Em algum momento da viagem Dustin acabou cochilando ainda segurando a minha mão. Enquanto minha mãe permanecia calada, mantendo os olhos somente na estrada e fingindo que não havia ninguém no banco de trás. Essa era uma das coisas que eu já havia me acostumado.
- Eu não vou aceitar a sua proposta. - falei enfim.
- Por que não? - indagou sem nem mesmo olhar para mim.
- Eu não quero ser como você ou como o meu pai.
- Eu posso não te conhecer tão bem, mas sinto que esse não é o único motivo.
- Talvez não seja o único. Mas é o bastante. - retruquei olhando para ela pelo retrovisor, mas ela desviou o olhar no mesmo segundo.
- E o que você pretende fazer? Ser um grande artista? Não seja tão sonhador.
- Sonhador? Eu sou tudo, menos um sonhador. Mas de qualquer maneira eu não quero a sua ajuda. Vou descobrir o que quero fazer e conseguir algo, sozinho, sem você.
- Em algum momento você precisará de mim.
- Eu nunca precisei de você. Meu avô sempre cuidou de mim. Você apenas "ajudava" com o dinheiro porque talvez se sentia culpada.
- Eu não me sentia culpada. - falou com um tom de deboche.
- É pior ainda.
Voltamos a ficar em silêncio, e apesar de estar um belo dia lá fora, aqui dentro estava um clima muito pesado. Eu estava tão irritado quando nem havia reparado que Dustin já estava acordado.
- Chegamos. - disse a minha mãe com a voz seca de sempre.
Eu abri a porta do carro e saí antes dela. Esperava que Dustin estivesse logo atrás de mim. O sol já estava bem quente, provavelmente já era mais de meio-dia. Era bom estar de volta àquela antiga casa - talvez a mais antiga do bairro, porém muito bem conservada. O pequeno jardim de plantas - que eu não sabia os nomes - estava lindo, vovô amava seu pequeno jardim e me deixava regar quando eu era menor.
Eu fui até a varanda da frente onde meu avô deixava uma mesa com duas cadeiras - onde já jogamos truco e dominó diversas vezes - e claro, a sua velha cadeira de balanço.
Eu bati na porta três vezes e esperei que alguém a abrisse. De repente quando vou bater a quarta vez uma senhora de cabelo preso e roupas de enfermeira abriu a porta.
- Quem são-
- Anne, viemos ver meu pai. - se adiantou minha mãe interrompendo a mulher e passando na minha frente.
- Oh, sim, senhorita. Eu tinha me esquecido, me desculpe. Entrem, por favor. Ele está perfeitamente bem hoje.
Era como estar de volta ao lar. Eu não consigo explicar o cheiro reconfortante que a casa do meu avô tinha. Nada havia mudado, tudo estava no mesmo lugar desde a última vez que o visitei. Ele era um pouco apegado aos móveis antigos. Um relógio antigo de parede que fazia "tic-tac". Uma TV não muito "moderna" que ele adorava. O sofá até que era mais recente, totalmente de couro. Acho que foi um presente de aniversário.
- Eu o trouxe. Como me pediu. - interveio minha mãe colocando sua bolsa em cima do sofá e pendurando seu casaco. - Ele trouxe um amigo com ele.
E só então eu vi meu avô sentado em uma poltrona em frente a televisão e a enfermeira ao seu lado, como se fosse uma espécie de guarda-costas. Assim que ele olhou pra mim eu sorri e fui abraça-lo.
- Vovô, como você está? - perguntei depois dele ter me soltado.
- Me sentindo como se tivesse trinta anos. - brincou sorrindo com todos os seus dentes. - Não precisava deixar suas férias para vir me ver.
- Eu adoro ficar aqui. Sabe disse.
- E este deve ser o Justin. Aquele seu amigo que pedi que cuidasse de você.
- É Dustin, senhor. - ele o corrigiu de forma educado apertando sua mão.
- Senhor? Eu não vejo senhor algum aqui, rapaz. - poderia ser só impressão minha, mas ele parecia bastante tímido.
- Vou passar essa noite aqui, amanhã de manhã eu saio. - avisou minha mãe com os olhos concentrados em seu tablet. - Tenho muitas coisas para fazer.
- Tudo bem. - respondeu meu avô enquanto me encarava. Era o mesmo olhar que ele fazia para me repreender sempre que eu fazer algo que não devia. E ele sabia que eu iria dizer algo, mas não disse. - Você pode ficar no quarto de hóspedes e os meninos, bem... No seu antigo quarto, Josh.
- Certo. Eu vou buscar nossas coisas no carro. Vamos, Dustin.
- Anne, ajuda eles, por favor.
- Vô, não precisa. Não trouxemos tantas coisas. Pode ficar aqui Anne.
Um pouco mais tarde depois de termos comido algo, a minha mãe ficou trancada dentro do quarto de hóspedes, enquanto nós três ficamos na sala conversando. A enfermeira que na verdade fazia diversas coisas que não tinha nada a ver com a saúde do meu avô, saiu para fazer compras para casa. Aparentemente ela tinha um quarto só para ela e passava o dia todo com meu avô. Pelo menos ele tinha alguma companhia.
- Eu teria trago Elias, mas sabe como a minha mãe é. Ela iria reclamar.
- Sim, eu sei. Depois eu falo com ele. Aposto que ele ficou com ciúmes de você ter trago o Justin ao invés dele.
- Dustin, vô.
- Sim, sim, me desculpe. Eu não sou muito bom com nomes.
- Não tem problemas, senhor. - respondeu um pouco tímido. Era estranho ver um garoto tão extrovertido como ele ficando tímido.
- Você não me disse que ele era tão quieto assim.
- Ele não é. - respondi segurando um sorriso. - Deve estar com vergonha. - eu apertei sua bochecha e ele apenas sorriu em resposta.
- Filho, eu sei que a mãe dele é meio intimidadora. Mas não liga pra isso. Ela sempre foi assim. Até comigo.
- Ah, Josh já tinha me avisado sobre isso. Mas acho que pessoalmente é bem pior. - meu avô riu dele e ele pareceu relaxar um pouco mais.
- Marley, meu velho. - acariciei o grande labrador que veio correndo em minha direção literalmente do nada e se apoiou em minhas pernas. Ele realmente já estava bem velho. - Pensei que o senhor não o tinha mais.
- Marley? Ele é meu companheiro de vida. Quer dizer, agora eu tenho uma enfermeira também. Convenhamos que Anne é muito bonita. - ele deu uma piscadela e um sorriso travesso. - Com todo respeito, claro. Gosta de animais, rapaz?
- Hã? - Dustin estava tão maravilhado acariciando o cachorro que mal estava prestando atenção na conversa. Sua expressão de desentendimento era ótima. - Oh, sim, eu gosto. Mas acho que eu prefiro gatos. Sem ofensas, garoto. - disse a Marley.
- Josh, também gostava bastante de gatos. Ele tinha um bem bonitinho que ele chamava de Mozart.
- Mozart, sério? - ele estava rindo de mim. - Sim, sim, um nome muito legal pra dar a um gato. Josh sempre foi criativo. Mas o marido de minha filha era um saco e deu o gato para uma criança qualquer, só para implicar com Josh.
- Que triste… Minha mãe nunca me deixou ter um gato. Ela achava que não era uma boa ideia. Eu não poderia cuidar dele.
- Josh. - minha mãe apareceu no corredor me olhando séria e apreensiva. - Quero conversar com você.
- Vá, eu fico com seu amigo. - me assegurou vovô. - Vou mostrar a casa para ele.
- Já volto. - eu me levantei e segui minha mãe até o quarto de hóspedes em silêncio. Apenas com o barulho de seus saltos no chão. - O que você quer? - perguntei assim que entramos no quarto.
- Eu já disse o que eu quero. Conversar. - disse ela ainda com a pose de quem despreza qualquer opinião que não seja a dela mesma.
- Conversar sobre o quê?
- Sente-se. - pediu. Sem pestanejar eu fiz o que ela mandou e me sentei na beira da cama. - Há algum tempo atrás tivemos uma conversa ao telefone. Que se não me engano o seu... "Amiguinho" - disse com deboche. - que você trouxe aqui, nos interrompeu.
- Está falando da vez que você estava completamente fora de si e bêbada?
- Não precisamos lembrar da parte constrangedora. - ela se senta ereta um pouco distante de mim. - Eu estava prestes a lhe contar algo muito importante que na verdade eu não pretendia lhe dizer nunca.
- Você pode parar de falar comigo como se eu fosse um investidor e ir direto ao ponto?
- Bem, eu contei primeiro ao seu avô e ele achou melhor que eu te contasse.
- Então...?
- Eu sei que eu já te contei sobre como me envolvi com meu ex-marido. Digamos que talvez eu tenha mentido.
- Um momento, deixa eu ver se eu entendi. Você está mesmo assumindo que mentiu pra mim? Que cometeu um erro? Você está bêbada?
- Por favor, me respeite. Ainda sou sua mãe.
- Certo. Continue.
- Vou resumir toda a história dramática. Você na verdade é filho do homem que eu amava. Mas eu menti pra todos porque não tínhamos condições de criar uma criança. Já tínhamos muitas dívidas.
Eu fiquei quieto tentando assimilar tudo o que ela havia me dito.
- Ok. Seu ex-marido descobriu isso? - indaguei ainda meio perdido.
- Quando você estava crescendo ele percebeu sozinho. Por isso tinha tanta raiva de você. Mas de uma forma estranha ele ainda gostava de mim, então, continuamos juntos. Não era um relacionamento saudável, eu sei, mas só tínhamos um ao outro. - ela fez uma pausa. - Eu não pensei apenas em mim. Eu queria ajudar meus pais. E queria algo melhor pra você. E por isso eu deixei de lado o meu... Amor.
- Eu não sei o que deveria dizer. Eu... Eu nem sei o que eu estou sentindo. Se sinto raiva, ou tristeza, ou pena de você.
- Não sinta pena de mim. Eu não preciso que sintam pena de mim. Apenas quero que entenda o meu lado. Quanto ao seu pai, não sei o que aconteceu com ele, sinto muito.
- Naquela noite que você estava bêbada, você disse algo que parecia que você estava falando de outra pessoa, e não do... seu ex-marido. Disse que eu me parecia com "ele".
- Sim, você se parece muito com ele. Por isso preferi manter distância. Achei que todo o dinheiro e o conforto seriam o suficiente.
- Mas não é.
- Seu avô me dizia isso. Mas é difícil ficar perto de alguém que nos lembra tanto um amor do passado. Eu sou muitas coisas, mas eu não consegui ser egoísta naquele momento. Eu não podia deixar você ter uma vida ruim, de sofrimento e miséria. Eu queria algo melhor, para todos vocês. Enfim, era isso o que eu queria te dizer. - ela se levantou ereta outra vez e continuou me encarando.
- A sua vida é realmente um drama. - comentei ainda tentando me recuperar da notícia. - Você fez a sua escolha. Fez o que achou que era melhor.
- Me desculpe, talvez não tenha sido o melhor a si fazer.
- Se lamentar não vai mudar nada. - disse a ela. - Pelo menos você resolveu me contar a verdade, mesmo que a ideia não tenha vindo de você. Obrigado, eu acho. Eu te desculpo por… tudo.
- Não quer saber nada sobre ele? - questionou me olhando com desconfiança. - Acho melhor não. Se eu souber que ele era uma ótima pessoa vou me sentir mal e me arrepender de ter te desculpado.
- Ok.
- Espero que, agora, sem o seu marido, você melhore.
- Melhorar em quê?
- Em tudo. - ela ficou perplexa e pensou muito antes de dizer algo. - Você conseguiu não ser egoísta uma vez. Talvez devesse tentar novamente.
- Certo… Não faça o que eu fiz. Se o ama, não o deixe partir.
- De quem está falando?
- Eu não sei. Quem você ama?
- Não temos intimidade o suficiente para discutir sobre isso.
- É verdade. Mas saiba que não me importo com o gênero e nem origens. Se é o que quer, vá em frente.
- Tuuudo bem. - falei sem entender como nossa conversa tinha chegado ali.
Aparentemente ela sabia que eu não era hétero antes mesmo de mim, mas não queria falar sobre isso também. Apenas olhei para ela uma última vez antes de sair de seu quarto. Ela poderia não demonstrar, mas ela havia tirado um grande peso de suas costas e estava aliviada com isso.
- Eu não estou com raiva de você por nada disso. Você até que teve um bom motivo. Eu não odeio você, eu apenas… sinto falta. - disse antes de fechar a porta atrás de mim.
Depois de andar por toda a casa, eu encontrei meu avô e Dustin do lado de fora de casa. Vovô estava sentando em sua cadeira de balançar rindo alto e Dustin estava brincando com Marley no gramado. - Ele me lembra de quando eu adotei Marley. Eu fiquei muito feliz em ter um amigo peludo e brincalhão. - eu sorri me lembrando de como vovô havia ficado empolgado com a chegada de Marley.
- Dustin já cuidou de um esquilo.
- Mesmo? - perguntou, surpreso e de olhos arregalados.
- Sim.
- Garoto interessante. - disse rindo. - Veja, ele está tentando tirar uma foto de Marley a horas. Coitado.
Após várias tentativas falhas ele finalmente conseguiu fazer com que o cachorro ficasse sentado e quieto e tirou a foto. Ele até mesmo conseguiu uma foto com Marley, isso sim era impressionante. Eu nunca havia visto ele tão feliz por tirar uma foto.
- Eu disse que conseguiria. - disse todo orgulhoso para meu avô enquanto se sentava no chão ao invés de se sentar na cadeira, o que não consegui entender bem.
- Parabéns. Estou muito surpreso. - o cachorro se deitou ao lado da cadeira dele. - Uma câmera instantânea. Pensei que ninguém mais usava uma dessas hoje em dia. Tudo agora é tão... Tecnológico.
- Gosto dessas câmeras, elas são bem úteis e práticas.
- Bem - ele olhou para seu relógio de pulso. -, é hora de tomar uns remédios e medir a temperatura. Fiquem a vontade.
Marley seguiu meu avô para dentro de casa. E eu fiquei apenas com Dustin na varanda. Logo, logo iria escurecer e teríamos que entrar para o jantar.
- Vem comigo. - eu o chamei indo em direção à uma árvore onde se eu bem me lembrava havia uma espécie de balanço que cabia duas pessoas - talvez até três.
- Um balanço na árvore? Legal. - ele se adiantou e se sentou antes de mim. Eu fiz o mesmo em seguida. - Como foi a conversa com sua mãe?
- Foi de boa. - eu olhei pra ele. - Ela apenas queria me contar que o marido dela, na verdade, não era meu pai.
- Não? - indagou, confuso.
- Não. Meu pai é um amor do passado dela. Depois de dezessete anos que ela me conta isso.
- Wow… Onde ele está agora?
- Ela não sabe. Mas acho que é melhor assim.
- Eu deveria dizer algo, não é? Eu não faço ideia do que falar, me desculpa.
- Não tem problema. Eu também não soube o que dizer pra ela.
- Mas como ficou as coisas entre vocês dois, melhores ou piores?
- Acho que melhor, não tenho certeza. Ela teve uma boa intenção. E eu não posso odiar ela por querer o melhor para a família dela.
- Sabe, até que você se parece com ela.
- Como assim?
- Você se faz de durão que nem ela. A sua mãe não parece ser do tipo que rir muito, como você. Aposto que seu sorriso é parecido com o dela. - eu revirei os olhos.
- Nunca vi ela sorrir. - admiti. - Enfim… Meu avô gostou de você.
- Ele disse isso?
- Não, mas eu o conheço. - ele abriu um grande sorriso.
- Que bom!
- Vamos sair amanhã.
- Sair? Pra onde?
- Bem, vou te mostrar alguns lugares da cidade. E também quero ir ao shopping.
- Céus, eu vou conhecer uma nova cidade, finalmente. - ele riu. - Eu vou ganhar algo?
- Interesseiro. - brinquei com ele que apenas ria e ficava vermelho. - Sim, você vai.
- Eu estava brincando.
- Eu sei. Mas eu não.
- Não precisa me dar nada. Eu trouxe dinheiro comigo- eu o interrompi.
- Dustin, você me deu quadros caros e eu aceitei. Me deixe comprar coisas pra você, sem reclamar.
- Tudo bem, tudo bem. Mas-
- Sem "mas".
- Você é tão mandão. - ele fez beicinho. Eu virei o rosto pra ele não me ver sorrindo daquilo.
Continua....
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