Mary
Rolei mais uma vez naquele saco de dormir, sentindo todo o meu corpo em um estado de alerta absurdo, ainda que minha mente pedisse para que eu dormisse ao menos por algumas horas. Precisaríamos de força e concentração amanhã de manhã, o que torna esta insônia algo completamente descabido mesmo que eu saiba que alguns de meus companheiros montam guarda lá fora. E ainda assim, a anciã havia varrido a área pouco antes de nosso horário de dormir, e não encontrado nada em mais de cinco quilômetros.
Mas aqui estou eu, agora olhando para a cobertura espessa da barraca cinza em que ocupo, esperando por algo que não viria enquanto minha mente vaga em outro dormitório, e em outro saco de dormir. O que ronda a mente daquele garoto neste instante?
Ele havia me apertado com tanto cuidado nos braços quando estávamos próximos a fogueira. Naquele instante senti meu coração acelerar como costumava fazer quando éramos dois jovens competindo por tudo em uma arena de treinamento, e ainda que negasse aquele sentimento, sentia minhas bochechas rubras quando ele sequer ousava citar meu nome, ou elogiar algum golpe praticado por mim, e, após tantos anos de solidão quase completa ele havia voltado repleto de lembranças e sentimentos que me deixam aturdida. Porém, não mais confusa do que ele próprio.
Jay sempre tentou ser dinâmico e organizado em relação a tudo o que fazia em seu dia. Desde o momento que acordava cedo demais e tomava o mesmo café da manhã, para logo depois seguir para o centro de treinamento e abrir as portas.
Após isso o garoto executava uma lista extensa de tarefas ainda que tivesse dormido menos de quatro horas naquela noite, e quando eu atravessava os portões do Ducal, ele me esperava para o treino com uma expressão cansada, triste, e que ainda assim me parecia pronto para derrubar um reinado inteiro se assim lhe fosse dito.
Joguei as cobertas grossas para o lado, tentando a todo custo não acordar as duas garotas que ocupavam a mesma barraca que eu. Busquei por meu casaco que estava jogado próximo aos meus pés e o coloquei, fechando o zíper até que me parecesse o bastante, calcei as botas feitas de material grosso e logo depois sai dali de dentro com rapidez o bastante para que as duas meninas adormecidas não percebessem.
O vento gélido fez com que meus cabelos voassem para o lado. Uma chama ardente soprada em meio aos flocos mínimos de neve ao nosso redor, o chão fofo chegava a fazer com que minhas botas se afundassem um pouco a cada passo dado, coisa que atrasava um pouco mais o trajeto, e que ainda assim parecia tão calmo e tranquilo que deveria acontecer.
Não precisei de uma lanterna ou algo do tipo, não com a fogueira que permanecia acesa por algum milagre ou magia neste caso, e a lua cheia que brilhava forte no céu, um péssimo sinal para os de minha espécie, e que ainda assim me veio bem neste momento.
Após caminhar por aqueles espaço mínimo, me abaixei próxima a aquela barraca cinza e abri o zíper sem muitas cerimônias ao notas algo aceso lá dentro. Assim que o fiz, consegui ver o motivo de uma lanterna permanecer acesa, Jay e Sunghoon não haviam conseguido fechar os olhos desde que a anciã nos mandara descansar, e neste momento pareciam se entreter com um jogo de cartas bem divertido, pois os garotos seguravam o riso enquanto cada um mantinha duas delas entre os dedos.
– Jay, está ocupado? – Perguntei ao garoto, que já havia me olhado muito antes de jogar a próxima carta, encerrando o carteado com Sunghoon. – Se estiver, posso ficar com vocês?
– Ele não está ocupado, vá lá Jay! – Disse Sunghoon, sorrindo para o amigo logo em seguida. – Acho que vou ler um pouco sabe, para me dar sono, minha mente está custando a se acalmar.
– Vou me manter por perto – disse Jay a ele, que deu de ombros indicando que o garoto seguisse. – Quer dar uma volta? Podemos assumir o turno de vigia agora...
– Pode ser – respondi a ele e sorri, e foi neste momento que Jay saiu da barraca, me acompanhando lá fora. Logo foi a vez de Sunghoon, que carregava um dos livros da coleção do cérebro de baixo do braço. – Vamos?
Jay concordou com a cabeça e colocou as mãos nos bolsos da calça, seguindo ao meu lado enquanto eu caminhava devagar. O antigo Lorde se sentou próximo a fogueira e passou a folhear o objeto em suas mãos de forma calma, aliás, tudo o que aquele garoto faz parece seguir esta calma inabalável e a força de espírito extrema.
Eu entendia bem o motivo de sua insônia. Todas as noites em que eu era informada que meu próximo objetivo seria um dos orfanatos dos caras vestidos de preto a mesma coisa me acontecia, o sono sumia e a ansiedade pura tomava meus pensamentos mais profundos, além de lembranças dolorosas de nossos dias de treinamento, dos insultos e das palavras doces trocadas por nós, dos beijos e dos abraços. Cada pequeno trecho de Jay Park fluía de minha mente e causava dor em meu coração.
Levantei os olhos, notando um rio completamente tomado pelo gelo correr por longos metros, e foi bem aqui que resolvi parar, me sentando em um tronco que me parecia firme no chão coberto de neve. Jay tomou o meu lado, os olhos presos em todos os cristais congelados que refletiam com a luz da lua, parecendo ainda mais brilhantes do que as próprias estrelas que enfeitavam o céu.
– O que vamos fazer amanhã, parece perigoso... – Sussurrei, puxando o ar com força pouco antes. – Tome cuidado lá dentro, e aqui fora quando sairmos – o garoto direcionou os olhos até mim, parecendo não entender o que eu queria dizer com aquilo. – Esta floresta não é exatamente segura...
– O mal que se esconde no escuro – entoou Jay sem desgrudar os olhos de meu rosto, retirando a mão direita de dentro do bolso e a levando até a minha e a envolvendo com cuidado, o toque leve cheio de calos. – Não vou te perguntar o que isso significa, mas espero descobrir em algum momento. Não fique tensa, pense que é somente mais uma missão, e que estaremos em casa o quanto antes.
– Você perde muito se não pensar desta forma, não é? – Jay balançou a cabeça em concordância, dando a mim uma resposta pela qual busquei desde o momento que vi aquele diurno de transformação completa lhes abraçar com força mais cedo. – Eu... Eu sinto muito por obrigá-lo a deixar os garotos para trás dessa forma.
– Somos uma família, é assim que Jungwon costuma falar. Mas quando Sunghoon e eu lhe contamos sobre a missão, ele nos disse a seguinte frase “Vão e tragam todos os três novos membros desta família são e salvos”.
– Três? – O garoto sorriu pequeno e tornou a passar um braço por meu ombro, fazendo com que o calor de seu corpo passasse para o meu devagar.
– Ele sabe que temos algo... Um resquício de sentimento que seja, me conhece o bastante para saber disso. Isso te torna parte de nossa família – Jay deu de ombros, soltando uma lufada de ar quente logo em seguida. – O que queria me dizer? Ou você só desejava passar um tempo comigo?
– Passar um tempo e lhe dizer algo – o garoto apenas inclinou a cabeça para o lado, me olhando nos olhos. – Eu... a ação de amanhã vai ser perigosa, muito perigosa, não é a toa que os caçadores se recusaram até o último momento a vir. Então, tome conta os garotos e tente não morrer, sabe, acho que eu não ficaria muito feliz ao te perder outra vez... – Deixei que os meus olhos viajassem pela neve, é claro que Jay diria que aquilo é idiotice da minha parte, para logo depois se gabar que é um ótimo guerreiro e não perderia uma batalha destas, mas é claro que o rapaz me surpreendeu, ele vive fazendo isto desde que chegou.
– Eu sei, eles tem um espirito de guerreiros e não voltariam atrás com uma missão, foi isso que me tirou o sono durante estes dias – revelou Jay, parecendo bastante distante. – Os garotos vão ficar atrás de nós, e eu vou lutar até o fim para ver um sorriso no rosto deles, os dois tem o direito de rever quem lhes foi especial em algum momento.
– Jay... – sussurrei a ele, que se virou, encarando meus olhos com firmeza. – Não vá amanhã...
– Certa vez você me fez lhe prometer que nunca te esqueceria, mas eu não consegui, e não posso usar a desculpa de que foram os remédios e muito menos a tortura, eu sei que podia lembrar... – Prendi meus olhos ao seus, estes marejados e com aquela mesma fúria de quando treinávamos e um dos garotos mais velhos duvidava de suas habilidades, o ódio contido, o cérebro trabalhando rápido demais. – Era mais fácil esquecer, e mesmo que eu tentasse, estas memórias demoraram a retornar...
– Não foi sua culpa, todos nós esquecemos das pessoas e das coisas mais importantes de nossas vidas, não se culpe tanto – ele balançou a cabeça, negando, para logo depois levar a mão gélida até meu rosto. – Eu me esqueci de você, só me lembrei ao parar de tomar os remédios...
– E por isso vou matar cada um deles, farei questão de acabar com este show de horrores nem que seja a última coisa que farei no mundo... – Concordei com a cabeça, me parecia impossível dizer a ele qualquer coisa que pudesse lhe negar este direito, ainda que todos os que foram testados e transformados tivessem algo pelo qual lutar e odiar os orfanatos.
– Eu te desafio, Jay Park. Lhe desafio a me beijar e se esquecer de todos os problemas terríveis que estão rondando sua mente! – Jay sorriu da mesma forma que fazia quando éramos mais novos, como se o nervosismo passasse por todo o seu corpo e se voltasse contra ele, ao passo que uma completa animação também lhe tomava o corpo, um misto entre cumprir o meu pedido e pensar no que é certo. Porém não desta vez. Estávamos necessitados demais, afoitos em busca de qualquer forma de toque e tomados pela raiva, pela saudade de tantos séculos.
– Você sabe bem que eu não consigo lhe dizer não – respondeu o garoto, encostando a testa na minha, febris ao toque repentino. E assim que se deu por satisfeito levou a mão até meu rosto, acariciando a bochecha esquerda com o nó do dedo de forma cuidadosa.
Jay fechou os olhos por aqueles segundos cortantes de espera, a boca entreaberta, soltando o ar quente contra todo o frio extremo que nos cercava, enquanto a outra mão encontrava a minha cintura com incerteza, como se desejasse me ter por perto, ainda mais próximos, mais e mais.
Então ele baixou os lábios na direção dos meus, a leveza dos movimentos e a macies de sua pele. Prendi meus dedos em seus cabelos, agora completamente escuros e macios. Daquela forma que somente Jay seria, como se os fios fossem feitos especialmente para o encaixe de meus dedos ali, da mesma forma que sua boca pequena se prendia a minha com calma extrema, dizendo cada uma das coisas que ficaram escondidas entre nós, a falta, a paixão, o coração partido e os curativos eu foram feitos nestes últimos dias.
Deixei que a língua do rapaz se encontrasse com a minha, as duas se misturando e fluindo em movimentos vagarosos, deliciosos, e ainda assim o rapaz fazia questão de que tudo fosse ainda mais memorável, tratando de levar meu corpo ainda mais próximo do seu, fazendo com que eu me sentasse em seu colo logo em seguida.
Nos separamos por alguns instantes, onde Jay olhou em meus olhos, as pupilas dilatadas quando o garoto se voltou para o meu pescoço, traçando uma linha de fogo contra cada centímetro de tecido que ele afastava de meu pescoço. Era como uma trilha em meio a escuridão, uma forma que tentava se levantar a minhas costas, mas que se retesava ao ver o quanto brilhávamos juntos, o quanto Jay poderia lhe dar medo.
Me prendi em seus ombros ao lhe beijar novamente, como se neste momento pudéssemos nos tornar um único ser em meio a toda a floresta. Desta vez só deixei seus lábios quando o ar faltou, escondendo minha cabeça em seu ombro após isso.
– Desta vez eu prometo que não vou te deixar – ditou o garoto, acariciando meus longos cabelos vermelhos com as mãos. – Sunghoon me disse uma vez algo que duvidei, porém hoje vejo que é verdadeiro. Quem te ama não te deixa, não verdadeiramente. Pois nosso coração sempre vai procurar pelo amor.
Desta vez não lhe respondi quando fechei os olhos e sorri.
Talvez o lorde tenha razão neste quesito. Talvez Jay nunca tenha me deixado.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.