Jay
Não precisei de muito para notar a falta de interesse da maioria deles em qualquer coisa dita por mim, não somente isso, eles não se importavam se Ailee havia morrido de forma covarde ou se eu próprio quase perdi meu coração em uma luta sangrenta. Aqueles homens se importavam com a arma que perderam em batalha, e outra que quase se foi neste mesmo processo exaustivo, afinal, os caçadores são escassos neste meio, e perder dois deles é um jogo perigoso.
Mas agora cada um dos anciões olhava minha história como se eu fosse um mentiroso em meio a corte cheia de lordes, um empecilho que lhes dizia algo do qual não podiam acreditar de forma alguma, pois, como a poderosa guerreira de fogo poderia ter aceito lutar ao lado de um garoto recém descoberto? E ainda pior, entregara a própria vida pela de um peão?
Por isso lhes falei com aquele tom de voz relapso que as vezes usava com o Duque de Veneza, a grande diferença é que o pai de Sunghoon acabaria por ceder as minhas palavras e seguiria o caminho certo, já estes vampiros caquéticos nunca o fariam, preferem mandar um maldito batedor para morrer nas mãos dos lobos do que acreditar em uma só palavra dita por mim nesta reunião, ou melhor, neste julgamento. Se há algo que reconheço muito bem é um evento destes, onde pessoas poderosas se colocam na frente de alguém que não tem chances de revidar e o julgam justamente por isso, pois precisavam de um culpado pelo qual mostrar ao povo, reafirmando o seu poder mais uma vez.
A diferença notável aqui é que nunca me importei com o quão poderoso alguém possa ser, e muito menos se eu seria julgado ou não, ainda que isso me deixe um pouco irritado. Mas eles não sabem quem estão julgando, não tem ideia de meu treinamento ou do quanto já fui colocado nesta mesma posição, esperando para ser morto ou preso, e isso nunca funcionou. Mal sabem estas pessoas que fronteiras tive de cruzar, ou o quanto já lutei. Por isso simplesmente disse a verdade, eles não se importam com minhas palavras, seus olhos me julgam mentiroso.
– Jay! – Ditou Mary a minhas costas, para alguém que esteve chorosa até este momento parecia bem recuperada. – Você não pode falar assim com os anciãos! Meça seu tom de voz! – Não me dei ao trabalho de olhar em sua direção quando dispensei seu comentário com um aceno, colocando minhas mãos juntas em minhas costas em seguida. Mary sim é mentirosa, e colocou todos nós em perigoso por seu medo estupido de me perder, por isso, talvez ela mereça esse castigo por colocar meus amigos em perigo.
– Talvez você deva ouvir sua amiga, Jay Park – ditou aquele mesmo homem, o líder dos cérebros, eu poderia reconhecer um deles a distância, com sua atitude desleixada e que ainda assim deixa certo requinte para trás. Os olhos espertos, que pareciam pensar em milhares de coisas em um só instante enquanto um sorriso tosco se prende aos seus lábios. Eles sabem o quanto são poderosos nesta sala, e fazem questão de deixar isso em destaque para todos.
Porém, algo que aprendi quando estava dentro daquele orfanato infernal é que poder te torna perigoso, poder te torna atrativo, poder te torna um alvo. E alvos são facilmente eliminados. Eu jamais seria um alvo.
– E talvez vocês devessem ouvir alguém que estava na batalha! – Respondi a ele, que pareceu surpreso e levemente interessado. – Não estou me reafirmando, e muito menos sendo uma criança mimada. Mas eu vi a anciã morrendo, e também estava lúcido o bastante quando lhe cortaram o peito e arrancaram o coração com um puxão firme. – Ditei, sem muito medo de chocar qualquer um que quisesse ouvir da forma mais certeira o que havia acontecido com a mulher, por mais horrível que pudesse ser.
– Devemos levar em conta o que foi dito por um guerreiro – disse Luna de repente, mantendo seus olhos em mim. Aqueles orbes castanhos sempre carregariam uma bondade e leveza sem limites, como se pudesse ver o lado bom das pessoas a qualquer momento, até mesmo na pior delas. — Ele esteve ao lado de Ailee quando ela caiu, e tenho certeza que ela o salvou por um motivo, Jay sempre foi um guerreiro valoroso.
– Ela lhe disse algo, antes de padecer? – Perguntou o líder dos cérebros. — Me perdoe retirar sua fala, milady, mas após suas afirmações me perguntei sobre isso. – E ela assentiu da forma mais doce possível, e sorriu na direção do homem. Este que me olhava com curiosidade verídica, como se observasse as reações do experimento mais importante de toda a sua vida, um cientista em busca de respostas.
Ele nãos as teria hoje.
– Não tivemos tempo de dizer nada – menti a ele, que juntou as sobrancelhas como se aquilo fosse realmente impossível, como se realmente conhece Ailee a ponto de duvidar que ela deixaria de dizer algo importante – ela não teve tempo antes de ser atacada, apenas me mandou fugir – dei de ombros, mantendo a mesma postura que costumava usar quando estava no orfanato. Aquilo não importava, eles não tirariam o que querem de mim.
– Então, podemos ver que você tem dois apoiantes, Jay Park – ditou um homem ao lado de Luna, a magreza tomava seu corpo que também parecia ser muito alto, os cabelos brancos se encontravam penteados para trás e os olhos, em tons escuros, se prenderam a mim com tédio visível – diga logo, Lady Luna, sei que não irá condená-lo.
– Não vamos condená-lo, pois não existe justificativa plausível para que isso aconteça! – Respondeu a garota, o tom amável de sua voz sendo substituído por algo bastante duro e convincente. – Jay lutou por nós, nos protegeu, nos guiou por uma floresta desconhecida e defendeu duas anciãs até o último momento. Ailee fez o que pôde por nós, e teve uma morte honrosa, não faça com que algo tão sério se torne distante, Vladimir! – Ele sorriu de canto, dando de ombros em seguida.
– Enfrentamos tempos difíceis, minha Lady, então temos de agir de acordo. E já que este garoto não nos serviu muito, a não ser para dar dores de cabeça, precisamos tomar decisões sérias! – Ditou ele, como aqueles homens que possuíam terras e interesses no palácio, invertendo as posições das jogadas – precisamos de um novo ancião para comandar os caçadores, alguém forte e decidido, nosso melhor lutador. – Juro que senti olhares marcantes em minha direção, inclusive da única pessoa que realmente poderia vir a se tornar a líder dos caçadores.
Dei alguns passos para trás, alcançando novamente Sunghoon, o garoto parecia ser tomado por sentimentos completamente aturdidos em relação a tudo o que acontecia a sua volta, desde o medo gritante por sequer pensar no que poderia me acontecer se aquelas pessoas resolvessem que sou descartável, e um orgulho gigantesco de sua pequena flor de jasmim, que se sentava imponente ao lado de tantos vampiros poderosos e colocava sua opinião em riste, sem hesitar em nenhum instante.
Tentei relaxar minha postura na cadeira em que estava sentado, respirando fundo algumas vezes pouco antes de tentar encarar os anciãos mais uma vez “Vença todos os que lideram de forma injusta”. Essa havia sido a frase dita por Ailee pouco antes de sua morte, um pedido velado, desta vez não era uma ordem a qual este pedido escondia por baixo dos panos, e sim um objetivo.
Em algum momento a anciã dos caçadores sonhou com um mundo melhor, com um lugar onde as criaturas pudessem viver em paz junto dos humanos sem que nenhuma espécie saísse em desvantagem nessa correlação. Um mundo em que ela reencontraria uma amor que lhe tomasse o coração, um alguém curioso e que amasse tanto quanto ela a luz solar, que amasse os rios e a neve e além de tudo, admirasse o fogo que queimava dentro da anciã. Mas para que isso acontecesse nenhuma injustiça poderia correr por estas terras, ao menos por entre as criaturas, por isso ela havia me pedido que continuasse seu sonho e o tornasse meu.
“Vença todos os que lideram de forma injusta”
Eu o faria, quando os garotos se encontrassem seguros e sem alguém para lhes matar a cada segundo eu venceria todas as pessoas as quais Ailee desejasse, mataria quem fosse necessário para que seu sonho se tornasse realidade e o mundo se tornasse um pouco melhor. Porém, por onde deveria começar?
Poucos dos anciãos parecem ser justos o bastante para serem considerados bons líderes, ainda que alguns deles possam ser salvos desta lista negra. E ainda assim, algo que aprendi no pouco tempo que estou preso aqui dentro é que estas pessoas são poderosas. Não no sentido em que lutam bem, como o pai de Sunghoon costumava dizer, poder é relativo.
Este termo pode ser classificado desde o poder que corre em suas veias até o simples fato de ter influências, pessoas o bastante ao seu lado para que continue em um pedestal, longe o bastante de soldados como eu para derrubá-los. Ainda que isso não seja impossível. Tudo o que eu precisaria seriam os caçadores ao meu lado e uns seis membros mais perigosos dos cérebros, uma boa desculpa para assumir o poder e um bom discurso para motivá-los.
Mas não é o que desejo, a única coisa que quero neste minuto é deitar na cama confortável que me espera há alguns andares abaixo deste enquanto um lençol fino cobre meu corpo, e ainda assim estes idiotas não parecem estar nem ao menos perto de encerrar esta reunião.
– Alguém se propõe a se tornar líder dos caçadores? – Ditou aquele mesmo homem que falava antes, olhando para cada uma das pessoas ali dentro que vestiam preto e pareciam cansadas demais para sequer responder esta pergunta simples.
– Mary! A capitã era muito próxima da anciã Ailee, sua aluna predileta e ela própria lhe indicaria se estivesse aqui! – Ditou Jina, parecendo animada com a ideia de tornar Mary um dos anciãos, coisa que complicaria meus planos potencialmente.
– Talvez Jina tenha razão – continuou Luna com um sorriso no rosto, e juro que esperei que ela fosse mais esperta do que isso – quero dizer, Mary tem mais experiência entre todos os caçadores e aprendeu com Ailee, nada mais justo do que ela se tornar a anciã dos caçadores! – Os outros anciãos não pareceram ter objeções contra esta ideia, mais uma marionete para eles controlarem – Faremos um votação. Enquanto isso, vocês estão liberados para voltarem aos seus afazeres. – Ditou a garota mais uma vez.
Não me demorei ao levantar da cadeira e seguir junto de Sunghoon para fora daquela sala sufocante, meu peito ardia em cansaço, me sentia sujo como jamais estivera. A tal poeira de batalha, a velha e boa marca que demoraria dias para desgrudar de sua pele após uma luta sangrenta em que as perdas foram grandiosas e irrecuperáveis.
Meus amigos me guiaram pelos corredores espaçosos até nosso dormitório, neste caso, um quarto que eu dividia com Sunghoon e Jake. Os dois conversavam animados sobre seja lá o assunto, já eu me movi até o banheiro espaçoso ali dentro, com um chuveiro e toalhas limpas, algo realmente admirável se levássemos em consideração a quantidade de pessoas ali.
Por muitos minutos deixei que a água morna descesse por meu corpo, levando toda a sujeira que a batalha deixava em mim. Desde as unhas encrustadas com sangue seco até os cabelos escuros desgrenhados, no inicio os odiei, as mechas em cor preta idênticas ao uniforme utilizado pelos seres que nos sequestraram um dia, porém já me conformo com esta estranheza, e até mesmo ouso dizer que caíram bem em meu visual.
O escudeiro fora deixado para trás, a família de soldados jazia sob sete palmos de terra, Veneza já não é mais tão bela, não possuí o chão de terra, artesãos nas esquinas e cuspidores de fogo em bailes de mascara. As espadas não são usadas e tão pouco floretes, os velhos costumes foram deixados para trás, assim como Jay Park, o soldado de um só Duque, o garoto tímido e que falava pelas ventas.
Ele não existe, fora morto junto das mechas louras. Uma lembrança de dias felizes.
Coloquei roupas confortáveis e me joguei na tal cama confortável que havia falado mais cedo, e pela primeira vez em muitas horas permiti que o sono me levasse consigo.
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