A oficina possuía dois andares, embora o segundo fosse só um galpão, e a primeira coisa que ativou os sentidos de Keith ao entrar foi o cheiro de queimado.
Ele causou o tilintar familiar dos sinos sobre a porta assim que a abriu, mas não deu ao som delicado muita atenção ao esticar o pescoço para tentar enxergar o mecânico que tentava resolver algo com meio corpo debaixo do capô erguido de um carro.
-Hunk? -arriscou chamar, seus coturnos chutando alguma chave enquanto dava passadas compridas até o outro.
O mecânico ergueu a cabeça, e abriu um sorriso.
Hunk não devia ser muito mais velho do que o próprio Keith, mas era consideravelmente mais alto. Provavelmente um goleiro ameaçador, tinha os ombros mais largos e as pernas mais grossas que o coreano já vira, sem falar de seus braços que eram quase do tamanho do tronco de Keith.
E ainda assim, Hunk fora abençoado com o coração de um coala.
Fazendo jus à essa fama, o grande havaiano deixou de lado seu trabalho, e afastando a fumaça do rosto, seguiu até Keith tempestuosamente, o engolindo em um abraço que fedia a óleo de motor e graxa.
Keith silenciosamente lamentou a perda de sua melhor jaqueta quando percebeu as manchas do lubrificante de motor nos braços de Hunk.
O garoto afastou-se, então, pousando uma mão enorme no ombro quase frágil do outro.
-Keith! -sua voz era muito mais amigável do que sua aparência- Por que demorou tanto, cara? A viagem da sua cidade até aqui é de tipo, uma hora e pouco. Não tem nem pedágio. -soltou-o, secando o suor da testa com um pano imundo que pendia do bolso do macacão.
-Se eu contar o que aconteceu, você não acredita -Keith fez sua melhor expressão de “É sério”, erguendo as sobrancelhas. Hunk ergueu as dele de volta. Keith ergueu as suas mais ainda. Hunk se superou e ergueu ainda mais. Keith ficou sem espaço na testa.
O mecânico riu, e Keith tinha de admitir que, mesmo frequente, seu sorriso era adorável. Hunk deveria ser protegido a todo custo.
-Pode me contar, o que não me falta é tempo -ele encolheu os ombros, se afastando para voltar ao trabalho- Você demorou tanto que eu decidi adiantar esse garotão aqui -apontou com o polegar para o Corona de capô levantado- E ele ‘tá me dando problemas. Então, é. -se debruçou na máquina, um sorriso travesso- Tem pressa?
Keith gesticulou com negligência, como se não se importasse com a hora de chegar em casa. Ou de pegar estrada, de qualquer forma.
Então, enquanto Hunk trabalhava, o coreano contou-lhe toda a saga, desde o enjoativo cheiro do mar, até quando sua moto resolveu morrer antes mesmo dele conseguir encostar, do aparelho sem sinal naquela maldita pirambeira e o resto de gasolina que fora todo queimado em seus inúteis esforços de religar a máquina. Acabara apodrecendo no acostamento por exatos quarenta e quatro minutos, sem nada com o que se distrair a não ser os próprios dedos, até um caminhoneiro tão pobre-coitado como ele mesmo aceitar dar-lhe uma carona até a cidade mais próxima – levando sua amada motocicleta junto do carregamento.
Não mencionou o garoto surfista. Não ainda. Embora ele ainda parecesse deslizar por sua mente como fazia entre as ondas, e Keith pensava ter visto uma sombra de sorriso em seu rosto pardo enquanto ele brincava entre a espuma como se houvesse feito aquilo a vida toda.
...Nossa. Estava mesmo escrevendo poesia mental para um estranho que mal vira o rosto? Vergonhoso.
De qualquer forma, tinha coisas mais interessantes a pensar, como na risada reverberante de Hunk, debruçado sobre o motor – do qual desprendia uma fina fumaça escura.
-Meu Deus, Keith -ele sacudiu a cabeça- Ou você é o cara mais azarado desse estado, ou o Universó só decidiu não ser muito legal com você hoje.
-Espero mesmo que seja só um dia ruim -respondeu- Ou uma semana ruim. Ou um mês ruim.
Hunk lhe deu um soquinho. Keith sorriu de canto e esfregou o braço como se houvesse doído. Hunk com certeza sabia bater, mas também sabia controlar sua força quando era para ser uma brincadeira.
-Bom, mas você está aqui agora -argumentou o moreno, inspecionando uma peça que lhe parecia particularmente sabotada- Vai levar a encomenda pra casa e cumprir seu trabalho. Final feliz.
-É, acho que sim -murmurou, um pouco desligado. Percebeu que Hunk continuava falando, e falando, mas não conseguia dar total atenção quando um dos tons de azul no desenho técnico colado na parede o lembrava tanto a roupa de mergulho do garoto de mais cedo.
Hunk não pareceu notar que ele reiniciara. Finalmente, o motor parou de soltar fumaça e ele baixou o capô com um estrondo, sobressaltando um distraído Keith que estava encostado de braços cruzados na lateral do Corona antigo.
-Você ouviu pelo menos uma palavra do que eu disse, Keith? -perguntou, com um sorriso malandro. Talvez houvesse, sim, notado seu reboot.
-Ah, um -fez, embaraçado- Você, falava sobre o carro?
Hunk piscou um olho, como se dissesse: “Boa saída”.
-Pois é. É o mesmo Corona daquele velho cliente nosso, velho cliente em todos os possíveis sentidos da palavra -sorriu.
-O Corona do Coroa -murmurou Keith, voltando a cruzar os braços, e sentiu-se especial ao ver o sorriso de Hunk aumentar.
-Ai meu Deus -disse- Não acredito que fez essa piada. Eu morro de orgulho.
Keith deu de ombros, presunçoso. Hunk sacudiu a cabeça e prosseguiu:
-Enfim, ele vive falhando o motor e voltando para o concerto, mas o senhor continua insistindo que a Betsy funciona bem demais da conta. -deu uns tapinhas no metal, rindo-se- Mas ela já é praticamente residente da oficina.
-Ele parece o Shiro -Keith refletiu- Lembra da época obcecado-por-carros-antigos dele? Ele queria um Mustang 1967. Guardou dinheiro por meses.
Hunk abafou uma risada.
-Lembro.
-Eu nunca entendi. O que tem de tão interessante em carros? Motos são tão melhores e mais versáteis.
-Qualquer coisa que te ajude a dormir à noite, Kogane. -Hunk sorriu, e Keith revirou os olhos.
O garoto mais alto produziu um “Bom”, antes de se espreguiçar e, consequentemente, estralar todas as juntas das costas. Keith notou que essa era uma mania que havia pegado dele.
-Falando em motos, quer que eu dê uma olhada na Bela Florence? Ela morreu na estrada, não?
Keith assentiu, seguindo Hunk até fora da oficina, onde estacionara sua motocicleta. Hunk nunca o deixaria esquecer de sua época indie, durante a qual decidira o nome de seu veículo em homenagem à cantora. Ao menos não fizera da homenagem um trocadilho, como Florence Wheels ou algo assim.
Isso seria terrível demais.
Sentou-se no chão mesmo enquanto Hunk testava a partida, dando perda total em seus jeans ao presenciar a marca simplesmente hedionda de sujeira que se prendera para sempre em suas coxas quando se encostara no Corona empoeirado.
O maior trabalhava em silêncio, e não era de qualquer forma como se a falta de assunto incomodasse os dois.
Estavam acostumados ao silêncio. Enquanto Hunk era muito falante com alguns, ele entendia que Keith às vezes só precisava de um tempo ao seu lado, e não necessariamente conversando.
Só era mesmo estranho o coreano ter decidido quebrar a calmaria.
-Humm, Hunk? -esperou o outro virar a cabeça em sua direção, com um “Hum?”- Você por acaso, ah... -torceu os dedos. Debateu internamente se era uma pergunta realmente importante. Ou relevante, de qualquer forma.
-Eu?
-Você tem... -mastigou o lábio- Algum amigo surfista?
Hunk pensou por alguns instantes. Então concluiu:
-Tenho alguns. Por que a pergunta?
-Mas, tipo, algum que more por aqui? Mais exatamente, que tenha uma prancha azul com detalhes amarelos e um cabelo escuro meio mal cortado?
Keith gesticulava enquanto falava, o que era estranho por si só. Hunk deixou um sorriso deslizar por seu rosto quadrado, interessando-se.
-Soa familiar, sim. Algum surfista bronzeado e bonitão cruzou seu caminho, caro Kogane?
Keith corou. Era estranho ver Hunk fazer aquele tipo de brincadeiras. Não um estranho ruim, apenas...estranho. Mas ele se permitiu ver as coisas com menos overthinking e tentar relaxar. Deu de ombros.
-Ah, não exatamente -não mentia- Eu só...vi um cara? Na praia? E, sei lá, era o único louco no mar numa tarde de primavera, e a costa não era muito longe daqui de qualquer forma, então, só imaginei.
Esperou não ter soado muito nervoso. Desviou o olhar, se limitando a ouvir o “Hum” de Hunk, não exatamente convencido.
-Talvez... -ele voltou a prestar atenção nos circuitos da moto- Talvez eu tenha, sim, um conhecido nessa descrição. Conhecido. Por acaso você ia querer o nome e telefone dele?
Seu coração pulou uma batida. Queria? Pensou se não seria muito estranho. Tipo, “Oi, eu te vi a alguns metros de distância esses dias, você estava na praia, e foi muito sexy quando você começou a surfar e eu queria saber se você quer conversar? Talvez desenvolver um relacionamento? Aliás, meu nome é Keith.”
O coreano sacudiu a cabeça. Não. Simplesmente não ia rolar.
-Só fiquei curioso pra saber se ele era daqui, mesmo -deu de ombros, dando a conversa por encerrada.
Hunk mudou de assunto. E terminou o trabalho em sua moto. Dentro de poucos minutos – entre os quais o sol já baixara e agora ele teria que seguir a estrada da orla no escuro –, Keith já estava equipado, com gasolina nova, as peças encomendadas bem seguras na bagagem, e vários quilômetros se estendendo à sua frente.
Hunk lhe mandara uma piscadinha antes que ele vestisse o capacete. Keith se sentiu todo estranho por dentro. Esperava que ele não chegasse no dia seguinte para o primeiro surfista que visse, tipo, “Qual sua opinião em garotos coreanos com excelente gosto em música e péssimo gosto em filmes? Descreva em detalhes”. Embora isso soasse mais como algo que Shiro faria.
Shiro às vezes agia como seu irmão mais velho perdido há anos. Keith não se surpreenderia se um dia descobrissem ser de mesmo sangue.
Seguiu pela estrada silenciosa, nenhuma companhia além das ondas quebrando à distância, das estrelas, e do roncar da moto enquanto devorava os quilômetros.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.