História Welcome to the Jungle - Instinto

“Ponde vós estas palavras em vossos ouvidos, porque o Filho do homem será entregue nas mãos dos homens.”

Lucas 9:44

JEON JUNGKOOK

Não tardou para que a neve começasse a cair. Logo nossas pegadas seriam apagadas como se nunca tivessem passado por ali. Este era o mesmo caminho pelo qual trilhamos todos os anos no fim do outono. O familiar céu cinza daquela região acompanhava o bando quando os primeiros raios de sol apareceram por entre as nuvens.  

Como líder da alcatéia, eu guiava os outros na forma de um lobo. Precisava estar atento ao momento. No entanto, era inevitável não procurar por aqueles pares de orelhas únicos que seguiam junto à multidão. Estava me deixando levar pelas emoções. 

Embora os outros membros da matilha discordassem, a decisão foi irredutível. Inevitavelmente, alfas possuíam um lado vaidoso. Trazê-lo aqui era uma falta grave como líder. Porém, para o alfa que existe dentro de mim, o híbrido era valioso demais para ser esquecido.

Não tardaria para a notícia chegar nos ouvidos de bandos rivais. A floresta era um lugar inóspito para um híbrido civilizado como ele. Não seria um percurso fácil para um híbrido criado em uma aldeia humana. Ainda que fosse uma terra amaldiçoada pela ganância dos homens, seria difícil se libertar daquela espécie de “lavagem cerebral” sem conhecer toda a verdade.  

Não ia ser simples de explicar, mesmo para o outro rapaz, o ômega que se disfarçava de híbrido. Apesar de conhecer muito da história dos lobos, o amigo de Jimin não tinha a menor ideia do passado sombrio.

Embora estivesse ocupado em zelar pela segurança dos meus seguidores, me incomodava não poder me aproximar dele. Não trocamos uma só palavra durante todo o dia.

Ao cair da noite, vi seus tropeços pelo canto do olho, por conta do chão irregular. Se bem que ele estava se saindo muito bem para um meio-humano que nunca esteve na floresta antes. Parecia menos assustado com a presença de Hoseok. Mas, continuava abatido por não ter tido a chance de se despedir do irmão mais velho.

Precisei criar uma estratégia para que os dois entendessem o real perigo que corriam, principalmente para Jimin. Infelizmente, o que se escondia por trás daquelas árvores poderia ser perturbador para ele.

— Sinto muito, por perder o controle na frente do garoto — Lisa dizia quando paramos para descansar.

— Não é a mim que você deve desculpas. Eu a recebi como um membro da nossa matilha, mesmo não sendo uma loba. Não hesitaria em matá-la para proteger um dos meus. 

Ela podia ser uma bruxa velha por trás daquele rosto jovial, mas ainda dependia da nossa segurança para sobreviver. Por mais que fosse uma mulher de confiança. Os humanos sempre cobiçaram mais do que conseguiam suportar.  

— Não voltará a se repetir, meu líder — disse com uma breve reverência antes de se afastar.

Os lobos estavam agitados. Com razão. Um híbrido entre nós poderia ser uma declaração de guerra entre todos os clãs. Não podia ignorar o peso que a presença dele representava. O momento da revelação não poderia passar desta noite.

— Não fique tão tenso na frente dos outros — Yoongi sussurrou com a mão em meu ombro. 

— Eu esperava uma reação irracional vinda de Taehyung, mas você não ajudou muito trazendo outro morador da aldeia conosco.

— Estamos longe o suficiente agora, mesmo que os humanos se importassem com eles, nunca os encontrariam. 

— Isso não garante nada. Podemos ter evitado um conflito com os homens, mas a notícia vai se espalhar. Precisamos levar os dois para aquele lugar.

— Não podemos demorar ou isso atrasaria todo o bando, mas eu concordo com o que você diz. Eles seriam alvos fáceis se continuassem sem saber do passado.

— Os outros não precisam saber para onde vamos. Eu estudei nos mapas o melhor caminho. Se tudo ocorrer como o previsto, estaremos de volta antes do nascer do sol. 

Circulei o acampamento indo na direção dele. O clima denso da floresta não era agradável mesmo para os lobos, por isso, Jimin parecia bastante cansado. Não é de agora que noto a forma atrapalhada que ele se comporta, não era surpresa que ele não conseguisse usar os instintos. 

Isso seria um problema. Por uma fração de segundos, ele não caiu de cara no chão depois de enroscar os pés em alguns arbustos.

— O que há de errado? — disse o segurando pelo braço.

— Não enxergo quase nada no escuro — ele admitiu chateado.

— E os seus olhos de gato? Híbridos de felinos enxergam melhor no escuro que os outros meio-humanos.

— Como sabe disso? — ele desconversou inquieto.

Decidi aproveitar a distração dos outros com a fogueira para levá-lo sorrateiramente para dentro do breu. 

— Precisamos conversar um pouco sobre os seus olhos — disse vendo se estávamos longe o suficiente.

— Por que isto te interessa tanto? — ele falou.

— Se não conseguir usar seus instintos, não vai durar muito tempo com a matilha. Não é sempre que viajamos durante o dia. Então terá que aprender a enxergar no escuro. 

— Sei bem como seguir meus instintos — ele mentia muito mal. 

— Cheiro e audição são os mais primitivos. Se quiser aprender, terá que ir mais além. Híbridos de felino não são fortes fisicamente, mas você pode ser muito mais ágil que um lobo. Agilidade pode ser a melhor habilidade na floresta. 

— Como posso ser ágil se não consigo enxergar?

— Tente olhar para além das árvores, no ponto mais escuro da floresta. Sinta suas pupilas dilatadas.

Mesmo por trás das nuvens, era possível ver onde estava a lua. Ainda que sua luz alcançasse o interior da mata, Jimin não conseguiria ver muito sem os olhos.

— Não consigo — ele reclamou esfregando as pálpebras.

— Precisa de estímulo?

Seu rosto estava próximo ao meu. Quis tocar sua pele, seus fios. Nada me impedia agora, mas ainda assim, não consegui ultrapassar a barreira que ele construiu nos últimos dias. 

— Como? — disse se esquivando.

Naquele ponto da floresta, eu não conseguia ouvir a presença de outra pessoa. Estávamos completamente sozinhos.

— Quando ativamos nossa visão noturna, conseguimos ver formas e temperatura. A pele não é importante no escuro — expliquei enquanto retirava os panos que cobriam minhas partes baixas.

— O que está fazendo? — ele disse nervoso. 

Mesmo na presença de tantas pessoas despidas, ele não se acostumou. Era consequência da maneira arcaica que ele fora criado. Eu não entendia muito sobre o cristianismo, mas conhecia as histórias. Se até mesmo Adão e Eva caminharam sem roupas no paraíso, por que a igreja continuava a demonizar tanto aquele hábito?

— Se não quer ver, use o instinto — disse exibindo meu corpo. — Olhe com a visão do seu animal interior.

Ele virou o rosto receoso e resistiu à primeira espiada.

— Não consigo — repetiu.

— Se concentre ou não saíremos daqui — insisti.

Jimin demorou para acreditar. Ficou um tempo olhando para baixo. Mesmo nervoso, ele continuou tentando. Vi quando suas pupilas cresceram, não parecia ser consciente. Ele ainda estava se acostumando. Mas, quando seu rosto voltou para mim, tinha um brilho amarelado em suas íris. 

— Eu estou vendo — ele disse surpreso. — Consigo ver tantas cores.

Ele disse aproximando a mão do meu tronco. Ele pareceu distraído com a novidade. Seu feito causou tanta empolgação que ele sorriu largo. Um sorriso genuíno na minha direção. 

Eu nunca tinha o visto sorrir assim. Parecia um anjo me agradecendo sem pensar. Quando dei por mim, seus olhos tinham voltado à cor natural. Ele me abraçou, mas logo seus braços me abandonaram ao se lembrar da minha nudez.

— Bom, você pode evoluir se continuar treinando — disse sem querer parecer afetado, mas eu não podia negar a mim mesmo que gostava de tê-lo por perto. 

— Me desculpe e obrigado — falou rápido e antes que eu pudesse lhe dizer qualquer coisa, ele saiu correndo.

PARK JIMIN

Busquei no meio da floresta alguém com quem pudesse me sentar. Meus olhos ardiam por ter forçado o impulso de enxergar no escuro enquanto corria para longe de Jungkook. 

Me atrapalhei com as pedras e por pouco não me esborrachei no chão antes de chegar no acampamento.

— Ei, você está bem? — Senti os braços de Hoseok me segurando. — Qual o problema com seus olhos?

Esperei um pouco para focar no rosto do meu amigo. Estava muito nervoso para controlar as cores que iam e viam. 

— Estava tentando ver além do normal. Nunca imaginei que conseguiria fazer algo assim. Mas, agora está ardendo.

— Fique calmo, não é bom insistir tanto na primeira vez — ele alertou. — Onde você esteve? Te procurei por todos os cantos.

Hoseok estava um pouco distraído com um dos alfas, quando Jungkook me levou de surpresa. Eu estava envergonhado de admitir. Era apenas um corpo. Mas o fato de ter visto a pele nua de um homem me desesperou.

— Não foi nada, apenas resolvi caminhar um pouco sozinho — disse encarando as palmas das mãos que finalmente voltaram ao normal. 

— Está sentindo seus instintos aflorando, certo? Isso pode ser perigoso, mas é um bom sinal. Me perdoe por soar como se fosse simples para um híbrido. Eu não tenho o direito de falar...

— Não diga isso, por favor — interrompi. — Sou eu que precisa pedir desculpas, você não tem culpa de ser um ômega. Acho que estava sendo arrogante e imaturo nos últimos dias.

— Não é isso, a minha mãe não deve estar surpresa com o meu sumiço. Ela sempre dizia que o lugar dos lobos era na floresta, mas eu deveria ter confiado em você. 

Jamais o julgaria por algo assim. Sequer conseguia me imaginar em uma situação como a que ele precisou viver todos esses anos. Hoseok era realmente um homem impressionante. No meio de toda aquela turbulência, eu estava grato por ter meu amigo são e salvo do meu lado. 

— Isso não importa mais. Ei, você realmente parece com eles — disse me referindo aos lobos. 

— Mesmo assim, é completamente diferente fazer parte de uma matilha de verdade. Quando a minha mãe falava sobre os lobos, eu não podia imaginar que seria assim tão intenso.

— Há algumas semanas, nunca imaginaria viver além dos muros do internato. Mas, agora estou aqui e preciso aprender a controlar meu animal interior.

— Eu posso te ensinar. Mas, você precisa entender que controlar não é a palavra certa. Libertar sua consciência é o caminho mais rápido.

— Me sinto mais à vontade com você aqui, Hoseok.

— Não vamos agir assim — ele sorriu sem graça. — Precisamos descansar, não andamos nem a metade. 

— O que tem no sul? O clima muda em vários lugares, mas por que os lobos sempre vão ao sul?

— O oceano. Eu nunca vi, mas minha mãe contava que tem tanta água que cobre o horizonte — ele explicou encantado. — Deve ser horrível, sabe. Depois de ver tantos lugares bonitos e terminar isolada em um vilarejo cinza. 

— Eu sinto muito pela sua mãe, mas ela é uma mulher muito forte.

— Estou orgulhoso dela. Ela vai gostar de saber que eu encontrei um bando, quando voltarmos. 

— Acha que podemos voltar um dia? — disse me deitando na relva. — Ainda não sei o que fazer ou como conseguir, mas espero ver meu irmão outra vez. 

— Eu não sei o que vamos fazer de agora em diante, mas quero tirar minha mãe daquele pesadelo. Quero que ela conheça esses lobos e veja a floresta mais uma vez. Ela merece ser livre — Hoseok disse sério. — Todos no internato merecem. 

Ele tinha razão. Mesmo que os outros não admitissem. Eles queriam ser livres também. Sair dos muros e correr sem culpa. Porém, isso não soava mais como uma ideia irracional. 

...

Quanto mais pensava, mais pesadas ficavam minhas pálpebras. Meu coração ainda não estava acostumado com a liberdade. Depois das noites na caverna, senti falta do aroma que me acompanhou nos últimos dias. Eu não queria sonhar com Jungkook. Mas, era impossível controlar o subconsciente. 

— Jimin, acorde — a voz familiar chamou. — Jimin, levante. Estamos indo.

Não estava na hora de caminhar. O dia ainda não tinha nascido. Levantei assustado vendo Hoseok ao lado dos dois alfas.

— O que aconteceu? — disse confuso ao encontrar os olhos de Jeon em mim. 

— Precisamos que vejam um lugar — explicou sem detalhes.

O acampamento estava silencioso enquanto todos dormiam. Os seguimos sem maiores questionamentos. Embreando-se na mata, as fogueiras e tendas ficaram para trás. O breu tomou conta novamente do trajeto à frente, forçando-me a usar a visão felina de antes.

— Para onde estão nos levando? — perguntei preocupado.

— Existe um lugar oculto nessa parte da floresta que vocês precisam conhecer — Yoongi respondeu ainda mais enigmático. Ele e Taehyung acompanhavam Hoseok de perto.

Depois de enfrentar um caminho tortuoso, coberto de troncos e armadilhas da natureza. Não parecia que chegaríamos a lugar algum. Contudo, uma luz solitária reluzia no meio da floresta densa. Era algum tipo de sinaleiro, um lampião queimando no topo da madeira esculpida. 

— Esperem aqui — Jungkook alertou.

Ele caminhava na frente de todos. Os alfas reuniram pedaços de galhos no chão e cada um deles bateu nos troncos das árvores ao redor da luz, fazendo gotas de orvalho despencar e o som ecoar na vastidão.

Esperei que algo sinistro acontecesse. Desde o incidente na cabana de Lisa, os segredos em torno dos lobos me assustavam. No entanto, o que estava por vir me deixou ainda mais aturdido. 

Duas mulheres saíram da escuridão. Elas seguravam lanças e tinham pinturas espalhadas pelo corpo. Não estavam nuas, mas se cobriam minimamente para estarem em lugar frio como aquele no meio da noite. 

Contudo, o que mais nos espantou foram suas características únicas. Hoseok as observou abobalhado. Era nítido seu olhar de total surpresa ao ver as orelhas peludas e a cauda balançante alerta. 

— Então, são vocês outra vez, alfas — disse uma delas em um tom amistoso.

— Já faz um bom tempo, não é mesmo? — rebateu Jungkook sério.

Não soaram como velhos amigos. Pelo contrário. Jeon pareceu bastante desconfortável com a situação. Embora seus relacionamentos não me dissessem respeito, gostaria de descobrir como eles se conheceram. 

Foi quando outras pessoas começaram a surgir. Homens e algumas outras mulheres, todos com orelhas de gato, armados e visivelmente selvagens. 

— Abaixem as armas, rapazes. Não há com o que se preocupar — ditou uma delas.

Todos pareciam fisicamente comigo. Não fazia sentido encontrá-los em um lugar como aquele. Passei toda a vida acreditando que era impossível viver fora da aldeia. Que éramos frágeis e aberrações, um castigo de Deus. Mas, eu estava muito longe da igreja e diante de um grupo de guerreiros híbridos.