No noroeste, na parte mais escura, densa e quieta da floresta – dizem os antigos e as lendas que – há um monstro.
Um ser sem luz; sem salvação. Um espírito maligno. A definição do pecado encarnado em carne e osso. Condenado a ser amaldiçoado pela eternidade dos tempos. Isolado do mundo, longe dos olhos que julgam e da misericórdia de Deus.
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-Valha-me, Deus! – Exclamou uma senhora num tom de voz levemente mais alto do que os vários murmúrios que pairavam pelo centro comercial da velha cidade, atraindo a atenção de um jovem rapaz que comprava filés de peixe numa tenda não muito longe. Seus ouvidos sempre atentos aos barulhos devido às inúmeras andanças pela floresta. Virou o rosto minimamente; discreto o suficiente para que conseguisse avistar a velha que exclamou com o canto dos olhos – Não diga uma coisa dessas! – A senhora fez o sinal da cruz.
-Ssshh! Não grite! – Outra senhora, ao lado da que havia exclamado, cochichou exasperada, olhando para os lados na esperança de que não tivessem chamado à atenção dos que passavam – Quer que todo mundo nos olhe para que passemos vergonha?! – Suspirou – Ah... Francamente... E estou sendo sincera. Um dia desses, teu filho não volta daquela floresta. Já lhe avisei para que o dissesse que parasse.
-Ora, vire essa boca para lá! A última coisa de que preciso é mau agouro.
-Mau agouro quem traz é aquela floresta, não eu. Estou lhe avisando enquanto há tempo. Arruma um trabalho para aquele menino na padaria perto do poço na praça da cidade. Ou então naquele ferreiro na mesma rua do alfaiate perto da colina; ouvi que estavam precisando de aprendizes ou coisa do tipo – A senhora pegou a mão da outra nas suas, num sinal de compadecimento – Mas tira aquele menino de lá.
A outra senhora puxou as mãos com força.
-Pare com isso que está me deixando nervosa. Floresta há em toda parte. Além disso, meu filho é prudente o suficiente para saber que não se deve ir para aqueles lados da floresta. Depois de todas as histórias que ouvimos e presenciamos, acredito que ninguém ousaria ir até lá.
-Mas isso não se trata apenas do seu filho! Isso se trata...
Jonghyun suspirou, balançando a cabeça para os lados, esperançoso que conseguisse apenas ignorar aquelas conversas. Já escutara o suficiente da própria mãe quando se propôs a executar aquele trabalho.
-Seu peixe, senhor – Disse o vendedor para o rapaz – São quatro moedas de ouro.
-Hm – Jonghyun assentiu, enfiando a mão na pequena sacola de couro amarrada na cintura retirando as moedas dali e trocando-as pela compra – Obrigado.
Em um tempo como aquele, é de se esperar que os cavaleiros do rei possuíssem o título de heróis. Afinal, quem defendia as terras contra o exército inimigo eram eles. Mas... Naquela região em especial, perto das montanhas cujos picos permaneciam eternamente brancos pela neve e pelo frio, onde a neblina se manifestava todos os dias pela madrugada e durante a noite fria; onde as temperaturas baixas viviam ameaçando os moradores e o inverno sempre chegava impiedoso, com ventos gelados que pareciam cortar a pele, que amorteciam a ponta dos dedos e faziam os pulmões doerem... Naquela região, onde a floresta abrigava um perigo constante, escondido nas profundezas da parte mais densa, quieta e escura...
Lenhadores.
Simples lenhadores detinham e honravam o título heróis.
Dispostos a desbravar uma imensidão de árvores, a enfrentar não somente o clima levemente inóspito, como também ursos quando encontravam algum, e, principalmente, o que chamavam de monstro.
Ao longo de sua vida, Jonghyun já escutou diversos nomes para o dito monstro. Já houve quem o chamasse de demônio, mas já ouviu certos “apelidos” como ‘vampiro’, proferidos pelos que clamavam serem “testemunhas”, influenciados pelas antigas lendas; lenhadores que viram um ser enquanto faziam seu trabalho, e que sempre o descreviam da mesma maneira: uma pessoa vestida em branco e preto, com um chapéu preto, a pele tão pálida quanto a própria neve... E a parte que sempre fazia os calafrios brotarem, era que nunca havia um rosto. Coisa que levava a outro dos nomes que as pessoas costumavam usar: um fantasma.
Nunca ouviram aquele ser falar, muito menos viram seu rosto.
E sendo a religião tão sagrada quanto era, algo desse tipo jamais viria a trazer bom agouro. Temiam que fosse obra do diabo para que atormentasse a cidade e fizesse os mais fracos de fé caírem de joelhos pelo caminho mais fácil que ele poderia oferecer. Portanto, o lado noroeste da floresta era terminantemente proibido. E ainda assim, de tempos em tempos havia pessoas que testavam a sorte; ou a fé.
Ninguém nunca voltou.
No caminho para casa, Jonghyun aproveitava a luz do sol que tocava-lhe a pele, embora não conseguisse sentir seu calor da maneira que deveria. Aproveitar porque logo após o almoço ele estaria de volta à floresta. Mãos enluvadas; machado empunhado.
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Dentro da floresta, na parte noroeste, para ser exato, havia um grande lago. Arredondado, enorme; um lago solitário no meio de uma imensidão de pinheiros meticulosamente dispostos um ao lado do outro, tal qual um extenso tapete verde. E, na beira daquele lago, havia um tronco caído, com a ponta virada em direção ao centro da imensidão de água. Ali, uma figura estava sentada graciosamente, observando os pequenos peixes que nadavam próximos à superfície da água cristalina, movimentando o dedo indicador igualmente aos rodopios que os peixes faziam.
O chapéu preto caprichosamente colocado ligeiramente de lado, no qual uma mariposa branca graciosamente havia pousado; um dos braços colocado atrás das costas, apoiando o peso do corpo, e um objeto preto, decorado com pingos de prata repousado no colo, juntamente com um gato de mesma cor.
O vento soprou forte quase ao mesmo tempo em que uma águia gritou e alçou voo, balançando as folhas das árvores, o brinco da orelha direita, esvoaçando os panos da larga camisa branca e rapidamente espantando a pobre mariposa.
A figura levou a mão à cabeça, impedindo que o chapéu voasse. Fechou os olhos, escutando, sentindo e entendendo todos os sussurros que o vento lhe trouxe.
Suspirou.
-Os ursos precisam comer... Talvez não sobrevivam por muito tempo...
Olhou para o lago novamente, desta vez observando o próprio reflexo, antes de colocar o objeto preto de volta no rosto; a máscara.
Levantou-se, espantando o gato negro de seu colo, e habilidosamente andou pelo tronco com a destreza de um felino, pulando na terra, e desaparecendo entre os troncos de árvore vagarosamente.
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Jonghyun engoliu a última gota de suco, antes de baixar o copo de cerâmica na mesa de madeira sem nenhuma toalha por cima. Juntou os talheres, levantando-se de sua cadeira e caminhando até a pia, deixando a louça suja ali, antes de depositar um beijo carinhoso na bochecha da mãe que se encontrava em pé, lavando primeiramente os pratos, e em seguida outro beijo na bochecha da irmã mais velha, que enxugava a louça lavada.
O rapaz moreno caminhou pelo piso de madeira ruidoso até o cabideiro, retirando dali um casaco grosso, vestindo-o rapidamente, e um par de luvas grossas, pendurando-as no cinto.
A mãe do garoto suspirou.
-Jonghyun, você sabe que não precisa fazer isso. A gente consegue sobreviver bem se você sair desse trabalho. Ouvi por aí que o ferreiro-
-Precisa de um aprendiz – Jonghyun completou, suspirando – É mãe, eu também ouvi.
A mulher soltou o prato que lavava para que agora pudesse olhar o garoto nos olhos.
-Então por que continua com isso? Sabe que eu morro de preocupação todos os dias em que você entra naquilo. Agora pior ainda porque estamos entrando no inverno.
Sofrimento.
Apreensão.
Preocupação.
Jonghyun podia ver tudo isso claramente no rosto daquela mulher. Mas não era como se tivesse muita escolha. O pai morrera três anos atrás na mesma época, vítima de uma febre muito intensa, causada pelas doenças que surgiam com o inverno. Tudo o que lhe sobrou foi um velho pingente com a imagem de um lobo que pertencia ao pai e que ele mantém por dentro da roupa, deixando-o mais próximo de si. Jonghyun era novo na época, e ainda é. Está no começo de seus 17 anos, mas pelas tradições do velho vilarejo, já possui idade o suficiente para se casar. Coisa que, aliás, Jonghyun sabe que também preocupa sua mãe, pois nesta idade já deveria ter cortejado alguma boa moça por um algum tempo e estar planejando o casamento, o que, também, era mais um fator de preocupação, uma vez que eles mal possuíam dotes a oferecer.
E não se casar era sinônimo de vergonha. Má sorte, para os mais supersticiosos.
Além disso, ser um singelo lenhador naquela região era algo bem-visto, e para quem tivesse força e coragem para exercer o trabalho, tinha direito a uma parte das toras sem necessitar pagar por elas. E a julgar pela região em que viviam, era algo totalmente bem-vindo, mesmo que o pagamento não fosse exorbitantemente mais alto do que o de um simples ferreiro.
Jonghyun suspirou, caminhando até a senhora novamente e a abraçando.
-Mãe, é uma floresta, e floresta tem em toda parte. Não precisa se preocupar.
-Sabe que não é com isso que eu me preocupo.
-Ah... – Jonghyun suspirou novamente – Sabe que não vou fazer nenhuma besteira. Eu vou voltar, mãe. Eu sempre volto.
A senhora suspirou pesado, abraçando o filho com força.
-Rezo todos os dias para Deus traga-me você são e salvo.
E com um terceiro beijo de despedida na testa da mulher e um segundo beijo na irmã, Jonghyun caminhou até a porta, tomando em mãos o machado colocado ao lado da porta e arrumando-o no cinto, no lado oposto das luvas.
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Era ridiculamente drástica a mudança de temperatura que ocorria quando se entrava na floresta. Jonghyun mal havia penetrado cerca de 50m floresta adentro e a neblina começou a aparecer. Fumaça branca se formava ligeiramente a cada sopro de ar quente que saía da boca.
Nos últimos seis meses, retiraram madeira da parte sudeste; agora era hora de dar um descanso para que a vegetação se recuperasse, por isso, rumaram em direção ao leste.
Os lenhadores mais antigos caminhavam na frente, enquanto Jonghyun seguia logo atrás, e os lenhadores mais novos, ao fundo, traziam os cavalos que puxavam as carroças as quais guardariam a lenha mais tarde.
Assim que os lenhadores mais experientes examinavam a madeira das árvores e escolhiam o local, o trabalho começava. Jonghyun vestiu as luvas e empunhou o machado em mãos. O rapaz cortava de um lado, enquanto outro lenhador cortava de outro, e assim, uma árvore caía. Logo a cortavam em toras, para que depois pudessem despedaçá-la em lenha.
Cansativo. Todo dia era sempre muito cansativo. Jonghyun ainda demoraria a atingir o porte físico daqueles que eram mais experientes, mas isso não impedia que se esforçasse até que o suor escorre pelas pontas da franja.
Mais uma árvore estava prestes a vir à baixo quando os ouvidos de Jonghyun captaram um ruído diferente ao longe, o que fê-lo parar no mesmo instante, embora os outros lenhadores ainda continuassem a lascar os troncos das árvores.
-Escutaram? – Perguntou.
Um dos lenhadores mais experientes parou por um momento, prestando atenção aos seus arredores até que outro grunhido fora ouvido, desta vez por ambos o lenhador e Jonghyun.
-Hey, hey! – O lenhador chamou a atenção – Parem seus machados por um momento. Escutem.
Outro grunhido fora ouvido; desta vez mais próximo, automaticamente colocando todos os lenhadores em estado de alerta. Novamente outro grunhido fora ouvido, ainda mais alto que o anterior, e, consequentemente mais próximo. E junto ao próximo grunhido, veio também um urso-pardo que passava por ali, aparentemente inquieto, movimentando a cabeça para todos os lados. Não era tão grande quanto a maioria que vagava pela floresta, portanto, muito provavelmente ainda não era um urso adulto. Mas isso não significava que eles não poderiam ser atacados, e que o estrago feito seria pouco.
Jonghyun tencionou-se imediatamente, apertando as mãos com força no machado.
-Ninguém se mexe – Cochichou um dos lenhadores mais velhos – E nem faz barulho...
O urso os avistou, mudando completamente seu curso na direção dos lenhadores. Jonghyun engoliu a seco ao perceber que era para ele onde o urso estava indo.
-Jonghyun, não se mexe... – Cochichou um dos lenhadores entre os dentes, fazendo o mínimo de movimento possível.
-Eu sei... – Jonghyun respondeu no mesmo tom. Sentiu uma gota de suor escorrer da testa até o pescoço à medida que o animal se aproximava de si. Adulto ou não, aquele bicho ainda era gigante; e se por acaso decidisse atacá-lo, com certeza o urso era do mesmo tamanho que Jonghyun, senão maior, quando ficasse em pé.
Jonghyun prendeu a respiração quando o urso estava a cerca de dez passos de si. Depois oito. Depois cinco... E o coração batia mais rápido a cada passo dado pelo urso, bombeando adrenalina para todas as fibras do corpo do moreno. O urso deu meia-volta, cheirando uma das árvores tombadas ao lado; girou a cabeça para o outro lado, e, finalmente, foi embora. E foi apenas quando perderam vista do animal que todos relaxaram os músculos, soltando um profundo suspiro de alívio.
Jonghyun deu-se o luxo de se sentar no chão, deixando o machado de lado, retirando as luvas e jogando-as no colo para poder esfregar o rosto e respirar fundo.
-Esses bichos são enormes... – Murmurou consigo mesmo.
-Não – Respondeu um dos lenhadores – Você ainda não achou um dos grandes.
Jonghyun bufou.
-Quatro meses atrás um desses, adulto, nos atacou, lembra? – Retrucou o moreno com um sorriso torto no rosto.
-Não... Eu digo realmente dos grandes.
E aquilo foi o suficiente para silenciar aquela conversa.
Quatro meses atrás um urso-pardo com um porte maior do que o de agora os havia atacado. O fato é: são lenhadores, não caçadores; mas isso não significa que devem apenas sucumbir ao destino e deixarem-se ser mortos por um urso. O resultado foi que todos tiveram um banquete de carne aquela noite, além da pelagem que dividiram entre si. Não que a carne de urso fosse mais cobiçada do que a de cervo, mas com o inverno chegando, toda proteína é bem-vinda.
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O sol estava se pondo quando os lenhadores retornaram da floresta, sendo agraciados pela beleza do céu levemente alaranjado em contraste com os brancos picos das montanhas ao longe. Mas bastou colocar um único pé para fora dos domínios da floresta para que o tumulto que se passava chegasse até seus ouvidos.
-Calma!! Calma! Minji, se acalma!! – Um homem gritava ao longe, segurando os braços de uma mulher que chorava desesperada.
-Não! Não!! – A mulher berrava, batendo as mãos fechadas em punho contra o peitoral do homem – Não... – Murmurou – As crianças! Como me pede para que eu fique calma?! As crianças!! – Gritou uma última vez, antes que afundasse o rosto no peitoral do homem e somente seus soluços fossem ouvidos.
Movido pela compaixão, ou talvez pela curiosidade, um dos lenhadores mais velhos se aproximou do casal.
-Com licença, eu poderia perguntar o que houve?
-As crianças... – O homem murmurou, mordendo os lábios – Meus sobrinhos, filhos dela, desapareceram e ela acha de que eles foram para a floresta...
-Eles foram!! – A mulher gritou, retirando o rosto do peitoral do homem abruptamente – Logo hoje de manhã cedo eles colocaram na cabeça que queriam brincar de esconde-esconde naquele local e eu não deixei. Mas... – Ela correu as mãos pelos cabelos, enroscando-os nos dedos e apertando com força – Mas eles sempre foram teimosos... – Olhou para o chão enquanto as lágrimas escorriam – Meu Santo Deus, por favor, ajude-me...
-Senhora... – O lenhador mais velho falou manso, logo virando o rosto para os outros lenhadores que permaneceram por perto – Nós... Podemos tentar procurar, mas... Está ficando escuro e... E...
-E fica difícil de enxergar – Jonghyun completou, trocando um olhar de cumplicidade com o lenhador mais velho. A mulher não precisava saber que “perigoso” era a palavra correta. Apenas a atormentaria ainda mais e isso não seria bom – Talvez... Fosse sensato pedir ajuda a algum caçador também. Poderíamos ter mais chances.
A pobre mulher apenas mordeu os lábios, chacoalhando a cabeça fervorosamente para cima e para baixo, enxugando as lágrimas do rosto desajeitadamente.
-Senhora... – Continuou o lenhador mais velho, com calma – Posso perguntar onde se encontra seu marido?
-Vi... – Ela soluçou, fazendo o possível para se acalmar – Viajando... – Outro soluço – Ele é mercador...
-Hm – O lenhador mais velho assentiu – Eu compreendo. E quanto às crianças? Quantas são? Como elas são?
-Du-Duas. Um menino mais velho e uma garotinha. As roupas dele são verdes e ela... Ela está com um vestido amarelo com... Com alguns detalhes em azul...
-Hm – O lenhador mais velho assentiu novamente – Vamos fazer o possível – Andou até o local em que o resto dos lenhadores estavam concentrados – Os mais novos levarão os cavalos com a lenha, o resto entrará comigo na floresta. Faremos buscas individuais, cada um cobrindo uma região. Assim que o sol se por completamente, eu quero todo mundo de volta aqui. Se encontrarem algum urso, já sabem como reagir. E não hesitem em atacar se precisarem...
E assim, Jonghyun estava de volta à floresta pela segunda vez naquele dia. Suspirou fundo.
Minha mãe não vai gostar nem um pouco quando souber...
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Andar sozinho pela floresta, sem ter a obrigação de cortar lenha a toda hora deixava o serviço muito mais fácil, sem dúvida. Jonghyun conseguia ser mais silencioso, mais atento, evitando pisar nos galhos secos e os amontoados de folhas pelo caminho, controlando a respiração e deixando a audição bem apurada para qualquer barulho que escutasse.
O moreno andou, procurando entre cada árvore que avistava, cada gruta e toca por onde passava, cada arbusto que esbarrava. E conforme ele penetrava na floresta e o tempo passava, cada vez mais a neblina se tornava densa. Congelou-se em seu lugar quando se assustou ao encontrar uma cerca de madeira a sua frente. A cerca de madeira; aquela que deixava clara e nítida a divisão da parte noroeste da floresta das demais. Jonghyun engoliu a seco. Havia andado tanto assim sem ter percebido? Ora essa, é uma floresta, afinal de contas. Tudo se parece, o que deixa mais fácil para que se perca a noção de tempo e distância. Além disso, o garoto ainda não está completamente familiarizado com as dimensões daquela terra. Em três anos, conseguiu vasculhar seis das oito áreas, sendo uma das oito, o lado noroeste, retirando esta automaticamente da lista. Suspirou pesado, sentindo os pelos da nuca se eriçarem ao encarar a cerca de madeira.
Quais as chances de que as crianças possam ter percorrido todo esse caminho e ultrapassado a cerca?
Jonghyun suspirou novamente, esfregando o rosto com as mãos. Ora essa, eram crianças no final das contas. A tendência em desobedecer ordens e avisos é absurdamente alta. Tinha certeza de que se arrependeria posteriormente, mas sabia que se não o fizesse agora, o remorso o corroeria mais tarde caso as crianças não fossem encontradas.
Uma chance. Uma pequena e minúscula chance. E Jonghyun, então, resolveu testar a sorte, ultrapassando a velha cerca de madeira e entrando nos domínios do lado noroeste da floresta.
Os domínios do ser que a população tanto evitava e mantinha viva as lendas. Um ser que Jonghyun não discordava em voz alta que fosse real, mas questionava sua existência em sua mente; ou, pelo menos, seu propósito.
Bastou colocar um pé no outro lado da cerca para que um vento forte soprasse. Jonghyun engoliu a seco. Não tinha um bom pressentimento quanto a isso. Mas apesar de tudo, o garoto não era tapado. Não ousaria adentrar profundamente aquele lado da floresta a menos que fosse realmente necessário. Decidiu que rodearia a área perifericamente, sem abusar demais sua sorte. E à medida que se infiltrava, mesmo que superficialmente, seus passos ficavam mais pesados, os galhos mais quebradiços e secos, as folhas nas quais pisava, mais ruidosas, e sua respiração mais alta.
Mas... O fato era que nada disso era verdade. Muito pelo contrario...
Quem ficou silenciosa...
Foi a floresta.
E Jonghyun congelou-se em seu lugar novamente, sentindo um arrepio perturbador percorrer o corpo.
Nenhum pássaro cantando; nenhum bater de asas; nenhum inseto zumbindo. Somente o vento que soprava vez ou outra balançando as folhas das árvores. Como era possível que uma região inteira de uma floresta ficasse calada?! Isso não poderia ser um bom sinal.
E não demorou muito até que ouvisse um grunhido familiar, fazendo com que parasse congelado em seu caminho, arregalando os olhos levemente.
Outro urso?!
Jonghyun seguiu com os olhos o animal que subia a ligeira colina ao longe, antes de engolir a seco e voltar a caminhar na direção oposta, mas rapidamente parou quando após ouvir outro grunhido do urso, ouviu também um par de gritos agudos.
-Droga... – Murmurou o moreno entre os dentes, antes de disparar a correr em direção ao barulho, rezando internamente para que o que quer que tivesse acontecido às crianças, não tivesse sido o urso – Droga, droga, droga, droga!
E seu coração se apertou ainda mais quando escutou outros gritos.
Droga! Droga!!
Um caroço formou-se em sua garganta quando, ao subir a colina, Jonghyun avistou o urso de um lado, e no lado oposto, dois pequeninos serem encolhidos, caídos no chão, com o rosto estampado em pavor. O urso grunhiu, colocando-se em pé, fazendo com que as crianças gritassem, ficando cada vez pior a medida que o animal se aproximava.
-Crianças!!! – Jonghyun berrou. O urso rugiu, novamente, desta vez com força, apavorando os pequeninos. Jonghyun podia escutar soluços. Sabia que pelo menos uma das duas crianças já estava chorando – Se abaixem!! – Jonghyun gritou novamente, empunhando o machado em mãos. Sinceramente, ele não tinha a mínima vontade de entrar em uma briga sozinho com um urso. Aquele ali, com certeza, era ligeiramente menor do que o que vira mais cedo aquela tarde, entretanto o estrago que poderia causar não, mas não podia deixar que machucasse as crianças. Como poderia voltar para casa e honrar sua masculinidade se não o fizesse?!
-Não ouse!! – Uma voz estranha e longínqua gritou, parando os movimentos de Jonghyun por um breve segundo, antes que outro rugido do urso ecoasse e Jonghyun erguesse seu machado, a poucos passos de distância do urso – Eu disse não!! – A voz gritou novamente, e antes que Jonghyun deferisse a machadada no animal, um vulto apareceu em sua frente, com os braços esticados, bloqueando o caminho, enquanto uma águia enorme desceu do céu num mergulho, bloqueando o urso de investir contra as crianças.
Houve um momento de tensão, no qual tanto Jonghyun quanto a figura de branco à sua frente respiravam com dificuldade; o peito subindo e descendo rapidamente, em busca de ar. E o moreno arregalou os olhos, sentindo os pelos do corpo se eriçarem ao ver e reconhecer o quê aquela figura era.
Roupas brancas e pretas.
Chapéu negro.
Pele pálida feito a neve.
E sem rosto.
-Não o machuque... – A figura disse fracamente devido a falta de ar, trazendo a atenção de Jonghyun novamente a si – Ele não tinha intenção de machucar as crianças.
Jonghyun bufou, incredulamente.
-O quê... ? – Sussurrou – Saia da minha frente – Jonghyun segurou o machado em mãos de maneira defensiva – Aquele animal vai matar as crianç-
-Não, não vai! – A figura exclamou, logo em seguida amansando a voz – Não vai... – A figura engoliu a seco, abaixando os braços calmamente – É um filhote. A mãe foi morta há quatro meses. O inverno está chegando, ele ainda está aprendendo a caçar e assustou-se quando as crianças gritaram assim que ele passou distraidamente.
Jonghyun arregalou os olhos levemente.
-Morta... Há quatro meses? – Sussurrou.
A figura suspirou pesadamente.
-Minho, leva o filhote para longe daqui – E sem desviar o foco do lenhador, prosseguiu – E veja se consegue abater alguma lebre e alimentá-lo.
A águia piou ruidosamente, alçando voo e rodeando o urso, que agora encontrava-se sentado, acima da cabeça. Assim que o animal se colocou nas quatro patas, a águia voou para longe, sendo seguida de perto pelo filhote.
Jonghyun, sem perder tempo e aproveitando a oportunidade de ouro, correu para as crianças que ainda tremiam e tentavam secar as lágrimas que insistiam em cair. O moreno agachou-se diante delas, arrumando o machado em sua cintura e pegando-as no colo, cada uma em cada braço, tendo seu pescoço abraçado fortemente logo em seguida.
-Sshh... Sshh... – Jonghyun sussurrava – Acalmem-se... Está tudo bem agora... Está tudo bem...
O moreno levantou-se, ansioso para sair daquela região o quanto antes, mas a mesma voz fê-lo parar em seu caminho.
-Vocês a mataram – A figura sussurrou.
Jonghyun respirou fundo, antes de se virar e responder secamente.
-Ela nos atacou-
-Ela estava desesperada!! – A figura exclamou – O inverno está chegando e ela tinha um filhote para alimentar!! – A figura suspirou profundamente, tentando se acalmar – Um conselho? – Engoliu a seco – Nas próximas vezes, leve um pedaço de carne enrolado num pedaço de couro para disfarçar o cheiro de predadores. Se um urso aparecer e atacá-los novamente, basta que lhe dê o pedaço de carne. Ouça bem lenhador... A fome é cruel.
Jonghyun precisou de um segundo para poder assimilar tudo o que lhe foi dito. Massageava as costas das crianças que ainda chorava baixinho, fazendo círculos com os polegares enquanto seu cérebro trabalhava para que pudesse manter a calma e entender a situação.
-O que é você? – Perguntou o lenhador, antes que pudesse parar a própria língua.
-Responda-me você. Chamam-me de tantos nomes... Constroem uma divisória e vocês mesmo a ultrapassam. Não os entendo... – Houve uma pausa, antes que continuasse – Agora, por favor, dê o fora daqui.
E sem dizer nenhuma palavra, Jonghyun deu meia-volta e saiu à passos largos em direção a cerca, antes que a noite caísse completamente.
E parado, entre as árvores da região noroeste, estava a figura de preto e branco, com os dedos trêmulos e a respiração levemente descompassada. Retirou a máscara com calma e esfregou o rosto, correndo os dedos pelos cabelos e respirando profundamente, na esperança de que se acalmasse.
-Maldição...! Faz... Faz tanto tempo desde a última vez que conversei com alguém que minhas mãos não param de tremer...
• • •
Quando Jonghyun avistou partes do vilarejo pelos espaços vazios entre uma árvore e outra, o sol já havia praticamente se posto. O moreno fora o último a regressar de dentro da floresta; todos os outros estavam ali, esperançosos e ao mesmo tempo preocupados.
Assim que a figura do rapaz saiu de dentro das árvores, segurando ambas as crianças nos braços, naturalmente a mãe veio correndo ao encontro delas, pegando-as no colo e ajoelhando no chão, abraçando os pequeninos com força e juntando-se ao choro.
Jonghyun deu alguns passos para trás, não tendo a mínima vontade de se juntar à cena e se tornar um dos centros das atenções. Entretanto, ainda assim, ganhou alguns tapinhas nas costas dos lenhadores que permaneciam ali, deixando nas entrelinhas que, sim, o garoto fez um excelente trabalho, e que já era hora de voltar para casa. Jonghyun deu um pequeno sorriso, sem muita vontade em retorno. Mas no momento em que o moreno decidiu girar o corpo e ir embora, foi recebido por um par de braços que envolveram seu pescoço violentamente, fazendo com que fosse obrigado a dar três passos para trás para que não perdesse o equilíbrio e viesse ao chão. Em seguida, um choro abafado invadiu seus ouvidos.
Jonghyun suspirou, deixando que um pequeno sorriso escapasse dos lábios enquanto seus braços envolviam a cintura daquela senhora.
-Ah, mãe... Não chore.
Pelo caminho todo de volta para casa, Jonghyun foi acompanhado pela mãe, educadamente conduzindo-a pelas ruas, tendo seu braço enganchado ao dela, tal qual um cavalheiro. E assim que finalmente entrou pela porta de casa, fora recebido pela irmã do mesmo jeito que fora pela mãe pouco tempo atrás.
Entretanto, naquela noite, ao invés de sentir orgulho de si mesmo e sorrir pela família que teve o privilégio de ajudar a reunir, a mente do rapaz dava voltas e voltas. Deitado em sua cama, olhando pela janela do quarto, examinava a noite escura contrastando com os picos brancos das montanhas e as estrelas brilhantes no céu faziam-no se lembrar da figura de branco e preto que encontrara mais cedo, e não somente isso.
E se... Ele não tivesse arriscado ultrapassar a cerca? Teria salvado as crianças? Qual seria o fim daquela mulher se ela não tivesse os filhos de volta? Sem dúvidas, ela ficaria extremamente abalada; mas supondo que ela chegasse a engravidar novamente, seria uma possibilidade de preencher o vazio que se formaria em seu coração.
Mas... E se a situação fosse o inverso? Se a mãe fosse quem tivesse desaparecido? Como as crianças sobreviveriam? De certo, seriam acolhidas pelo tio. Mas... E se não houvesse tio? Se elas ficassem sozinhas... Assim como... Assim como aquele filhote de urso?
Sozinho.
Desesperado.
E faminto.
-Fome...
Jonghyun sabia o que era isso. Já havia sentido na pele quando era mais novo.
• • •
Na manhã seguinte, Jonghyun se levantou sistematicamente da cama, arrumando-se e saindo de casa, desta vez, junto com a irmã, caminhando em direção à feira no centro comercial da cidade, como fazia todos os dias. O suposto noivo da irmã provavelmente viria jantar consigo esta noite. Precisavam, no mínimo, agradá-lo, uma vez que o pretendente estava disposto a desconsiderar o dote caso a mão da garota lhe fosse concedida.
Jonghyun estava feliz pela irmã, mas ao mesmo tempo tinha medo de si. Não sabia que coisas o futuro lhe traria. Só esperava que pudesse honrar a mãe e o falecido pai.
Dos comerciantes, Jonghyun comprou um saudável e ligeiramente grande peru, alguns vegetais, pão e uma pequena garrafa de vinho caseiro, recebendo um pequeno desconto em uma coisa ou outra pelo comentado “feito heróico”. Havia acabado de pagar pelo vinho e estava se preparando para ir embora quando a voz grossa e estridente do açougueiro lhe chamou a atenção. O moreno girou o rosto, avistando os pedaços de carne amontoados pela mesa.
“Se um urso aparecer e atacá-los novamente, basta que lhe dê o pedaço de carne”
Jonghyun grunhiu ao relembrar daquela cena. Fechou os olhos e sacudiu a cabeça para os lados. Adiantaria mesmo fazer isso?
- Carne de cervo! – Gritou o açougueiro novamente – Macia e suculenta!
E Jonghyun grunhiu novamente, cedendo aos pensamentos.
-Sodam – Chamou a irmã – Espere aqui, vou comprar um pouco de carne. Eu já volto.
-Mas Jonghyun, já temos o bastante com esse peru-
-Eu sei – O moreno interrompeu calmamente, oferecendo um sorriso para a irmã – Só espere um pouco que eu já volto.
Sodam nada perguntou. Apenas deu de ombros e riu fracamente. Assim, ambos voltaram para casa. E debaixo do braço, Jonghyun carregava uma pequena peça de carne de cervo coberta em couro.
• • •
Da mesma maneira que foi no dia anterior, Jonghyun juntou os talheres e colocou toda a louça na pia enquanto a mãe e a irmã limpavam tudo. O garoto deu um beijo de despedida em cada uma, em seguida retirando e vestindo o casaco grosso que estava no cabideiro e também as luvas, logo rumando em direção a porta e arrumando o machado no cinto.
Abriu a porta e colocou um pé para fora, mas antes que colocasse o segundo, a voz daquela figura veio à sua mente de novo. Respirou fundo, regressou um passo para trás e olhou para dentro da casa, dali avistando parte da mesa da cozinha.
Deveria ou não levar?
O garoto sequer entendia porque havia comprado o pedaço de carne mais cedo naquela manhã. Além disso, quais as chances de que aquilo daria certo? Jonghyun sacudiu a cabeça para os lados, enfim saindo definitivamente pela porta. Ataques de ursos não eram frequentes daquela maneira. Estava certo de que demoraria muito para que ocorresse um novamente. Pelo menos, o rapaz tinha razão de que não perderia o alimento tão cedo, porque, afinal, a região fria colaborava para que a carne não estragasse facilmente.
E embora o moreno estivesse relativamente longe do território daquela figura, fazendo seu trabalho e lascando os troncos das árvores, seus pensamentos giraram em torno dela o dia todo: de manhã, na feira comercial; logo após o almoço, quando estava saindo para ir fazer seu trabalho como lenhador; e a partir do momento em que adentrou a floresta, a única coisa na qual conseguia pensar era na maneira como aquela figura se comportou.
Jonghyun não havia contado a ninguém que fizera contato com o ser que julgavam tão malévolo. E quando o perguntaram onde achou as crianças, mentiu; respondeu que estavam perto de alguma caverna na região oeste, e que um urso as estava rodeando, razão pela qual elas haviam retornado tão abaladas de dentro da floresta. Porque... Afinal, o que ele ganharia dizendo que fez a loucura de ultrapassar a cerca que delimita o território da região noroeste? Ou até pior, dizer que viu o ser que as lendas descrevem, dizer que conversou com ele e que simplesmente deu meia-volta e foi embora ileso? Apenas causaria pânico dentro do velho vilarejo. Até porque, depois de tanto tempo, ele, junto com as crianças, seriam os primeiros que voltaram vivos daquele lugar, depois de ter encontrado a tão famosa e temida “bruxa”.
Temida...
Jonghyun deu uma machadada com força na casca do velho pinheiro.
Temida por quê, afinal?
Ora essa, não pareceu, em momento algum, que a bruxa estava com sede de sangue e que iria matá-los. Pelo contrário, ainda o aconselhou quanto aos ataques de ursos. Mas... Ainda assim, era suspeito. Um pedaço de carne? Isso não iria atrair mais predadores, mesmo com o couro encobrindo o cheiro?
Jonghyun suspirou. Não estava disposto a testar essa teoria tão cedo. Também não tinha a menor vontade de comentar o ocorrido com alguém, já que preferiria ser poupado de interrogatórios, ou até pior, também ser acusado como bruxo e queimado vivo por conspirar a favor da ‘bruxa’.
O rapaz havia encontrado as crianças e as trazido de volta para os braços da mãe. Já estava de bom tamanho.
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Dezenove.
Dezenove dias se passaram desde que ele havia entrado na parte noroeste da floresta.
A carne de cervo ainda estava intacta. Conservada. E naquele dia, quando estava prestes a sair de casa, pôde ouvir a voz da bruxa em sua mente repetindo as mesmas palavras daquela vez. Jonghyun respirou fundo, apertando os dedos na porta de madeira que ainda permanecia aberta enquanto ele encarava o pedaço da mesa da cozinha que podia avistar dali.
Por algum motivo, simplesmente se sentia hesitante demais para sair de casa sem a carne de cervo. Não havia motivo específico. Apenas... Um sexto sentido gritando loucamente em sua cabeça que, talvez, naquele dia valesse a pena tentar seguir o conselho que lhe fora dado. Respirou fundo, indo até a cozinha. Naquele dia, Jonghyun trouxe a carne de cervo embrulhada em couro consigo para a floresta. Colocou-a dentro de uma das carroças que os cavalos puxavam, e pôs-se a trabalhar.
Não que estivesse esperando, torcendo, para que algo acontecesse, mas podia sentir claramente a ansiedade crescendo dentro de si a cada barulho ligeiramente diferente que escutava que não fosse o barulho dos machados contra a casca dos pinheiros.
Até que, finalmente, no meio da tarde, um súbito rosnado, forte e próximo, fez com que todos os lenhadores parassem suas atividades no mesmo instante e, enfim, notassem o enorme urso que se aproximava. O focinho franzido, os longos caninos a mostra, e as orelhas curvadas para trás. O animal começou a rodeá-los, rosnando de tempos em tempos, até que uma hora, o urso ficou de pé. Jonghyun perdeu o ar por um segundo. O animal passava, tranquilamente, dos 3m de altura e devia ter quase o mesmo peso de um cavalo, se não, mais.
O moreno reparou em como a pelagem do urso se arrepiava e suas orelhas se curvavam para trás cada vez mais. Isso era péssimo. Simplesmente terrível. Enquanto um urso se mantém nas quatro patas, ele pode estar tentando o que chamam de “ataque-blefe”, querendo apenas afugentar o que ele considera perigoso para si, mas a partir do momento em que um urso se coloca em duas patas, significa que você é o alvo dele.
Jonghyun, silenciosamente, deu um pequeno passo para trás. Em seguida deu outro, sendo o mais gentil possível na hora de aterrissar a sola do pé nas folhas secas para que evitasse fazer barulho.
O urso rugiu novamente, desta vez investindo contra um dos lenhadores, deferindo uma patada. O lenhador recuou a tempo de se esquivar por pouco, e assim, a pata do urso atingiu um dos troncos das árvores, rasgando a casca com as garras afiadas. O urso pousou nas quatro patas, mas se colocou em pé rapidamente, rugindo mais uma vez, mostrando os longos caninos.
-Não... Não ataquem ainda – Jonghyun sussurrou, estando agora a meros dois passos da carroça.
-O quê?! – Um dos lenhadores se virou na direção do rapaz e se surpreendeu em não encontrar Jonghyun no lugar em que estava. Correu os olhos pelo local até encontrá-lo ao lado da carroça – O que está dizendo? O que está fazendo?!
-Rezando para que dê certo – Respondeu o rapaz, retirando da carroça um embrulho de couro. Olhou para o lenhador que o havia chamado e jogou o embrulho para ele.
-O que é isso?!
-Carne – Jonghyun engoliu a seco – Mostra isso a ele e depois jogue longe. Com sorte ele vai atrás disso, e não de nós.
-Ficou louco?! – O lenhador perguntou incrédulo, mas um forte rugido a sua frente fê-lo ceder à ideia. Desembrulhou o pedaço de carne e mostrou-a ao urso – Hey! – Gritou, chamando a atenção do animal. Balançou o suculento pedaço de cervo duas vezes na frente do urso, observando como os olhos do animal seguiam a carne, antes de jogá-la longe.
E para o alívio de todos, o urso correu em direção à carne, cheirando-a, embora sem tirar os olhos do grupo de lenhadores. Até que num dado momento, o urso simplesmente espetou os dentes na carne e foi embora correndo.
Jonghyun esfregou as mãos pelo rosto, correndo os dedos pelos cabelos enquanto deslizava as costas pela carroça, até sentar no chão.
-Eu não acredito que deu certo... – Murmurou o rapaz, ainda em choque, com a respiração ofegante.
Cinco minutos de trégua foram dados para que todos se acalmassem, sentados no chão, procurando normalizar a respiração e colocar os pensamentos em ordem.
-Jonghyun... – Chamou o mesmo lenhador de antes, virando-se para o menino – Primeiro: como sabia que ia funcionar? Segundo: por que trouxe um pedaço de carne?
-Eu... – O garoto ofegou – Eu não sabia. Tive essa ideia alguns dias atrás, mas achei bobagem – Mentiu – Só por Deus eu resolvi trazer o pedaço de carne dessa vez.
O lenhador levou algum tempo analisando as feições do garoto, antes de suspirar e assentir com um pequeno sorriso no rosto.
-Então... Agradeçamos a Deus que você a trouxe hoje – Riu soprado.
-É... – Jonghyun riu também, porém forçado, com os pensamentos novamente na figura de máscara vestida em preto e branco – Agradecer a Deus...
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Escassos raios de sol ainda iluminavam fracamente a floresta; a temperatura estava começando a cair cada vez mais e ao longe ele conseguia escutar o som fraco de corujas despertando. Jonghyun já não mais sabia por que estava ali, parado, em frente à cerca que dividia a região noroeste das demais.
Oh... Certo. Sim, ele sabia. Agradecer...
À bruxa.
E havia inventado a desculpa mais esfarrapada possível para que os outros lenhadores não se preocupassem ou suspeitassem de alguma coisa: procurar ervas. Ervas estas que, supostamente, a mãe do garoto havia pedido que procurasse pela floresta caso houvesse oportunidade. Disse que não demoraria muito e que a partir do momento em que as corujas começassem a piar, retornaria à cidade. Oh... Se eles soubessem...
Jonghyun engoliu a seco, ponderando as opções que tinha, enquanto olhava para a ampla vegetação de pinheiros a sua frente. Não tinha tanta certeza se voltaria vivo desta vez, mas, internamente, ele se recusava a acreditar que aquela figura que, indiretamente, salvara sua vida, pudesse ser de algum perigo. O garoto respirou fundo, juntando toda a sua coragem e, enfim, ultrapassou a cerca pela segunda vez, logo sentindo o vento soprar forte de súbito.
O jovem lenhador sabia que para encontrar quem procurava precisaria penetrar naquela região sem medo. Bem, era mais fácil pensar do que fazer, mas estava determinado a saber por que a bruxa não o matou; ou pelo menos agradecer por não tê-lo feito quando pôde e por tê-lo aconselhado sobre dar um pouco de carne aos ursos. Por alguma razão, todas as lendas e relatos dos moradores do velho vilarejo, de repente pareciam falsas acusações. E então, Jonghyun se colocou a andar floresta adentro, sem jamais tirar a mão direita do machado preso em sua cintura.
Estava caminhando cegamente por um lugar que não conhecia, sem orientação nenhuma, uma vez que as estrelas ainda estavam começando a aparecer no céu. Escutava alguns piados de corujas ao longe; escutava alguns uivos de lobo, mas a cada passo, os barulhos se tornavam mais abafados e distantes, tal qual a última vez, até atingir o silêncio, salvo somente pelo farfalhar das folhas das árvores e dos galhos que se quebravam quando ele pisava.
Sinceramente? Um certo pânico começou a crescer dentro do garoto. Estava odiando a sensação de estar no meio de uma imensidão de árvores pelas quais jamais havia andando e saber que a cada momento ficava mais escuro enquanto a noite tomava conta. A região noroeste era silenciosa por algum motivo, mas não significava que não havia animais, afinal, em sua última aventura lá, testemunhou um urso e uma águia. E mesmo que as lendas dissessem que ninguém nunca retornava de lá, se não era a bruxa quem os matava, alguma coisa tinha que ser. E por um breve momento, Jonghyun pensou que talvez já não soubesse mais como sair dali. E num momento de desespero, fez a primeira coisa que lhe veio à mente.
-Olá? – Ele gritou – Com licença! – Gritou novamente, girando a cabeça rapidamente para os lados quando escutou vários bateres de asas em seu redor, mas continuou andando – Você poderia... Por favor, aparecer?! – Girou a cabeça para os lados novamente, notando que a escuridão, enfim, havia tomado conta da floresta totalmente – Droga... – Sussurrou consigo mesmo, antes de gritar uma última vez – Olá?!
-Poderia, por favor, parar de gritar?! – Jonghyun se virou abruptamente para direção de onde vinha aquela voz – Alguns animais estão tentando dormir. Incluindo a mim.
Jonghyun arregalou os olhos levemente.
Lá estava ela. Aquela mesma figura. Atrás de um tronco de árvore próximo. A larga blusa branca de gola rendada, a calça preta, com uma máscara e um chapéu, caprichosamente inclinado para o lado, de mesma cor.
Acanhadamente, a “bruxa” saiu de trás do pinheiro, andando a passos cautelosos e curtos, parando relativamente longe do lenhador.
-O que você quer? Por que está aqui novamente? Veio tentar me matar também? – A figura perguntou apressadamente, sem dar espaço algum para a resposta; e a última pergunta pegou Jonghyun desprevenido.
-Matar...? – Jonghyun franziu o cenho, indignado – Não!
A figura deu um passo para trás, sinalizando com o dedo indicador para o machado no cinto do garoto, o qual Jonghyun ainda segurava firmemente.
-Oh! Não! – Jonghyun ergueu as mãos em sinal de rendição, balançando a cabeça com certo desespero para os lados – Não! Eu apenas... Tive medo que algum animal me atacasse pelo caminho. Eu lhe asseguro que não vim lhe causar mal algum – Jonghyun respirou fundo – Muito pelo contrário, eu vim... Vim lhe agradecer pelo outro dia... E... E p-por ter me aconselhado quanto ao-
-Mentira!! – Exclamou a figura – Ninguém vem aqui para me agradecer por nada...!
-Eu juro a você... – Jonghyun retirou o machado do cinto – Pela minha vida... – Colocou o objeto no chão – Que eu não vim para te fazer mal – Endireitando-se em seguida e erguendo as mãos no ar. Houve um momento de tensão; silêncio, em que nenhuma das partes ousou proferir uma palavra.
Entretanto... Uma curiosa mariposa colocou-se no meio daquelas duas pessoas, fazendo seu desajeitado caminho em direção ao inocente lenhador, o qual, comicamente, girava o rosto para os lados, na tentativa de evitar que a mariposa pousasse em si. E bastou que Jonghyun erguesse a mão, prestes a espantar a mariposa para longe, para que fosse impedido.
-Não! – A figura gritou de súbito, assustando Jonghyun que congelou imediatamente em seu lugar, deixando que a mariposa, por fim, pousasse em sua bochecha esquerda – Não... Por favor, não o mate... – A figura correu até o lenhador – Jinki, saia daí! – A bruxa pediu num tom de quase desespero, e prontamente a mariposa levantou voo novamente, desta vez em direção à bruxa, pousando em seu chapéu. A figura suspirou abafado devido à máscara – Não importa quantas vezes eu peça, você nunca obedece, não é? Você sempre foi teimoso dessa maneira?!
Jonghyun piscou os olhos várias vezes, observando a cena atônito.
-Você... Está fazendo isso de novo... – Sussurrou o jovem lenhador – Você... Está falando com animais... Você pode falar com animais?!
E num estalar de dedos, a bruxa voltou sua atenção no jovem a sua frente, que até então estava praticamente esquecido.
-Por que ainda está aqui? – Deu um passo para frente – Por que quer saber isso?! – Deu outros dois – Está tentando tirar informações de mim para que depois possa vir me matar?! Não sou assim tão tolo!!
-Não!! – Jonghyun se apressou em negar – Não!! Eu já lhe disse! Eu juro por Deus que não tenho intenção nenhuma de lhe fazer mal algum! Olhe... Meu nome é Kim Jonghyun. E-Eu sou um dos lenhadores desta floresta e eu moro no velho vilarejo aqui perto. Eu estive aqui outro dia quando fui resgatar as duas crianças daquele urso. Você apareceu com uma águia e me impediu de ferir o animal, lembra-se?! – Jonghyun quase tropeçou nas próprias palavras, afobado para que a bruxa, enfim, entendesse que ele não significava perigo.
E novamente, houve um momento de silêncio.
-Por que ainda está aqui? – Sussurrou a bruxa, genuinamente surpresa – Por que fica e não foge?
-Porque de algum jeito que acredito que você não seja uma má pessoa.
-Todos acreditam que eu sou uma má pessoa-
-Mas eu não – Jonghyun interrompeu.
E Jonghyun pôde perceber nitidamente como a bruxa hesitou por um momento. Pôde ver como ela engoliu a seco, e ouvir o breve sobressalto de respiração.
E naquele momento, o jovem lenhador se sentiu vitorioso, porque exatamente naquele momento, ele testemunhou que, de fato, a bruxa não era cruel como diziam as lendas.
-Como eu disse – Jonghyun continuou – Eu vim para agradecer por ter me impedido de matar um urso inocente, e por ter me aconselhado quanto ao pedaço de carne. Ajudou-nos bastante hoje mais cedo... Obrigado.
A bruxa rapidamente girou o rosto, como se desviasse o olhar do menino, mas Jonghyun reparou a maneira com a qual os pálidos dedos finos cheios de anéis seguravam o pano da larga blusa branca.
-Você... Mora sozinho? – Jonghyun perguntou antes que pudesse segurar a língua, e instantaneamente a bruxa virou o rosto para ele – Ahn...! Desculpe-me... – Jonghyun abaixou a cabeça, mas voltou a perguntar – Quantos anos você tem?
-Por que continua fazendo perguntas?!
-Desculpe!! – Jonghyun ergueu as duas mãos em sinal de rendição novamente – E-Eu... Estou curioso! Acabei de confirmar que existe... Existe... Hm... Uma... Bruxa de verdade na região noroeste, mas que é completamente diferente do que as lendas descrevem...! – Mordeu os lábios, subindo os olhos para a mariposa branca pousada no chapéu preto – E que ainda por cima também fala com animais...
A bruxa apenas abaixou a cabeça.
Jonghyun suspirou.
-Posso... Fazer mais uma pergunta?
-Qual... ?
-Por que... – Jonghyun mordeu o lábio – Por que não salva as pessoas? Digo... Por que não foi salvar as crianças aquele dia?
-São duas perguntas – A bruxa suspirou novamente – Mas... Se isso matar a sua curiosidade... Eu não tenho direito de controlar as coisas dentro da floresta. As pessoas violam a cerca que elas mesmas criaram por pura e espontânea vontade. Eu não mato, nem salvo ninguém. A menos que venham me matar... Mas eu detesto isso... E quanto às crianças... A floresta apenas me diz quando humanos entram, e quantos são. Ela não faz distinção entre criança ou adulto, senão... Eu teria impedido antes. Crianças ainda são puras. Não possuem a maldade no coração que a maioria das pessoas tem.
Jonghyun franziu o cenho.
-Você conversa com a floresta?!
-Com essa são três perguntas...
-Oh... – Jonghyun baixou a cabeça – Me desculpe... – Curvou o corpo em direção ao chão para pegar o machado de volta e enganchá-lo no cinto – Acho que já está na hora de eu ir embora. Foi... Um prazer – Sorriu sinceramente, curvando-se levemente. Girou o corpo para o lado dando alguns passos em alguma direção qualquer, antes que uma voz o chamasse novamente.
-Espera!!
Jonghyun parou e girou o corpo em direção à figura que o chamou.
-Não... Não vá por esse caminho. Há lobos mais a frente. Vá por lá – Apontou com o dedo indicador – Há um pequeno rio a alguns minutos daqui... Se você seguir o curso dele, vai chegar à cidade sem problemas.
Jonghyun assentiu, mudando de direção e seguindo pelo caminho apontado. Mas antes de sumir entre os troncos dos pinheiros, girou o rosto para a figura, oferecendo mais um sorriso.
-Eu disse que você não era uma má pessoa.
E assim que o jovem lenhador sumiu por entre as árvores, a bruxa rapidamente virou-se de costas e retirou sua máscara, tocando suas bochechas; quentes e vermelhas.
-Hey... Jinki... – E logo a dita mariposa voou graciosamente do chapéu negro para a mão pálida da bruxa – Foi por isso que você voou até ele? Por que você sentiu que ele era diferente?
E como se a mariposa tivesse respondido, a bruxa sorriu fracamente, acariciando cuidadosamente o inseto com o polegar.
-Aqueles olhos... – A bruxa murmurou – Aquele sorriso... Me pergunto porque parecem familiares...
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