E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará".
João 8:32
KIM NAMJOON
Pequenas casas de pedra erguidas na terra úmida pela chuva. Tinha troncos de árvores cortados para todos os lados. Um bloco após o outro, a aldeia ganhou forma.
Segurava a mão do meu irmão mais novo, enquanto observei homens erguendo paredes. Eu era apenas um menino quando ele nasceu.
Minha mãe o chamou de Park, seu antigo sobrenome de quando era uma mulher solteira. Ela não tinha mais nenhum parente vivo e nosso pai era um simples agricultor.
Certo dia fomos chamados pelo sacerdote na capela central. Eu e meu pai esperamos diante do altar até ela surgir com um bebê nos braços.
Talvez, eu fosse muito pequeno para entender a gravidez de uma mulher adulta. Mas, assim que vi o pequeno Jimin enrolado em panos, quis protegê-lo.
— Bom dia — disse o homem deitado ao meu lado. Eu observava o teto sem notar ele me encarando. — Não tem dormido bem?
— Estive pensando, Jin. Tem algo estranho acontecendo — suspirei.
— O novo reverendo quer falar com a família dos desaparecidos. Como você é o único parente que ainda vive na aldeia, é normal querer te ver — ele explicou novamente.
— É isso que me aflige. Não saber porque nossos pais deixaram-no para trás. Se eu não tivesse escolhido ficar… agora não saberíamos de nada.
— Não perca as esperanças, ele tem muita coragem. Queria ter conversado mais com ele antes — disse tocando a barriga.
— Eu quero acreditar que ele está bem. Não vou desistir, mesmo que a igreja tente impedir — respondi cobrindo sua mão com a minha. — Pelo nosso filho. Eu vou encontrar o Jimin.
As batidas insistentes na porta nos obrigaram a levantar. Olhei pela janela o grupo trajando batinas aguardavam do lado de fora. A rua estava deserta, apesar do dia já ter raiado.
— Não esperava que viessem até aqui — Seokjin comentou espiando sobre meu ombro.
— Deve ser um assunto muito sério — supus. — Não vamos demonstrar nervosismo. Tenho um mal pressentimento sobre essas pessoas. Se vista, eu vou descer primeiro e recebê-los.
Agradeci por minhas pernas estarem firmes enquanto descia as escadas. Mesmo sendo um homem recessivo, Seokjin lidava melhor com situações complicadas.
Sabia que nenhum deles era capaz de ouvir meus batimentos, mas isso não me tranquilizou. Tive medo de me atrapalhar na frente de todos. Ao abrir a porta, vi algumas caras conhecidas da igreja e um homem de meia-idade.
— Reverendo Lee — me curvei por respeito ao sacerdote que assumiu o comando da igreja após a misteriosa morte do reverendo Woo. — Me desculpe fazê-lo esperar.
— Não se preocupe com isso, filho. Não tem com o que se preocupar — seu sorriso me causou um arrepio.
— Bem-vindos — escutei o tom simpático se aproximando. Seokjin cumprimentou a todos da mesma forma educada. E os convidou para entrar.
— É tão esplêndido ver um homem como você grávido — o padre o abordou. — Está aldeia tem tantos sujeitos recessivos, é o milagre da vida.
— É uma honra, senhor — Seokjin respondeu sem graça. — Aceitam um chá?
As freiras recusaram a oferta, mas o reverendo assentiu com a cabeça. Ele pareceu curioso com a condição do meu esposo, apesar de ser algo comum. Neste mundo, mulheres e homens recessivos foram abençoados com a capacidade de gerar filhos.
— Senhor, creio ter me enganado. Pensei que fosse o encontrar na matriz — expliquei.
— Está certo, eu quis vir mais cedo para que pudéssemos conversar melhor — o homem agradeceu quando Seokjin retornou com as xícaras de chá.
— Alguma informação sobre o que pode ter acontecido com o meu irmão?
— Seu irmão… — o homem ponderou. — O híbrido que sumiu. Por que um rapaz como você chama um híbrido de irmão?
Fiquei paralisado por não entender o questionamento do reverendo. Pensei bem nas minhas próximas palavras. Não era segredo o desprezo dos homens da aldeia por todos os híbridos, mas aquilo estava indo além dos absurdos que falavam.
— Eu era muito novo quando ele nasceu — comecei a dizer. — As orelhas dele demoraram para aparecer, então crescemos juntos...
— Ou seja… — o homem me interrompeu. — Seus pais não contaram a verdade antes de participarem. Não explicaram como um híbrido chegou na vila.
— O quê? — Disse sem entender.
— Acho que você é um rapaz inteligente. Depois do ataque, nosso povo precisará de mais homens corajosos como você para manter a ordem — o reverendo explicou com tranquilidade. — O seu companheiro está grávido de uma criança humana, um ser livre da sujeira do mundo.
— Sinto muito, senhor — disse vendo meu amado esposo me observando. — Não compreendo onde quer chegar com essa conversa.
— Normalmente, eu não revelaria algo dessa natureza. Mas, com o sumiço de dois híbridos, isso pode significar uma ameaça para a nossa resistência.
— Resistência? — Repeti sem perceber.
— O reverendo Woo. Que Deus o receba no paraíso dos anjos — ele postou as mãos em oração por alguns instantes. — O reverendo não conseguiu ver as armadilhas do inimigo. Ele lutou bravamente em seus últimos minutos contra as trevas que tentam governar este mundo.
— O que isso tem a ver com o meu ir… com as pessoas que desapareceram? — Disse ansioso.
— Encontramos alguns livros escondidos onde os dois híbridos dormiam.
O reverendo acenou para que uma das irmãs se aproximasse e o casal observou as capas chamuscadas serem postas sobre a mesa.
— O que é isso? — Perguntei confuso.
— A nossa igreja é a base que fortalece a resistência. Lutamos contra criaturas sobrenaturais que tentam corromper os humanos. Demônios como os lobos que nos atacaram. Os híbridos flertam com aquelas bestas.
— Mas, todos aprendemos que as crianças híbridas são castigo dos céus — disse cada palavra com dificuldade. — Para que os homens não esqueçam que são fracos diante de Deus.
— E tudo isso é verdade — ele dizia sorridente. — Exceto por uma coisa. Híbridos e humanos não podem gerar descendentes. É impossível, nenhum humano compartilha do mesmo sangue com um híbrido.
— Isso é algum tipo de brincadeira? — Disse perdendo a compostura.
— Um homem de Deus não brinca diante da ameaça demoníaca, rapaz — o homem respondeu estranhamente sério. — Seus pais esconderam a verdade para proteger a nossa vila, eles foram escolhidos para fazer parte do grande plano.
— Como ele pode não ser meu irmão? Eu o vi nos braços da minha mãe quando ainda era um bebê.
— Simples — o homem deu ombros saboreando o chá. — Os tiramos do ninho das bestas que os geram, assim como todas as outras crianças híbridas do internato.
— Está dizendo que meus pais acolheram um bebê… em troca de quê? — Perguntei enjoado.
— Salvação — ele disse com toda a calma. — É óbvio que com o passar dos anos, tem sido difícil encontrar novas tribos. Isso não quer dizer que nossa batalha contra o mal está acabando, os híbridos estão se escondendo. Precisamos caçá-los e purificá-los.
— O que acontece com eles quando são purificados?
— Morrem, com a graça de Deus — a voz mansa do reverendo me embrulhou ainda mais o estômago.
— Não pode ser… — balbuciei chocado. — Está dizendo que o Jimin descobriu a verdade escrita nessas enciclopédias?
— Entendo que há muitas coisas para assimilar — o reverendo se levantou indo em direção à saída. — O importante é que seja nosso aliado na luta contra essas abominações, pois somente os humanos são a imagem e semelhança de Deus. Os híbridos que escaparam provavelmente estão contra a humanidade.
— O que deseja de nós, padre? — Seokjin disse segurando o meu braço trêmulo. — Por que está nos contando tudo isso agora?
— Quando os nossos soldados retornarem da floresta com mais crianças híbridas, vocês serão chamados — explicou. — Para o bem da humanidade, vocês vão acolher uma daquelas criaturas, até as orelhas aparecerem. Não vai ser difícil, pois você deve se lembrar como foi com o híbrido conhecido pelo nome "Jimin".
Sim, eu nunca esqueceria a expressão de medo no rosto do seu irmão quando um par de orelhas surgiu em sua cabeça. Logo apareceu a cauda e as freiras o levaram dias depois para o internato. Passaram-se anos, a indiferença dos seus pais com a falta de notícias fazia todo sentido agora.
— Namjoon, não fique assim. Precisamos pensar — o outro se aproximou assim que fechou a porta, se despedindo do reverendo.
— Eu não sei mais no que acreditar, Jin — reconheci com lágrimas nos olhos. — Minha vida inteira foi uma mentira, um teatro. Eles iam matar o Jimin. Essas pessoas são monstros.
— Não fale sobre isso em voz alta, Nam — o mais velho o repreendeu, sussurrando rente ao meu rosto. — Os homens da igreja podem nos ouvir, precisamos ter cuidado.
Antes que pudesse responder às suspeitas do meu marido, ouvimos batidas na porta. Enxuguei o rosto, imaginando que o reverendo tinha voltado para contar mais atrocidades. Contudo, dei de cara com outra pessoa parada na frente da casa.
— O que faz aqui? — Disse olhando a rua ao redor para se certificar de que os seguidores da igreja não estavam por perto.
— Não temos tempo para conversar. Os homens do reverendo em breve chegaram para vigiar a casa — a mulher disse nos surpreendendo.
— Sra. Jung, você sabia de tudo? — Disse encarando a mãe de Hoseok.
— Talvez, eu saiba mais do que a igreja e o reverendo Lee juntos — explicou. — Não garanto que veja o seu irmão novamente, mas se quiser ajudar os outros garotos presos nesse lugar, sugiro que me acompanhe.
Não importava o que contassem, Jimin sempre seria meu irmão. Era assim que o via. Embora fosse difícil encarar a verdade. Se existisse um meio de derrotar a influência que a igreja exercia sobre o povo, eu seguiria a Sra. Jung sem mais perguntas.
Era um tiro no escuro. Podia ser uma armadilha. Contudo, se eu pudesse saber mais sobre os híbridos e como salvá-los, talvez entendesse o que aconteceu com Jimin e Hoseok. Onde estariam escondidos agora?
PARK JIMIN
— Isso é a coisa mais absurda que eu poderia ouvir — disse irritado com todos à minha volta. — Por que os humanos aceitariam uma criança híbrida entre eles? Eles me chamaram de filho durante anos…
No meio da floresta morava um povo. Com lanças e espadas em punho, as mulheres de antes levaram-nos até uma passagem oculta por rochas.
— Eles são obrigados pelos mais poderosos — explicou a híbrida mais velha. — Eles foram intitulados como a Sagrada cúpula e comandam a resistência. Obrigam as famílias mais pobres a cuidarem dos pequenos para não levantar suspeitas. Os meio-humanos que vivem na floresta descobriram isso a pouco tempo.
— Como? — disse em choque.
— Pensávamos que os humanos matavam todos os membros das tribos nos ataques. Mas, desconfiamos quando não encontramos os corpos das crianças menores. Descobrimos que eles pegam os bebês e os escondem nas aldeias.
— Eles fingem que são crianças humanas para não chamar atenção, até que apareçam as orelhas, a cauda... — Jungkook se pronunciou. — Depois os levam para o lugar que vocês chamam de internato.
— Eu não fazia ideia… — Hoseok comentou estarrecido. — Jimin, eu realmente não sabia.
Queria poder confortá-lo e dizer que acreditava em suas palavras. Mas, naquele momento, não conseguiria consolar outro alguém. Era tantas informações de uma só vez, que meu cérebro parecia que ia explodir a qualquer instante.
— O que os lobos têm a ver com tudo isso afinal? — Perguntei intrigado.
— Esta é a melhor parte — a híbrida disse irônica e os alfas rosnaram. — Quando a igreja percebeu que os humanos e os lobos podiam gerar filhos, eles condenaram a todos que tentaram desafiá-los.
— A guerra está descrita nos livros de história dos vilarejos. Quando os humanos expulsaram as bestas demoníacas — disse ligando os pontos.
— Exatamente — a mulher concordou. — Mas, não tinha nada a ver com demônios. Os homens não queriam que humanos e lobos se relacionassem. Por isso, as matilhas se isolaram. Eles só não sabiam que existia outra raça vivendo na floresta.
— Os híbridos — respondi sem pensar.
— Os humanos descobriram que os lobos se aliaram aos meio-humanos da floresta. A união de dois povos com altas habilidades não agradou. Mas, os lobos não conseguiram ver a maldade dos homens, e o elo mais fraco saiu perdendo…
— Também perdemos pessoas importantes — Jeon disse irritado.
— O que um jovem sabe sobre perdas? — a mulher rebateu no mesmo tom agressivo. — Foram vocês que trouxeram duas crianças das aldeias até aqui. Lobos sempre agindo por impulso. Nenhum de vocês entende, tribos reduzidas a pilhas de corpos. Qualquer um com idade suficiente para lembrar é morto.
— Não podíamos deixá-los morrer — Jungkook disse com os ânimos se alterados. — Cedo ou tarde, isso ia acontecer e ninguém estará seguro de braços cruzados.
— Mesmo escondidos nas montanhas, não vão conseguir lutar sozinhos — Yoongi chamou a atenção das híbridas. — Suas armas não serão suficientes contra os humanos.
— Chega! — Disse a mulher furiosa. — Não os queremos aqui. Essa guerra nunca foi nossa.
— Mas, se tornou — respondi por impulso. — O que vocês estão fazendo nesse lugar? O que vão receber se escondendo no meio da selva? Outros híbridos estão sofrendo agora enquanto tentamos encontrar culpados pelo que aconteceu no passado.
— O Jimin está certo, não vamos resolver nada discutindo — Hoseok me acompanhou. — O que os humanos fizeram não tem perdão, mas ainda podemos salvar os outros.
— Não conte com a nossa ajuda — a mulher disse séria. — Já perdemos muitas crianças e amigos, não vou arriscar os poucos que restaram.
— Como pode dizer isso? — Taehyung falou de punhos cerrados. Ele que observou tudo em silêncio foi contido por Yoongi. — Eles brincam com a vida de todos. Mas, é o nosso povo que se esconde na floresta. Foram os humanos que atacaram primeiro e não vão parar se não fizermos algo para detê-los.
— Se querem ajuda para lutar, procurem as tribos no sul — ela explicou. — Existe um lugar oculto, eu passarei as coordenadas. Ouvi boatos que um grupo de híbridos está reunindo guerreiros. Mas, no seu lugar, não compraria essa batalha contra a humanidade.
— Acredito que podemos vencer — Jungkook disse determinado. — Por todos, lobos e híbridos. Ninguém mais precisa morrer pelos erros dos outros.
Ainda que eu pudesse ver o calor do seu corpo com os olhos de gato, a meia-luz das chamas fizeram surgir sombras em seu rosto. Embora minhas habilidades não se igualassem às de um lobo. As únicas opções eram lutar ou fugir.
— Não vai ser nada fácil — Yoongi disse pensativo. — Mesmo que encontremos essas tribos do sul, sem uma estratégia, não vamos conseguir ir longe.
— É tarde demais para recuar. Se a igreja não parar de queimar nossos amigos... — disse sem hesitar. — Somos nós… os únicos capazes de destruir a sagrada cúpula.
Por mais difícil que fosse, eu precisava aprender muito mais para sobreviver. Aceitar a verdade era apenas o primeiro obstáculo de muitos que ainda estão por vir. Mesmo com medo, não permitirei que continuem controlando os meus passos.
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