãos atadas. Você bem sabe que as pessoas de lá nem podem falar o que pensam sem que um yeagerista escute.
— Continuo irritada. — Zeke não fora atacado por ser contra Eren Yeager (um motivo derivado de ação e escolha), mas sim por ser um eldiano, algo que o garoto não escolheu. Ela cuspiu, indignada: — E também, para ser honesta, me assusto quando percebo que poderia ter sido eu. Se eu tivesse bebido até perder as estribeiras, ou se eu não tivesse ligado para o senhor me buscar... eu poderia estar roubando com o Zeke agora. — Leona fez uma pausa melancólica, na qual ela respirou fundo e abaixou o olhar. Quando Levi estava prestes a responder, a garota complementou: — Ah, senhor Levi, eu queria tanto não ter nascido...
As palavras feriram Levi mais do que qualquer surra e do que qualquer xingamento. Ele deu a volta para ficar na frente de Leona. A garota percebeu a sutil mudança infeliz na face do capitão, e Levi viu a dúvida curiosa na dela. Com a tesoura em mãos, Levi começou a cortar a franja pela fronte.
— Leona, nunca mais diga isso. Pelo menos, não na minha frente, tudo bem? — Exigiu ele com a voz sóbria e resignada de alguém decepcionado.
— Por quê? — Leona arregalou os olhos, confusa.
— Porque é doloroso. — Admitiu ele, firme e rígido, embora não zangado. — Quando você nasceu, sua mãe e eu já nos conhecíamos há quinze anos. Isso é, literalmente, a idade que você tem agora. Eu acompanhei a gravidez da sua mãe do início ao fim, e também assisti o seu crescimento. Leona, se você soubesse tudo o que a sua mãe passou para ter você, e para te dar a vida que você tanto gostaria de ter de volta, você não estaria dizendo que era melhor não ter nascido. — Ele terminou de cortar a franja. Seus olhos encontraram os de Leona sem o estorvo do cabelo. — Não é justo com a sua mãe... — O capitão ponderou um pouco. Resolveu continuar: — E nem comigo. Eu sei que eu não fui, e nem sou, um padrasto maravilhoso, mas fiz e continuo fazendo o possível para ajudar a sua mãe a criar você.
O discurso atingiu Leona tanto quanto o dela o machucou. Ela desviou o olhar e se encolheu. No entanto, uma coisa que o senhor Levi disse era mais certa do que as outras: se Leona soubesse as desventuras enfrentadas por Hange, ela não diria baboseiras. Por conseguinte, Leona ergueu o olhar determinado e rogou:
— Então, por que o senhor não me conta?
— Contar?
— É. — Leona assentiu. — Não precisa ser hoje, até porque tenho que terminar o meu expediente e dar tchau para o Simon. Porém, assim que eu estiver livre, quero escutar essas histórias da minha mãe.
Os olhos do senhor Levi brilharam como no dia em que treinaram luta pela primeira vez.
— É uma ideia ótima, Smith. — Concordou ele. O capitão tentava pentear a franja de Leona. — Ah... por que a sua franja nunca fica no lugar?
Leona sorria. Estava com vontade de furar com Simon somente para escutar as histórias de sua mãe. E também queria ouvir as já conhecidas - pois as escutaria pelo ponto de vista de uma pessoa adulta, e não pelo de uma criancinha que pouco entendia a complexidade do mundo. Não querendo voltar para a loja sem uma provinha da memória do capitão, ela perguntou:
— Senhor Levi, quais foram as últimas palavras da minha mãe?
O capitão despejava a vasilha de água pela janela dos fundos. Por cima do ombro, Levi olhou aquele rosto que era a junção dos de seus dois melhores amigos. Recordou a risada provocadora que Hange deu logo depois de ele entoar o lema da Tropa de Exploração ("é a primeira vez que escuto você dizer isso, baixinho").
— A última coisa que eu ouvi foi a risada dela.
— Heh. — Leona balançou a cabeça. — É a cara da minha mãe...
Depois disso, Leona foi até a porta dos fundos para regressar ao trabalho. O senhor Levi permaneceu para varrer os cabelos. Meio curvado, o capitão varria os tufos para a pazinha de cabo alto. Leona, parada no batente, observou aquele homem ranzinza que conhecia desde a primeira infância. Ele estava tão velhinho... cabelos brancos nasciam em meio aos pretos, ele precisava usar óculos para enxergar de perto, não mais aguentava ficar tanto tempo em pé, e se confundia quando tinha muitas coisas para fazer. O malvado senhor Levi, sempre dando ordens, sempre de cara feia, sempre falando palavrões..., mas que lhe fazia mingaus, que lhe deu um emprego, que a esperava voltar para casa, e que cuidou dela quando Hange partiu.
Uma dose de amor inundou o coração de Leona. Emocionada, a garota avançou abraçando o senhor Levi pela lateral do corpo. Como era treze centímetros mais alta, ela deitou a cabeça sobre a cabeleira bicolor do velho veterano. O senhor Levi não se moveu. Leona deu-lhe um beijo na bochecha.
— Senhor Levi, obrigada por cortar o meu cabelo.
Poucas vezes Leona viu o senhor Levi sorrir, e agora presenciava um desses raros momentos. De bochechas coradas, o capitão deu um tênue sorriso que não mostrava os dentes; o mais bonito desse sorriso é que ele não se limitava à boca do capitão: Levi também sorria com os olhos. Ele deu dois tapinhas no ombro da enteada.
— É um prazer, Smith. Você é uma boa garota.
Leona se dirigiu para a porta. Eles trocaram um olhar de despedida antes de a adolescente sair, e naquele olhar havia mais "eu te amos" do que qualquer um deles poderia dizer em voz alta.
XXX
Desde a raspagem forçada adquirida no orfanato, o corte de cabelo feito pelo senhor Levi era um dos penteados mais curtos que Leona já usara. A nuca congelada lhe dava arrepios. A sensação não era desagradável – Leona gostava do ventinho. Montada na bicicleta, ela pedalou para o estúdio de fotografia do centro. Verônica e Simon já estavam lá, aguardando por ela.
Leona boquiabriu-se ao encontrar o inglês. Todo pomposo, Simon se pavoneava dentro do uniforme militar feito sob medida. A cor da roupa era uma tonalidade de verde muito parecida com o verde musgo escuro do uniforme da Tropa de Exploração. As calças eram da mesma cor da jaqueta. As botas, brilhando de novas, iam até as panturrilhas do cadete. Um chapéu militar de aba preta finalizava o vestuário.
A roupa combinava com a forçada austeridade que Simon forjava. Leona não deixava de achá-lo engraçado, porém não podia negar que o uniforme lhe caia como uma luva.
— Nossa, Simon. — Leona desceu da bicicleta. — Você está muito bonito.
— Você acha? — Simon se empertigou.
— Acho. — Então, Leona reparou em Verônica. A irmã de Simon não precisava de esforço para ficar bonita, mas ela estava mais linda do que o normal naquele vestido branco. — Oi, Verônica.
— Olá, Leona. Uau, você cortou o cabelo? Eu gostei.
— Obrigada. — Leona corou.
Simon puxou um relógio do bolso frontal da jaqueta. Ele torceu a boca com um desgosto que manifestava certa preocupação.
— Vamos entrando. Eu queria esperar o meu antigo patrão, mas vou me atrasar se ficarmos mais tempo aqui.
Os três passaram pela porta de vidro do estúdio de fotografia. Como Simon marcou horário, a secretária já esperava por eles. Ela pediu que o contratante assinasse o livro dos registros. Simon, querendo desenhar letras perfeitas, levou longos vinte segundos para assinar o livro.
A sala do fotógrafo era um cômodo de tamanho médio e com poucos móveis. Havia um pano cinza pregado à parede de maneira a deixar o tecido sem dobras. Quatro holofotes perfeitamente posicionados garantiam a iluminação da área do pano. No momento em que entraram, o fotógrafo arrumava a câmera de tripé.
— Boa tarde. — Ao vislumbrar a roupa de soldado, o fotógrafo deu um largo sorriso. — Outro soldado! Já fotografei uns quantos hoje. Estão de saída, presumo?
— Sim. — Aquiesceu Simon, cheio de dignidade. — O nosso trem parte às cinco e meia.
— Minha nossa! — Exclamou o fotógrafo aflito, e se posicionou atrás da câmera fotográfica. Leona reparou que ele tinha uma deformação na mão esquerda - para o exército, isso configurava aleijão. — Vamos logo. Se ajeitem na frente do pano cinza, por favor. Num instantinho fotografo vocês, e o amigo soldado pode ir pegar o trem.
Simon quis tirar fotos sozinho primeiro. Ele pediu um segundo para se ajeitar. Simon arrumou o chapéu e deu tapinhas no uniforme. Ele endireitou a postura, ergueu a cabeça, colocou as mãos atrás das costas e esboçou o semblante mais sóbrio e íntegro que conseguia. O fotógrafo bateu as fotos. Depois, Simon tirou uma de busto, agora sem chapéu e com os ombros meio virados.
Leona e Verônica aguardavam atrás do fotógrafo. Apesar da seriedade do rapaz, era claro o quanto Simon amava aquilo. O brilho em seu olhar juvenil quase convencia Leona de que a guerra era empolgante.
Aquelas eram as suas últimas horas com Simon. Embora ele não fosse uma flor lá muito cheirosa, continuava sendo uma parte importante do seu jardim – ele era o irmão de sua melhor amiga, o amigo que lhe ajudou a distribuir cartazes pela cidade, e o espertalhão que a ensinou a viajar de bonde de graça. Leona decidiu que não contaria aos ingleses sobre Zeke. Não hoje, pelo menos. Hoje, o dia era todo de Simon.
— Vem, Nica. — Ele chamou a irmã com um sorriso entusiasmado.
— Ai, eu vou enfeiar a sua fotografia! — Riu Verônica, pondo as mãos no rosto.
— Eu sei que você é feiosa, mas quero que apareça mesmo assim.
Ele deu um abraço na irmã e a fez retirar as mãos do rosto. Verônica socou o peito do irmão e disse a ele que os homens da família eram ainda mais feios do que as mulheres. Simon respondeu que ela não devia ser tão invejosa. Depois das brincadeiras, Simon e Verônica posaram para a foto.
Simon pôs as mãos atrás da cintura, retomando a sua pose de soldado bruto. Enquanto isso, Verônica, mostrando os dentes num sorriso leve, uniu as mãos na frente do corpo. Os corpos se encostavam, mas não muito. A fotografia passava a mensagem que Simon queria: somos próximos, entretanto o meu dever é mais importante.
Terminadas as fotos dos irmãos, era a vez de Leona criar um registro de sua vida com Simon. A inglesa e a eldiana revezaram, e assim Leona postou-se ao lado de Simon. Perto dele, Leona reparava que Simon se perfumou para a viagem. Ela queria passar um braço ao redor dele, mas o inglês não queria uma fotografia íntima. Sem ter aonde colocar as mãos, Leona as pôs nos bolsos das calças, e deu um sorriso fino para a câmera. O fotógrafo falou "digam xis".
— Ei, vamos tirar uma de nós três. — Determinou Simon.
— Eu já ia sugerir isso! — Consentiu Verônica, empolgada.
Tendo em vista que Leona se localizava à esquerda de Simon, a inglesa se posicionou à direita do irmão e adotou a postura formal de antes. Leona revirou os olhos. Decidindo acabar com aquela baboseira solene, Leona intrometeu-se entre os dois; com um braço abraçou o pescoço de Verônica, e com o outro o de Simon. O rapaz era muito mais alto do que a eldiana, de maneira que Leona ficou bamba, meio pendurada em Simon e meio apoiada em Verônica.
— Ei, que isso! — Reclamou Simon. — Você derrubou o meu chapéu.
— Ah, gente, vamos tirar uma foto juntinhos. — Leona apertou os rostos dos ingleses no seu, um em cada bochecha. — Moço, pode bater a foto. Essa aqui eu vou pagar.
— Haha! — Verônica deu um sorriso largo – exatamente o que Leona queria ver. — Você é tão besta, Leona!
— Bem, já que você vai pagar essa foto...
Simon inflou as bochechas e envesgou os olhos para a câmera. Leona, por sua vez, piscou e mostrou a língua. Verônica pôs um dedo no nariz de forma a mostrar as narinas, e fez um bico de peixe com os lábios.
O fotógrafo bateu três fotos. No exato segundo em que se ouviu o suave tranco da lente da câmera, um homem constrangido, com a pele vermelha de tanto trabalhar no sol, apareceu trazendo o chapéu respeitosamente na mão. Ao perceber a presença do homem, Simon se aprumou apressadamente, fazendo Leona perder o equilíbrio e quase cair sobre Verônica. Simon apanhou o chapéu militar do chão e fez uma mesura ao recém-chegado.
— Senhor Johnson, você veio! — Simon se curvou docilmente. — Obrigado, significa muito pra mim.
O senhor Johnson era o antigo patrão de Simon, o construtor civil chefe de quem Simon tornou-se próximo a ponto de ser nomeado o seu braço direito. O senhor Johnson era um homem simples fora das obras, mas dentro delas era um patrão durão. Entretanto, para Simon, ele foi a melhor referência paterna que tivera desde a Revolta.
— Para que toda essa etiqueta comigo, meu rapaz? — O senhor Johnson deu um abraço caloroso em Simon e encheu as costas dele de tabefes nada gentis. Em seu canto, Leona piscou a cada "paf paf". — Você vai fazer falta nas obras, meu querido. — O senhor Johnson pegou o rosto de Simon com as duas mãos e estapeou as bochechas dele. — Volte para me visitar, tudo bem? Você sabe aonde eu moro.
— Eu vou, sim senhor! — Prometeu Simon, radiante.
Os dois homens posaram na frente do fundo cinza, Simon adotando sua postura imponente, e Johnson mostrando o polegar para a câmera e dando o sorriso estúpido de um pai orgulhoso. Leona e Verônica, contagiadas pela felicidade de Simon, se entreolharam e sorriram uma para a outra.
No término da sessão de fotos, Simon apresentou Johnson a Leona. O construtor civil já conhecia Verônica. Os quatro esperaram as fotos, as quais foram entregues meia hora mais tarde. Leona, a fim de conservar as suas o melhor possível durante a viagem para casa, comprou uma pastinha do mostruário da lojinha do estúdio. Ela recebeu três fotos – uma de Simon sozinho (Leona escolheu a de busto, pois dava de ver melhor o rosto dele), uma sua com ele, e a que os três tiraram juntos.
O senhor Johnson, após pegar suas fotos, avisou que precisava voltar para o trabalho e pediu desculpas por não poder acompanha-los até a estação de trem. Ele e Simon compartilharam outro daqueles abraços masculinos banhados em pancadaria, e a partir daí os adolescentes ficaram sozinhos.
Leona correu para desamarrar a bicicleta do bicicletário, pois Simon já escapulia a trote.
— Vamos, preciso pegar a minha mala no orfanato.
— Eu avisei pra você trazer a mala, Simon. — Censurou-o Verônica.
Zarparam para a linha do bonde. Explicaram ao motorneiro que estavam indo pegar o trem para a base de treinamento militar, e portanto o motorneiro permitiu que Leona entrasse no bonde de bicicleta e tudo. Em um instantinho chegaram ao orfanato e Simon apanhou a mala já pronta no quarto. Em seguida, pegaram o bondão. Para o prazer dos três, especialmente para o de Simon, o bondão estava lotado de soldados e seus familiares. Simon não estava tão atrasado quanto pensava.
O bondão os largou na estação ferroviária. A comprida locomotiva preta de vagões vermelhos vaporava e apitava. A plataforma achava-se lotada de irmãs, mães, esposas, pais, avôs, avós, e até mesmo filhos, dos homens convocados para a guerra. Haviam soldadas mulheres também, mas pouquíssimas comparado a quantidade de homens – em Paradis, como a população total da ilha era pequena e o exército estava sempre com soldados em falta, o número de meninas e meninos interessados era pau a pau.
Aqueles que permaneceriam em Belavista se despediam de seus respectivos viajantes com abraços e beijos. Os mais velhos (familiares e soldados) não estavam nada alegres com a partida - recordavam com clareza os horrores da Revolta e suas consequências, e afligia-os a ideia de enfrentar o inferno de novo.
Porém, era inegável o sentimento de supremacia compartilhado entre os soldados de dezesseis a vinte e dois anos. Não apenas porque eles não lembravam tão bem do poderio de Eldia, como também pela coragem natural que acomete qualquer pessoa que vai aprender a manejar uma arma. Além disso, já era de conhecimento comum a extinção dos titãs, e a não ser pelos céticos, os soldados jovens estavam animados para lutar com paradisianos de igual para igual.
— Até mais tarde, irmãozão. Vou sentir saudades.
Verônica deu um último abraço apertado em seu irmão. Simon, tentando não chorar, envolveu Verônica com todo o carinho que um irmão mais velho tem pela irmãzinha. Ele depositou um afetuoso beijo na testa dela.
— Logo estarei de volta, Nica.
O apito da locomotiva chamando os soldados sobrepôs a voz de Simon, mas Verônica conseguiu escutá-lo.
A eldiana deixou a bicicleta descansando. Assim que Verônica soltou o irmão, Leona abraçou Simon. O inglês alisou as costas dela. Com discrição, ele aproximou a boca da orelha de Leona – a respiração dele lhe causou cócegas – e sussurrou:
— Cuida da minha irmãzinha, tá?
Leona estremeceu não só pelo receio de que houvesse duplo sentido no pedido (a dúvida foi desmentida quando Leona constatou o olhar inocente de Simon), como também por ser a primeira vez que via Simon falar da irmã com tanto amor melancólico.
— Pode deixar, Simon. — Para reforçar a sua afirmativa, ela apertou a mão de Simon. Ah, Leona iria cuidar de Verônica. Para sempre! — Boa sorte no exército. Escreva para mim, ok?
Os soldados caminhavam para a locomotiva. Simon, querendo viajar com os seus colegas de esquadrão e amigos da mesma idade, saltou no terceiro vagão, que era o dos recrutas mais jovens. As janelas estavam lotadas de garotos (e algumas poucas meninas) executando os mais diversos gestos de despedida aos familiares. Verônica e Leona se mantiveram no mesmo lugar, esperando o trem partir. Quando o trambolho de aço começou a fumegar e a mover as rodas preguiçosamente, Simon apareceu pendurado na quinta janela, amontoado com mais três homens.
— TCHAU, MENINAS, TCHAU! — Gritava Simon, acenando compulsivamente e jogando beijos.
— TCHAU, SIMON! JÁ ESTOU COM SAUDADES! — Gritava Verônica.
A multidão seguia os vagões. Os aleijados, as mulheres, e os homens saudáveis com mais de quarenta e cinco anos ou menos de dezoito, davam suas últimas palavras de amor aos convocados. Verônica, tomada de emoção, soluçava conforme a locomotiva ganhava velocidade. Verônica apertou o passo e correu ao lado do trem, sempre com o nome de Simon na boca e promessas de que esperaria por ele. Leona, correndo e empurrando a bicicleta ao mesmo tempo, perseguiu Verônica até o fim da estação, e lá elas ficaram, abanando para o trem que partia.
Grossas lágrimas escorriam pelas bochechas da inglesa. O sorriso que Verônica vinha mostrando desbotou. Dentre os vários sentimentos que a acometiam no momento, achava-se a simples tristeza de não ter mais o irmão consigo.
— Verônica... — Leona deu um puxãozinho no braço da amiga. Quando Verônica a encarou, Leona inclinou a cabeça para os pedais da bicicleta e ofereceu um sorriso consolador. — Vamos dar uma volta?
Verônica fungou e limpou os olhos. Ela sorriu pequeno e respondeu, baixinho:
— Pode ser.
Atravessando a massa de parentes e amigos deprimidos, Leona e Verônica saíram da estação. No lado de fora, Leona montou na bicicleta e Verônica subiu nos pedais traseiros.
Nenhuma delas disse nada no trajeto. De tempos em tempos, Leona escutava Verônica choramingar atrás de suas costas, mas nada comentou, achando melhor deixá-la com os seus próprios pensamentos. A princípio, Leona pedalou à esmo. Não convidara Verônica com um destino específico, o fizera para ajudar a desvirtuar a cabeça da amiga do egresso de Simon.
Quando se deu por conta, se afastavam dos arredores da cidade em direção ao litoral de Belavista. Leona aceitou o rumo sugerido pelo inconsciente, e aumentou o ritmo da pedalada. Em trinta minutos, as meninas enxergavam as árvores que cercavam a orla da praia.
A areia branca e o mar revelaram-se para elas. Como era outono e passava das cinco, a praia encontrava-se quase vazia. Salvo os adolescentes jogando vôlei quilômetros adiante (era possível enxergar a silhueta dos jogadores) e alguns idosos que caminhavam na areia, a praia era toda delas.
— A praia? — Verônica arqueou a sobrancelha. — Se eu soubesse, teria trazido o meu maiô. — Com uma risada irônica, Verônica removeu os sapatos e atravessou as árvores para chegar na areia.
— Eu nem estava pensando em vir aqui. — Riu Leona, também retirando os sapatos. — Ei, quer colocar os seus sapatos na cestinha?
Verônica aceitou a proposta. Leona guardou os pares na cestinha, juntamente com a pasta de fotos. Empurrando a bicicleta, ela pisou na areia branca e macia. Verônica admirava os arredores e respirava o cheiro salgado da brisa do mar. A inglesa andou até o meio da praia, nem perto ao ponto de ser atingida pela água, e nem tão longe que não pudesse ouvir a música das ondas tranquilas.
Leona apoiou a bicicleta no pezinho e sentou na areia. Abraçada aos próprios joelhos, ela observou Verônica catar uma concha. A concha era de um amarelo pouco mais escuro do que a cor da areia, seu formato assemelhava-se ao cone característico das casas dos moluscos marítimos univalves. Jogando a concha de uma mão para outra, Verônica se sentou à direita de Leona, com as pernas dobradas em posição de lótus.
— Que concha bonita. — Comentou Leona. — Ela já foi a casa de uma lesma do mar...
— Que nojo! — Exclamou Verônica.
As duas compartilharam uma risada. Os gritos do jogo de vôlei chegavam abafados a elas. Não era possível entender o que os garotos e/ou garotas diziam. Se bem que, nenhuma delas estava interessada nos jogadores. Leona e Verônica concentravam-se no mar que se estendia a frente, por milhões e milhões de quilômetros, até se transformar numa linha azul.
— Em breve, o meu irmão vai estar do outro lado desse mar. — Divagou Verônica. Ela apoiou os braços atrás das costas e se esticou.
— Ele vai voltar logo, Verônica. — Encorajou Leona, abandonando a paisagem do mar para dar sua total atenção a Verônica.
— Ah, eu espero... — Ela voltou a se sentar. — Eu sei que ele é um chato, mas é o meu irmão.
— Eu sei. — Leona deu uma risada nasal. — Também estou triste que ele se foi.
O sol começava a se pôr. Na parte do céu em que já era noite, a lua as cumprimentava e as estrelas acordavam. Hipnotizadas pelo pôr do sol, elas fizeram silêncio. Leona, sentindo a gostosa brisa fria na nuca raspada, deu um suspiro de deleite e fechou os olhos. Ela os abriu quando Verônica a chamou:
— Leona.
— Huh?
— Obrigada por ter vindo ver o Simon e por estar comigo agora. — Agredeceu ela, sem sorrir, fitando o mar, e deitando a cabeça no ombro de Leona. — Você é muito importante para mim.
Leona não esperava nem a súbita declaração de amizade e nem a proximidade espontânea. Engolindo em seco, ela petrificou. O seu coraçãozinho palpitava de desassossego e seu estômago borbulhava. Ameaçada pelo medo sincero de que Verônica escutasse o tum-tum-tum acelerado, Leona se afastou dela. A inglesa, franzindo o cenho, perguntou com estranheza:
— Você está bem?
Preparou uma mentira sobre o peso de Verônica tê-la machucado, entretanto, aqueles lindos olhos escuros desarmaram as habilidades vulpinas de Leona. Ao menos assim Leona interpretou, tendo em vista que a mentira não saiu. Ela gaguejou duas vezes até desistir. É melhor aceitar, o momento que Leona mais temia chegou: o dia em que o seu amor por Verônica cansou das entrelinhas.
— Eu...
Sem jeito e com ausência de eloquência, Leona desviou o olhar e tentou balbuciar a confissão. Verônica, perdida, a fitava com preocupação. Deveria Leona beijar Verônica de surpresa, como Peter fizera com ela? Não, Leona odiou ser beijada de surpresa. Ela não daria esse desprazer à Verônica. Assim sendo, Leona questionou, abestalhada e cheia de incertezas:
— Er... eu posso beijar você?
Verônica recuou a cabeça e arregalou os olhos. Parabéns, Leona, a eldiana gemeu, virou a cara e pôs a mão sobre os olhos. Sua pele estava vermelha até o topo das orelhas. Por favor, Santinha, me mate agora.
— Me beijar? — Verônica olhou para a esquerda e para a direita duas vezes, como se receasse a presença de um espião. — Por que você quer me beijar?
— Porque eu amo você. — Assumiu Leona, por fim, removendo a mão do rosto e, mesmo morta de vergonha, encarando Verônica diretamente. Ignorando a negativa perturbação na face da inglesa, aumentou a voz: — Eu sei que nós duas somos mulheres, mas eu não consigo evitar. Eu amo você!
A inglesa tremia da cabeça aos pés. Feito um animalzinho fugindo dos caçadores, Verônica ocultou o rosto amedrontado no peito da eldiana, igual fez na noite em que dormiram juntas. Leona, sem compreender, começou a matracar. Verônica a interrompeu em voz baixa e estarrecida:
— Leona, eu também quero beijar você. Só que, eu tenho tanto medo de gostar...
— Medo de gostar? — Repetiu Leona, chocada porém com inevitáveis resquícios de felicidade.
— Fala baixo, por favor. — Resmungou Verônica, apertando o braço de Leona.
— Ai! — Ela reclamou do apertão. — Medo de gostar? — Sussurrou.
— É... — Verônica moveu o rosto. — Como você mesma disse, nós duas somos mulheres... isso não é natural. — Verônica sacudiu a cabeça como quem tenta afastar um mau pensamento. — Ai, Leona, se você soubesse quantas vezes eu tentei tirar isso de mim... quantas vezes eu rezei para parar de ver você com pecado... mas, eu não consigo! Eu não consigo deixar você.
— Pecado? — Abismou-se Leona, confusa e um tanto chateada. — Você tem medo de me amar?
— É claro. — Afirmou Verônica, impacientando-se. — Não é certo duas garotas se amarem com amor de homem e mulher. Você nunca leu a bíblia?
A bíblia de Paradis não era a mesma bíblia da Inglaterra. Porém, a Santa dos paradisianos condenava relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. "A humanidade está em extinção e não se deve desperdiçar as sementes em solo infértil", asseverava um trecho do livro da Santa. Entretanto, pelo menos no caso da sua bíblia, a lei era baseada numa falácia.
— E daí, Verônica? — Leona se impôs. — Nem tudo o que diz nos livros sagrados é verdade. Além disso, não é um livro idiota que vai ditar a nossa vida. Se assim fosse, não estaríamos entrando noutra guerra.
Assustada e abalada, a inglesa retraída se afastou de Leona. A eldiana, todavia, não desistiria tão fácil. Se Verônica não a amasse, Leona respeitaria os limites e se contentaria com a amizade. Entretanto, não era esse o caso. Verônica a amava, mas tinha medo da fúria de Deus e das pessoas que creem nos livros sagrados.
— Verônica, eu sei que somos malvistas aos olhos de algumas pessoas, e você também sabe disso. — Essa frase era uma clara referência à raça e etnia de ambas. — Mas, eu já aceitei que não posso fugir de quem eu sou, e nem vou. Eu te convido a fazer o mesmo. — Verônica se recusava a olhá-la nos olhos. Leona, então, segurou o queixo da inglesa com uma mão, e, com gentileza, a fez encará-la. Com muita seriedade e confiança, declarou: — Vamos amar uma a outra enquanto o mundo inteiro nos odeia.
A inglesa continuava indecisa, entretanto, o brilho que Leona tanto gostava regressou. Encorajada, e dessa vez sem checar se alguém as observava, Verônica levantou a mão hesitante e tocou no rosto de Leona. A inglesa estremeceu ao sentir a maciez da bochecha da eldiana na palma da mão.
Não dava para saber quem avançou primeiro, mas as duas, ao lembrarem desse entardecer, gostavam de pensar que foi uma iniciativa dupla. As bocas se uniram e os olhos se fecharam. Leona se transformou numa estátua, ao passo que Verônica tremia tanto quanto um pinscher. O beijo dócil, contudo, as relaxou. Foi curto, mas duradouro o bastante para sentirem o sabor uma da outra.
Ao se separarem, os corações não batiam rápido feito antes, no entanto, apesar de num ritmo mais suave, continuavam batendo intensamente. Leona, entorpecida pela maciez dos lábios de Verônica, nada dizia, domada feito um animal selvagem. Verônica, por sua vez, deu um sorriso constrangido, e confessou:
— Ai, eu gostei.
Riram em uníssono. A paixão deu lugar ao companheirismo sincero que já fazia parte da amizade, e que a partir daquele dia evoluiria com o iminente relacionamento romântico. Leona, carente, aninhou-se em baixo do braço de Verônica.
— Verônica, sei que você gostou, mas, seja sincera, eu beijei direito?
Perguntou Leona, meio rindo, meio com medo da avaliação. Verônica, sorrindo de um jeito um tanto descarado para alguém que estivera morrendo de pavor agora há pouco, provocou-a:
— Me beija de novo pra eu ter certeza da minha resposta...
XXX
Leona estava em seu quarto, sentada no tapete. O baú de mogno vazio achava-se entre suas pernas. Usando um pano úmido, Leona limpava a caixa retangular de dentro para fora, não deixando nem um cantinho sujo. Ela limpava o baú e o quarto com regularidade. Mesmo guardado em baixo da cama, o baú nunca ficava empoeirado.
Depois de limpá-lo, Leona deixou o baú em paz. No tapete distribuíam-se, ordenados por tamanho, os tesouros de Leona, e, ao lado, encontravam-se outras duas caixas. Acontece que as suas relíquias pessoais já eram muitas para o baú de mogno, e daí surgiu a necessidade de comprar a caixa feita de ipê - um tipo de madeira quase tão nobre quanto o mogno. O novo baú, menor e menos fundo, custou uma fortuna, mas valeu a pena. A terceira arca se tratava de um caixote de madeira comum, e na tampa havia o entalhamento de um urso.
Apanhou as fotografias com Simon e Verônica. Para protege-las do tempo e das condições climáticas, deu a elas o mesmo tratamento oferecido às fotografias de Hange: plastificou os retratos com um material duro e resistente que impedia o ar de entrar em contato direto com as fotos.
Ela leu os dizeres que escreveu atrás das imagens. Com caneta de ponta fina, Leona grafou, atrás da fotografia de Simon posando sem chapéu: Simon entrou para o exército. Na foto dos dois juntos, lia-se: Simon e eu. Na fotografia que tirou com ele e Verônica, Leona escreveu: Verônica, Simon, e eu, os palhaços. Em todas as fotos constava a data de registro.
Suspirando de deleite, Leona pôs um pedaço de papel de seda no meio de cada fotografia para evitar o contato direto entre as fotos, e guardou-as na caixinha do urso. Em seguida, pegou o cartaz que desenhara de Zeke. Uma face infeliz substituiu o sorriso. Não possuía nenhuma recordação de Zeke, e portanto usaria o desenho como tal. Ela o dobrou com cuidado e guardou em baixo das três fotografias.
Chegou a vez das fotos de sua mãe. Leona tinha apenas duas: uma de Hange posando na frente de um batalhão marleyano rendido, e uma das duas juntas no aniversário de quatro anos de Leona. Com o rosto sonhador apoiado na mão, observou o sorriso bonito de sua mãe na primeira fotografia – era para ser um registro histórico formal, mas sua mãe não conseguia parar de sorrir. Leona virou a foto. Atrás, lia-se, na caligrafia confiante de Hange: para o meu filhotinho, amo você.
— Também amo você, mãe. — Disse Leona à mulher sorridente, e guardou a fotografia.
A seguir, Leona analisou a foto do seu aniversário de quatro anos. A criancinha feia e descalça pendurava-se no colo de Hange. O rosto das duas estava sujo de glacê. Hange, empenhada em segurar Leona, sorria para a câmera. A pequena Leona, em contrapartida, não olhava o fotógrafo – seus olhos grandes e vidrados fitavam algo localizado mais acima, que certamente deveria ser muito mais interessante do que a câmera, dado a atenção da criança. Atrás da foto, Hange escreveu: Leona, quatro anos.
Essas fotografias também foram para a caixinha. Tendo acomodado todas, Leona fechou o caixote e o pôs dentro do baú de mogno. Logo depois, Leona recolheu a capa da Tropa de Exploração e a camisa amarela, duas vestes de sua mãe. Leona abraçou a capa e cheirou o tecido grosso, aprovando o cheiro de roupa recém lavada. Mesmo que a dona daqueles trajes jamais fosse voltar, Leona os conservava limpos. Depois de sentir o aroma das roupas, Leona dobrou ambas e armazenou-as ao lado da caixinha.
Após isso, foi a vez dos objetos menores, começando pela medalha de ranking e os goggles. O bloquinho de anotações de Hange, cuja última anotação era uma lista de doces de festa, foi o próximo. Por fim, catou o seu caderno de desenho da época da infância, lotado de esboços de animais e de crianças. Entre as páginas, Leona acomodava artes soltas feitas por sua mãe. A sua favorita era a ilustração que Hange desenhou dela: uma criancinha rugindo com os dedos torcidos imitando garras, com uma coroa acima da cabeça; Hange escreveu, perto do retrato, em letra de fôrma: "leãozinho". De acordo com a data marcada no desenho, Leona tinha cinco anos quando Hange o fez. Sorrindo e balançando o corpo, Leona guardou o caderno em baixo dos objetos menores. Enfim, ela fechou a tampa e colocou o baú no armário – ele não mais moraria em baixo da cama.
Os tesouros restantes eram o leãozinho de pelúcia que Peter lhe deu em sua visita a Belavista, a caixa de sapatos com os dizeres P A R A BOLINha na tampa, e o barquinho porta-contêineres do senhor Onyankopon. Esse último artefato possuía pequeninas falhas na pintura devido à quantidade de vezes que Leona brincou com ele, mas fora isso, conservava-se em perfeito estado. Após guardar o barco e o leão de pelúcia na caixa de ipê, Leona gastou uma boa meia hora dando boas risadas relendo as cartinhas da caixa de sapatos. O rosário de Otto continuava lá, inclusive. A fim de evitar que a tinta do rosário danificasse os papéis, Leona o armazenava num saquinho de seda. Por fim, Leona pôs o baú de ipê no armário, sobre o de mogno.
Leona deu um suspiro de cansaço gratificante. Era tão bom ver tudo organizado e limpinho. Respirando fundo e sacudindo os ombros, Leona endireitou a coluna e saiu do quarto com a cabeça erguida numa postura resoluta. Afinal, já estava mais do que na hora de contar ao senhor Levi a grande novidade sobre Verônica.
Como a própria Leona afirmara, ela não iria fugir de quem era. Sendo assim, nada mais necessário do que fazer com que pelo menos as pessoas do seu convívio respeitassem o seu relacionamento e sexualidade.
O senhor Levi estava lendo o jornal. Ele cruzava a perna ruim em quatro sobre a perna boa. Os óculos para leitura repousavam passivamente no nariz do capitão. Leona, inspirando uma grande quantidade de ar pela boca, parou no centro da sala e, com uma pose um tanto defensiva e uma expressão decidida de se-me-atacar-eu-vou-atacar, chamou:
— Senhor Levi.
O senhor Levi abaixou o jornal e perguntou o que ela queria através do olhar indiferente.
— Eu quero que o senhor saiba... — Aqui Leona quase fraquejou. Mesmo assim, continuou corajosamente: — A Verônica e eu estamos juntas. Nós nos amamos.
Ela esperou a fúria iminente, os gritos e os cascudos. Entretanto, o senhor Levi nada manifestou ante essa novidade. Pelo contrário, ele parecia entediado. O capitão voltou o seu olhar de peixe-morto ao jornal.
— Felicidades, Smith. Qualquer dia desses, traga a Verônica para jantar conosco de novo.
Leona arqueou as sobrancelhas. A naturalidade com que o senhor Levi reagiu à notícia, que pela lógica deveria desconcerta-lo, causou em Leona a mesma sensação que um ator sente quando esquece a próxima fala do roteiro.
— Hein? — Desconjuntou-se Leona. — O senhor não está bravo por eu estar namorando uma mulher?
— Por que eu deveria? — Perguntou o capitão desinteressado, passando para a próxima folha do jornal. — Eu sei que você gosta de mulher, Leona. Na verdade, todo mundo sabe.
— HEIN!? — Leona recuou ao soltar essa exclamação. Se sentia transparente como uma água-viva. Poxa, se considerava tão misteriosa e calculista... — Quem é todo mundo? — Ela desdenhou: — Rá, vai me dizer que a minha pobre mãe está incluída nesse "todo mundo"?
O senhor Levi bocejou, afastou o jornal, encarou Leona com o olhar desleixado de um professor diante do aluno tolo da turma, e falou:
— É óbvio.
— Não acredito! — Leona pôs as mãos na cintura.
— Pode acreditar. — O senhor Levi retomou a leitura do jornal. — Sua mãe sabia tudo sobre você, Smith.
Leona não sabia se ficava feliz ou ultrajada. Nem ela própria sabia de sua homossexualidade até poucos anos atrás, mas sua mãe morta há oito anos já tinha plena consciência? Realmente, não dá para esconder nada das mães.
— Credo, não se pode ter privacidade.
Atrás do jornal, o senhor Levi sorriu de canto.
— A sua mãe iria gostar da Verônica.
Leona possuía a mesma opinião.
— Eu também acho, senhor Levi. — Por um momento, Leona sonhou acordada com as aventuras que viveu ao lado de Verônica. Foi a inglesa quem a fez se apaixonar pelo cinema... — Ei, senhor Levi, você nunca foi ao cinema, não é? — De súbito, tivera uma ideia.
— Não. — Respondeu o capitão de má vontade. Ele dizia não antes de Leona convidá-lo.
— Nada de "nãos", senhor Levi! — Determinou Leona, levantando o dedo indicador. — O senhor está sempre trabalhando, nunca se diverte. Nós não vamos abrir amanhã. — Ordenou Leona, deixando o capitão de olho arregalado. — Você fica aqui lendo o seu jornal, eu vou lá em baixo telefonar para o senhor Onyankopon e para Gabi e Falco. Vamos nós todos ao cinema.
— Ah, Leona, o cinema é muito longe... — Reclamou o capitão pessimista.
Leona, contudo, já descia pelos fundos. Ela discou o número da casa do senhor Onyankopon e questionou se ele queria ir ao cinema amanhã, e se poderia ser na sessão das três da tarde. Depois de receber a confirmação, Leona telefonou para Gabi e Falco e refez o convite, o qual o homem do casal consentiu.
Tudo feito, bastava trancafiar o senhor Levi (para ele não fugir de madrugada) e aguardar.
XXX
Quando o amanhã chegou, Leona, ao visitar o quarto do capitão para checar se o senhor Levi não escapara pela janela, encontrou-o escolhendo um traje formal. Na cama espalhavam-se três ternos: um preto, um cinza e um branco.
— Olha só! Para quem não quer ir, o senhor está bem preocupado em ir bonito. — Provocou Leona.
— É óbvio, doente. — Rosnou o capitão. — Eu não vou passear molambento.
— Naturalmente. — Com a mão no buço, ela examinou os ternos. — Se o senhor quer uma segunda opinião, eu prefiro o cinza.
O capitão emitiu um pensativo "huuum" gutural. Deixando-o sozinho, Leona foi escolher suas próprias roupas. Ela gostava de trajes claros, e boa parte do seu guarda-roupas compunha-se de peças dessa natureza. Selecionou uma camisa azul-claro, uma calça alguns tons mais escuros e um cinto marrom para acompanhar. Enquanto separava as roupas, escutou o barulho do chuveiro indicando que o senhor Levi fora tomar banho primeiro. Por conseguinte, Leona foi adiantar o almoço. Ela preparou peixe, arroz e uma panela de lentilhas, tudo em abundante quantidade porque Falco, Gabi e o senhor Onyankopon viriam almoçar. Em minutos o senhor Levi saiu do banheiro e eles inverteram os papéis.
Os convidados chegaram ao meio-dia em ponto. O senhor Onyankopon trajava um terno branco, um chapéu também branco e uma gravata cor-de-rosa. Gabi vestia um macacão xadrez (Leona achou-o parecido com uma toalha de mesa, e riu entredentes), e Falco usava uma camisa branca de gola alta e um paletó.
— Boa tarde, pessoal. — Leona os cumprimentou na porta do apartamento. — Puxa, vocês estão tão arrumados.
— Você também, Leona. — Gabi elogiou-a.
Os cinco sentaram na mesa. Após o clássico "como vocês vão?", entraram no assunto inevitável: a guerra. O senhor Onyankopon refletiu:
— Eu já sabia que Newcrest não poderia se manter neutra para sempre, porém não imaginei que Paradis e Hizuru iriam atacar Newcrest, justamente o país que lhes vendia armas mais sofisticadas. Se tinha alguma chance de o governo daqui declarar apoio a Paradis, foi-se.
Os presentes meditaram sobre o assunto. A única aliada de Paradis era Hizuru. A ilha conquistou (isto é, tomou à força) parte do Médio Oriente, mas não pode considerá-los comparsas - o povo de lá estava de prontidão para dar o bote em seus algozes. Paradis, por mais que se escondesse atrás da fachada invencível adquirida graças ao seu passado sangrento, estava em desvantagem – literalmente, à exceção de Hizuru, o mundo inteiro os queria mal.
Apenas a história se repetindo.
— O senhor acha que Paradis pode atacar Belavista? — Questionou Leona.
— Olha, depois da surra que eles levaram em Pérola, eu duvido que vão tentar atacar Newcrest novamente.
— Ufa... — Aliviou-se Leona. Era triste torcer contra a sua terra natal, mas não havia outra opção. Ela entreolhou os amigos com preocupação: — Vocês não vão participar da guerra, não é? — Já perdera Erwin, Sasha, Hange, Peter, Simon... quantos mais?
— Não. — Falco sorriu. — Os guerreiros da Revolta não são obrigados a entrar nessa guerra.
— Não que o serviço militar não tenha nos procurado. — Completou o senhor Onyankopon, dando um gole no seu copo de refrigerante.
— Eles procuraram o Connie e o Jean? — Indagou o senhor Levi, alterado. Ele não fazia ideia de que o exército de Newcrest entrou em contato com os heróis da Revolta - não o contataram porque o senhor Levi tinha mais de cinquenta anos.
— Sim. — Confirmou Onyankopon à meia-voz, denunciando qual foi a resposta da dupla de paradisianos.
Leona não conseguiu esconder a insatisfação. Ela baixou o olhar e ficou brincando com o garfo. Os adultos continuaram conversando. Gabi disse que o seu primo, Reiner, o ex-portador do titã encouraçado, e Pieck, a última portadora do titã carroça, também iam participar da guerra.
— Só que eles não vão pro campo. Eles vão trabalhar por baixo dos panos, igual o Armin e a Annie.
— É isso que o Jean e Connie vão fazer. Acho que os seis estão juntos nessa. — Retomou o senhor Onyankopon. — Eles vão estar do lado de Paradis, mas como pacificadores, quero dizer, opositores a essa nova guerra. Por sorte, Historia deixou apoiadores para trás.
A notícia alegrou um pouco os ânimos de Leona. Graças a Santa, Jean e Connie não planejavam vestir suas velhas roupas de soldado. Menos deprimida, Leona voltou a comer, botando generosas garfadas de peixe na boca.
O senhor Levi percebeu o seu alívio.
— Aqueles pirralhos sabem aonde estão se enfiando. Para ser honesto, eu os entendo. Se eu tivesse dois olhos bons, duas pernas boas, duas mãos inteiras, e, claro, se a Leona não fosse a minha dependente legal, quem sabe eu tivesse me candidatado. — Ele franziu as sobrancelhas e enrijeceu a voz com certeza lastimosa: — Agora, ir para o campo de guerra está fora de questão. Eu não gosto de matar pessoas. — Monologava o senhor Levi com ar de quem matutou um assunto por noites a fio.
Leona, que não conseguia não agradecer a Santa por ser um dos motivos que impediam o capitão de voltar à ação, disse, emocionada:
— Estou feliz que vocês vão ficar aqui.
Os convidados sorriram, e a partir daí mudaram de assunto. Falco e Gabi contaram sobre a cachorrinha; adotaram-na achando ser um cãozinho de pequeno porte, mas a cachorra se tornou uma imensa pastora belga. O senhor Onyankopon mencionou estar prestes a comprar um carro. E Leona contou-os sobre Verônica, novidade pela qual os presentes a parabenizaram. Se algum dos visitantes era contra o relacionamento, esconderam a repulsa com maestria. Terminando o almoço, os cinco se levantaram.
Era uma linda tarde de sol sem nuvens e de vento gelado. A caminhada até o cinema foi agradável, apesar das ruas movimentadas. Em seis minutos de andança, o senhor Levi cansou da bengala e pediu para Leona empurrá-lo na cadeira de rodas.
Leona empurrava o capitão na calçada. O senhor Onyankopon fazia perguntas sobre Verônica e sobre o seu irmão soldado. Gabi e Falco caminhavam alguns passos a frente de mãos dadas e contemplando a cidade, e vez ou outra viravam-se para dar alguma opinião na conversa entre Leona e o senhor Onyankopon. O senhor Levi, por outro lado, quase não falava – ele gostava de aproveitar o vento e observar as pessoas e as lojas.
Por intermédio do bondão, em meia hora chegaram ao América, o cinema em que Leona assistiu Sherlock Holmes. O letreiro anunciava o revolucionário BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES, longa-metragem animado sobre o qual todos os críticos de cinema estavam obcecados. E não era para menos. Aquele filme era o primeiro "filme de desenho" da história. Leona, que amava a turma do Mickey Mouse, estava prestes a ver um filme completo nos moldes dos curtas do ratinho (inclusive, do mesmo criador).
Uma mulher jovem substituía o homem antipático da cabine de ingressos. Como não haveria espaço para a cadeira de rodas do senhor Levi na sala do cinema, Leona perguntou à funcionária se ela poderia guardar a cadeira para eles; a funcionária concordou.
O senhor Levi, empunhando a bengala numa mão e entrelaçando o outro braço no de Leona, permitiu a enteada guiá-lo. Assim como ela na sua primeira vez ao cinema, o velho capitão se espantou com a grandiosidade da sala. O cinema era muito maior por dentro do que por fora. Ele se assustou um pouquinho com a escuridão, e expressou o receio apertando o braço de Leona.
Leona o guiou para os assentos comprados. Sentaram no corredor - escolheram a localização propositalmente para facilitar a entrada e a saída do capitão manco. Como a sala alocava muitos espectadores (as sessões para Branca de Neve eram disputadíssimas), os cinco companheiros não conseguiram sentar juntos. Gabi e Falco achavam-se no centro do cinema, enquanto o senhor Onyankopon encontrava-se algumas cadeiras ao fundo. Não tinha problema. Daqui uma hora e alguns minutos, iriam se reunir.
— As imagens vão rodar naquela coisa branca, Smith? — O senhor Levi referia-se à tela do cinema.
— Sim.
— Bom, e cadê? — O capitão arqueou a sobrancelha, sentindo a impaciência ansiosa que as pessoas experimentam quando empolgadas.
— Ainda não começou, senhor Levi. — Leona deu uma risada baixa. — Aliás, tente falar baixo, ok? É falta de educação falar alto no cinema. — E inclinou a cabeça para as pessoas que davam olhadelas perigosas ao xucro falante.
— Quanta frescura. — O capitão deu de ombros.
A pressa do senhor Levi fez os três minutos parecerem três anos, mas, enfim, a tela branca foi preenchida pelos créditos iniciais atribuídos a Walt Disney. Uma música orquestral clássica preencheu o ambiente. O som parecia vir de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo. O senhor Levi se sobressaltou e olhou ao redor em busca dos musicistas. Leona riu e explicou que a música provinha do filme.
— Minha Santa... — Murmurou o capitão, tão espantado que usou o nome da entidade de Paradis em vez do Deus newcrestiano. — Parece que os músicos estão em cima de mim!
— Eu sei. Legal, não é?
A música durou pelo tempo dos créditos, e então, à medida que a história do filme era introduzida, a magia da sonoplastia diminuiu o volume da canção para dar lugar à voz do narrador: "Era uma vez uma linda princesinha chamada Branca de Neve. Sua vaidosa e malvada madrasta, a rainha, notou um dia que a beleza de Branca de Neve excederia a sua; cobriu então a princesinha de andrajos e obrigou-a a trabalhar como criada..."
— Puxa vida, que mulher retardada. — Sussurrou o senhor Levi.
Leona precisou cobrir a boca para não gargalhar além da conta. O narrador continuou: "...todo o dia, a vaidosa rainha consultava o espelho mágico: 'mágico espelho meu, quem é mais bela do que eu?', e enquanto o espelho respondeu 'tu és a mais bela', Branca de Neve ficou livre da inveja e da crueldade da rainha."
— Mas não por muito tempo, já posso ver. — Resmungou o senhor Levi.
Ele estava tão entusiasmado que, feito uma criança, não conseguia refrear seus pensamentos altos. Se fosse qualquer outra pessoa, Leona não toleraria tanto blá-blá-blá. Entretanto, como se tratava de Levi, Leona deu um desconto. Na tela, uma mulher de roxo, claramente a rainha, conversava com um espelho. Como o senhor Levi previu, o espelho assumiu que a beleza da tal Branca de neve superava a da madrasta.
Branca de Neve e seus animais inteligentes foram apresentados (o senhor Levi ficou quietíssimo durante a canção cantada pela garota), e logo depois conheceram o príncipe e seu cavalo branco, parte em que o senhor Levi fez um pontual comentário sobre o animal ser idêntico a Neve, o cavalo de Erwin. Quando a história voltou para a rainha má, o senhor Levi, a essa altura totalmente capturado pela beleza do filme, fez silêncio.
Mais tarde, Branca de Neve negligentemente invadiu uma cabana aleatória no meio da floresta, a qual, pelo título do filme, os espectadores deduziram pertencer aos sete anões. Leona estivera concentrada até então, mas no instante em que Branca de Neve resolveu limpar a casa desconhecida, ela gargalhou (as pessoas da fileira de trás a repreenderam), se inclinou e sussurrou ao senhor Levi:
— Parece você. — Leona apontou para a garota varrendo e cantarolando.
— Cale a boca, Smith. — Rosnou o senhor Levi. — Eu quero ouvir a música.
Entretanto, ao conhecer o personagem "Zangado", Leona decidiu que o anãozinho irascível cabia melhor à personalidade do senhor Levi do que a protagonista viciada em limpeza. O senhor Levi rebateu alegando que Leona era idêntica ao garotinho atrapalhado e ingênuo chamado Dunga.
— Garotinho? — Leona fez uma careta confusa. — Ele é um homem, senhor Levi, só que pequenininho.
— Não acho. — Teimou ele. — Nada me tira da cabeça que esse orelhudo é uma criança.
Leona sorriu, revirou os olhos e balançou a cabeça ("o senhor manda, senhor Levi").
O longa-metragem proporcionou uma hora e vinte e três minutos de regozijo à garota, e sobretudo ao senhor Levi, que experimentava sua primeira ida ao cinema. Leona apreciou, de uma visão privilegiada, o capitão se emocionar com as músicas, sorrir com as palhaçadas dos personagens, ficar tenso na transformação da rainha em bruxa, e se alegrar no momento da derrota da vilã. Contudo, ele não gostou do final. Na opinião do senhor Levi, Branca de Neve não deveria se casar com um homem que mal conhece.
— Acho que eles já se conheciam há alguns anos. — Teorizou Leona ao levantar de seu assento. Ela ajudou o senhor Levi a sair de sua cadeira. O capitão não precisava de ajuda para andar no corredor porque as luzes foram acesas.
— É bom mesmo. — Falou o capitão irritado com a imprudência de Branca de Neve.
Enteada e padrasto reencontraram os três camaradas.
— Pessoal, adivinhem só quem chorou. — Gabi apontou para Falco.
— Eu chorei mesmo. — Confirmou ele, ruborizado. — Achei tão bonito o príncipe levando a Branca de Neve para o castelo...
— Eu também achei belíssimo! — Opinou Leona, encantada. — Eu amei os anões.
— O que você achou do filme, capitão? — Perguntava o senhor Onyankopon, trazendo a cadeira de rodas. — Uma obra de arte, não?
— Gostei. — Inexpressivo e fleumático, até parecia que o senhor Levi havia detestado Branca de Neve, contudo os olhos brilhantes desmentiam o tom de voz. — É bom ver coisas bonitas, para variar, não só guerra, guerra e guerra.
Leona não poderia concordar mais. Era reconfortante saber que, num mundo em que existiam pessoas desejando o mal dos outros, também viviam outras dedicadas à encantar crianças, adultos e idosos, por meio da arte e da música.
— Ei, que tal irmos na sorveteria? — Convidou-os Falco. — Estou louco por um milk-shake.
A sorveteria era o desfecho perfeito para o passeio. O senhor Levi sentou na cadeira de rodas com a bengala atravessada no colo, e Leona prontamente o empurrou. A cidade abriu-se para eles. O dia continuava ensolarado e bonito, nem perto de escurecer.
Caminharam pela cidade rumo à sorveteria. Em certo ponto, o capitão comprou um jornal, pois queria ver quais eram as próximas estreias cinematográficas. Leona, contemplando os arredores, percebeu que localizavam-se na Torre do Relógio. Ela deu uma risada nasal ao lembrar do ranço de Verônica pelo ponto turístico. Segundo a inglesa, aquele relógio era uma imitação barata do Big Ben da Inglaterra, que fora destruído na revolta. Ah, estava há somente dois dias sem ver Verônica e já sentia falta dela. Amanhã mesmo, a convidaria para assistir Branca de Neve (Leona já queria rever o filme).
Como por destino, ela abaixou o olhar da torre para o prédio na base, e seus olhos imediatamente identificaram, comprimida no cantinho da parede, uma bolinha felpuda, laranja... e viva!
— Ei, vocês podem esperar um pouco? — Pediu Leona, alarmada. — Eu já volto.
— Huh? — Falco substituiu Leona no comando da cadeira de rodas. — Aonde você vai?
Leona não respondeu. Ela trotou para a Torre do Relógio, mas em vez de entrar no prédio majestoso, ela foi para aquele canto sujo e fedorento de xixi, aonde a bolinha laranja tremia e choramingava. Na metade do trajeto, Leona identificara que a bolinha felpuda se tratava de um gato, e acertou.
— Oi, gatinho.
O gato ergueu os olhos verdes. O animal estava molhado e possuía um corte atrás da orelha. O felino conservava a patinha direita erguida, evidenciando a lesão. Pelo tamanho, se tratava de um gato de no máximo nove meses, e o pelo laranja era um indicativo de que o bicho provavelmente era macho.
Leona se agachou. O gato sibilou tal qual uma cobra. Leona aproximou a mão e tomou uma unhada. No entanto, ela não se abalou. Manteve a mão no mesmo lugar. O felino, percebendo que a mão não estava ali para agredi-lo, aproximou o focinho e cheirou-a com desconfiança. Como não recebeu nenhuma punição, deu-lhe uma cabeçadinha.
— Que bonzinho! — Elogiou em voz baixa. Ela fez carinho na lateral do rosto do gato. O felino dengoso ronronou, mostrando que a violência inicial não passava da reação de alguém traumatizado. — Você estava com medo de mim? Não precisa, está vendo? Venha cá.
Com cuidado e lentidão, pegou o animal no colo. O gato começou a se debater, mas a forma como Leona o segurava, por baixo das patas traseiras e sem machucar a dianteira, o acalmou. Leona examinava a patinha machucada, já calculando os possíveis danos e buscando na memória o que fazer em caso de patas quebradas.
Uma empolgação adormecida tomou conta de Leona. Mostrando um sorriso que muito se assemelhava aos seus de criança, Leona regressou ao grupo. Para não assustar o felino, Leona caminhava a passos de tartaruga.
— Por que está andando tão devagar, Smith? — Perguntou o capitão irritado.
— Ela está com um gato! — Ao constatar esse fato, o senhor Onyankopon fez uma positiva face de surpresa. — Vai cuidar dele, Leona?
— Vou. — Leona fez carinho no queixo do gatinho.
— Nós não podemos ter um gato, Smith. — Rosnou o capitão. — Ele vai perturbar os pássaros.
— E quem disse que vamos ficar com ele? — Respondeu Leona com docilidade. — Eu vou cuidar dele até ele sarar, e depois vou doá-lo para uma boa família.
— Entendi. Você resolveu voltar às suas origens. — O senhor Levi sorriu de canto.
A resposta de Leona foi um sorriso discreto e educado. Sua paixão por animais e pela medicina veterinária retornava numa velocidade perigosa. Era incrível como a vontade de reaprender a cuidar de bichos, bem como a de estudar o funcionamento do corpo dos animais, vinha sem que Leona tivesse controle. Por todos esses anos, Leona contentou-se em trabalhar na loja de chás e ganhar dois dólares por semana, entretanto, decerto, dali por diante, não mais se satisfaria com essa vida desprovida de ambições e paixões, não quando existiam tantas espécies de animais para serem estudadas.
Nesse instante, o barulho cortante de um motor de avião quebrou os sons da cidade. Os pedestres olharam para a aeronave que transpassava o céu sem nuvens. Uns deram uma espiada e seguiram suas vidas, ao passo que outros pararam para assistir o percurso do avião, e os acompanhados por crianças colocaram-nas nos ombros. Leona, o senhor Levi, o senhor Onyankopon, Gabi e Falco, faziam parte do segundo grupo.
Leona foi a primeira a desviar a atenção, pois o gato, apavorado por conta do som, se remexia e tentava fugir. O rosto dela iluminou-se com a vivacidade das pessoas que trabalham com o que gostam. Ela fez carinho no bichano.
— Calma, amiguinho, eu estou aqui.
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