Dyna, estava segurando os enormes chifres de um Behemoth tão roxo quanto raivoso. Espumava da mais pura e intensa ira e seus olhos mostravam um retrato de uma completa confusão. Estava esculpido em sua face animalesca sua surpresa. Não conseguia entender como ou porque seu corpo não se movia nem um centímetro. Mesmo tendo, pelo menos, cinco vezes o tamanho do homem que lhe segurava e mesmo que avançasse com suas quatro patas poderosas, não conseguia empurrar o fenari.
As patas do Behemoth, conhecido por ser o Rei de Todos os Animais, abriam sulcos no chão maciço da arena a cada investida inútil que dava contra seu oponente, levantando nuvens de poeira a cada esforço inútil. Tal esforço que só foi parado quando o imenso fenari o derrubou de lado no chão, sem fazer o menor esforço.
A fera rosnava e rugia tão alto que ecoava por todo o Coliseu e, de repente, um imenso estrondo, seguido de altos sons de coisas que pareciam se partir e quebrar em inúmeros pedaços. Um total silêncio tomou conta do Coliseu, nem mesmo a plateia tão animada dizia alguma coisa. Dyna havia acertado um soco tão poderoso na lateral direita do corpo da criatura, esmagando e destroçando ossos que encontravam pelo caminho. E não somente ossos, havia uma cratera onde a besta estava deitada e imensas rachaduras surgiam do ponto de impacto, se estendendo por metros até cessarem.
No local onde o poderoso soco de Dyna havia acertado, a pele roxa do Behemoth estava uma cratera, sua pele havia afundado onde suas costelas haviam se despedaçado no impacto. Dyna colocou seu enorme pé na cabeça semiconsciente da criatura e erguia os braços para a plateia que voltavam ao seu comportamento padrão de torcer e gritar, enquanto o fenari acenava para seus fãs.
Arlekino gritava e girava no ar empolgado, anunciando a vitória esmagadora — literal e figurativamente — do atual campeão. Anunciava também que, por hoje, o show estaria se encerrando e que, em cinco dias, Dyna teria de enfrentar a Besta Gladiadora, Nerokius. Outro fenari bastante famoso por aquela região, não só por seu tamanho, mas também por sua brutalidade mundialmente conhecida em suas lutas em arenas por todo o mundo.
Dyna se despediu da plateia e caminhou por longos corredores de pedra cinza que ficavam na parte subterrânea da arena. A caminhada durou mais ou menos dez minutos até chegar em seus aposentos. A porta para seu quarto era imensa, cinco metros de largura e cinco de altura, completamente redonda e feita de uma madeira grossa e robusta. Era o quarto reservado para os campeões do Coliseu e, lá dentro, era possível ver o porquê. O quarto era quase tão grande a arena em que estava há poucos minutos, completamente redondo e sem janelas. Mas havia alguns buracos nas paredes, próximos do teto de onde entravam uma corrente de ar fresco de uma fonte desconhecida.
Sua cama ocupava metade do quarto e era tão alta que, com certeza, Beat precisaria de uma escadinha para conseguir subir. Havia uma geladeira de duas portas quase tão larga quanto a porta de entrada do quarto e estava incrivelmente bem abastecida, como Dyna mostrou assim que chegou, seu primeiro impulso foi ir em direção a geladeira. O ar gelado de lá de dentro era reconfortante para refrescar seu suor e todo o conteúdo dentro dela consistia de imensos pedaços de carne, algumas cruas, outras assadas. Havia dezenas de garrafas de cerveja preta, de três litros na parte debaixo.
Dyna pegou um pernil particularmente grande, bem gelado, com a mão direita e uma garrafa de cerveja com a mão esquerda. Numa só dentada, arrancou metade do pernil, mastigou três vezes e engoliu junto duma golada de cerveja, que escorria pela lateral da sua boca e caía no seu peito, criando uma trilha preta em seus pelos, que, naquela parte, eram mais claros que o resto do seu corpo. Retirou o pouco de armadura que usava, colocando num suporte ao lado da cama e foi sentar-se em sua cama.
Quase se engasgou com a cerveja quando descobriu que Arlekino já estava sentado em sua cama, de pernas cruzadas, com uma caneca de cerveja para si mesmo. Tirou sua cartola e jogou o conteúdo dentro de sua caneca dentro dela, em seguida, jogou a caneca. Jogou a cartola para o alto e a fez cair em sua cabeça com uma naturalidade tão grande que parecia fazer esse tipo de coisa desde que nasceu. Dyna teria ficado surpreso com aquele truque se já não o tivesse visto dezenas de vezes. Nenhum líquido escorreu da cartola para seu rosto, era como se a bebida, ou a caneca, nunca tivessem existido.
— Meus parabéns campeão. — Disse Arlekino, batendo palmas empolgado e com um sorriso amigável em seu rosto. — A plateia nunca se cansa de te ver destruindo pobres animaizinhos. Pobrezinhos!
— Corta essa. — Respondeu Dyna, sentando na cama, ao lado de Arlekino, era tão pesado que, ao se sentar, a cama afundou a sua metade da cama com o peso e deixou Arlekino mais alto, quase chegando na altura de seus olhos. — Aquele bicho não tem nada de indefeso. Além do mais, sequer chegou a ser um desafio.
— Haha! Errado você não está, meu caro amigo. — Arlekino pegou sua cartola e enfiou a mão direita lá dentro, depois, afundou o braço, até o cotovelo e continuou mais fundo, até o ombro. Quando puxou o braço de volta, estava segurando um saco marrom que fazia sons de metal a cada mínimo movimento e parecia bem pesada. Jogou o saco no colo de Dyna e prosseguiu. — Aqui está seu pagamento de hoje.
Arlekino se levantou com um pulo, enquanto o fenari deixava o saco de lado, sabia que seu conteúdo eram moedas de ouro e, pelo peso, sabia que era uma boa quantia, mas não parecia muito interessado. Arlekino já estava na porta quando parou, mantendo-a aberta e com metade do corpo para fora.
— Ah, já ia me esquecendo, em cinco dias, você irá lutar com aquela Besta Gladiadora, mas, meus homens logo estarão aqui trazendo novas presas para você, tigrão. Rawr! Boa sorte!
E, com um aceno, desapareceu pela porta, fechando-a assim que saiu. Deixando o fenari sozinho com sua comida e bebida, com um único pensamento em sua mente: “Espero que sejam fortes”.
Enquanto isso, no ar, Fandora voava em ritmos inconstantes, ia para cima e para baixo, fazia curvas completamente desnecessárias. O novo capitão, o pequeno troll verde, parecia estar se divertindo ao navegar pelas nuvens brancas, aproveitando os primeiros raios de sol assim que havia amanhecido. Toda aquela movimentação fazia com que Helmer se desequilibrasse enquanto corria em seu interior, mas sua raiva o impedia de cair.
No meio do corredor que levaria até o convés, encontrou dois de seus sequestradores no caminho e cuidou deles num piscar de olhos. Eram menores que ele e, com um soco, afundou o rosto do troll da esquerda na parede de madeira do navio voador e com a sua cauda, fez o troll da direita escorregar e usou seu rosto como apoio para saltar o lance de escadas de uma só vez. Apagando a ambos com facilidade.
Assim que pisou os pés no convés, deu de cara com a menina troll. Não seguraria sua força nem contra uma garota, especialmente uma envolvida em seu sequestro, principalmente depois de perceber que ela estava usando seu quepe. Ela trazia algo em suas mãos grandes, uma bandeja com algo. Não que o fenari estivesse reparando nisso.
Helmer já estava preparando um belo soco, cerrando seu punho, quando viu em seus grandes olhos que ela estava assustada e, pela primeira vez, notou que, de certa forma, a garota era bem bonita. Em uma fração de segundos, pensou consigo mesmo que seria um desperdício machucar um rostinho tão bonito e desfez seu punho. Aprumou o corpo e casualmente retirou o quepe de sua cabeça, colocando de volta na cabeça do real dono.
— Garotinha, se não quiser se machucar, sugiro que se esconda, pois as coisas aqui no meu navio vão ficar bem feias. — Disse Helmer, ajeitando o quepe na sua cabeça. A menina era uns vinte, talvez trinta centímetros menor que ele, tinha um jeitinho infantil e soltou um gritinho ainda mais infantil quando perdeu a força de suas pernas grossas e caiu sentada de bunda na madeira, derrubando a bandeja e seu conteúdo no chão. — Você eu vou deixar ir embora inteira, mas não posso prometer o mesmo para o resto desses cuzões verdes.
— Eu num sô uma garotinha! — Gritou a troll do chão. Se ergueu rapidamente, batendo na bunda para tirar a sujeira e ficou na ponta dos pés, na tentativa de ficar na altura de Helmer, o encarando, irritada. — Eu faço dezoito anos daqui dois mês, se quer saber!
— E eu perguntei a sua idade, porra? — Respondeu Helmer irritado, inclinando o rosto para a frente, olhando-a nos olhos de perto e se abaixando só um pouco, o bastante para que ficassem na altura dos olhos um do outro. — Eu tô cagando se você tem dez anos ou oitenta, apenas suma da minha frente para que eu possa dar uma surra em todo mundo, beleza?
— Então num me chama de garotinha! — Gritou a menina, os olhos que antes, achou Helmer, exibiam medo, agora estavam firmes e irritados. Não era medo o que ela havia demonstrado anteriormente, era simplesmente susto ao dar de cara com seu prisioneiro tão repentinamente. — Por aqui me chamam de Cabelos Dourados, mas ocê pode me chamar de Goldie.
— Também tô cagando pro seu nome!
— É assim que ocê me agradece? Olha que bagunça! — Disse a pequena troll, de repente, não lhe dando atenção. Apenas agachou no chão, pegando a bandeja que segurava antes e a virou, debaixo da bandeja, havia uma confusão, uma mistura de ovos mexidos ainda quentes, com torradas e dois copos cheios de um líquido que, pelo cheiro, parecia rum. — Ocês tinham reclamado de fome e eu tava levando o café da manhã que eu mesma fiz, ingrato! Ingrato, ingrato, ingrato!
A expressão de total confusão surgia no rosto de Helmer. “A menina tava realmente levando café da manhã pra gente?”. Pensava consigo mesmo e, por um instante, estava sem reação. Afinal, por que diabos ela estava irritada pela comida derrubada e não por seu prisioneiro estar escapando e ameaçando seus companheiros. Estava brigando com ele como se fosse... “Merda, assim a gente até parece aqueles malditos gêmeos!”.
— Que seja! Eu não quero sua comida, provavelmente deve estar envenenada mesmo. — Respondeu Helmer, com raiva, sem conter ou maneirar a rudez de sua voz, deu as costas para a menina e caminhou calmamente na direção onde sabia que o capitão estaria, no timão, conduzindo sua preciosa Fandora de forma tão desleixada.
Porém, foi imobilizado ao dar o segundo passo. Não era nenhum inimigo, nenhuma magia ou armadilha. Fora imobilizado ao ouvir os soluços baixinhos de choro que vinha de trás de si. Virou-se no mesmo instante e viu a menina, ainda agachada no chão, chorando baixinho enquanto cutucava com a pontinha do indicador a comida que agora teria de jogar fora.
— Eu... Demorei tanto pra fazer um café da manhã bem gostoso pr’ocê, fiz com tanto carinho. — A menina soluçava, com a cabeça baixa enquanto Helmer a olhava completamente surpreso, seria aquilo um truque para baixar sua guarda? Não poderia acreditar naquela atuação tão fraca, era óbvio de que aquilo não passava de um truque, uma armadilha para que baixasse sua guarda e fosse pego desprecavido, como havia sido pego anteriormente junto de Bravo. Com certeza! Não se deixaria ser enganado daquela forma, de jeito algum! — Seu... Bobo!
A menina virou o rosto para ele, com aqueles olhões castanhos brilhando por conta de suas lágrimas que desciam por aquele rostinho verde, que, agora, adquirira uma coloração rosada, de raiva ou de vergonha, Helmer não saberia dizer.
Quando deu por si, estava agachado na frente dele, olhando a comida no chão. Se tinha algo que odiava, era uma garota chorando por sua causa. Abaixou o quepe no rosto, o bastante para ocultar sua expressão. Sem dizer uma palavra, estendeu as mãos na direção da comida, pegando um punhado de ovos mexidos e uma torrada que havia se partido na queda e as comeu, do chão mesmo. Depois, pegou um dos copos entornados, levantou o rosto e o copo, deixando uma pequena gota do rum que havia sobrado cair sobre sua língua e então se levantou.
— Estava delicioso. — Disse, de costas para a menina e atirou o copo para o colo dela. Atirou sem força alguma, talvez o mais certo a se dizer seria que ele simplesmente deixou o copo cair gentilmente no colo dela e ela, institivamente, agarrou com as mãos. — Obrigado pela comida.
Assim que terminou de dizer, correu na direção da proa, onde com certeza estaria o capitão e líder daqueles piratas verdes, deixando uma confusa Goldie para trás, que o olhava enquanto a distância entre eles crescia. Então, gritou de onde estava.
— Vê se ocê não bate muito no papa! — E acenou para ele, sabia que ele não veria, mas acenou mesmo assim.
“A pirralha é filha do desgraçado que roubou minha Fandora?!”. Pensou Helmer consigo mesmo e não olhou para trás. Bravo o havia alcançado há algum tempo e havia presenciado a cena. Decidiu que seria melhor ficar quieto, pode não parecer, mas Helmer era muito bom em lidar com mulheres. Se aproximou sorrindo de Goldie e a ajudou a arrumar a bagunça.
— Aquele cara não muda nunca. — Começou bravo, juntando a comida em cima da bandeja. — Ele pode parecer fofinho de longe, mas age como um bruto. Só que, na verdade, é um cara bem legal. Desculpa o comportamento dele, ele realmente fica irado quando mexem com sua belezinha.
— Hmmm. Eu acho que não me importo. — Respondeu Goldie. — Talvez esse seja seu charme, né?
— Haha! Você acha? Você tem um gosto bem estranhos para homens, garota. — Bravo ria e terminavam juntos de arrumar a maior parte da bagunça, infelizmente, nada se podia fazer quanto ao rum derramado. — Mas, está tudo bem? Você chamou o cara que está no timão de “papa”. Sabe, o Helmer não costuma pegar leve quando entra numa briga.
— Tá tudo bem, moço. Papa tá acostumado a apanhar, pra falar a verdade. Além do mais, ele num vai perder tão fácil, é bom que seu amigo seja mesmo bom de briga. Do contrário, logo ocês dois vão voltar lá pra baixo. — Respondeu a jovem troll, enquanto pegava um esfregão para limpar o rum derramado. Antes de se despedirem, desejou boa sorte para Bravo e tratou de cuidar da limpeza.
Quando Bravo chegou na proa, se deparou com mais dois trolls caídos e uma luta ferrenha entre Helmer e Barba Negra já havia se iniciado. O pirata havia perdido seu elmo com chifres de cervo e, mesmo que portasse uma espada em sua bainha, parecia preferir lutar usando seus punhos contra os punhos surpreendentemente poderosos de rival de igual tamanho de diminuto.
Não era uma luta bonita de se ver, de fato, nem mesmo podia ser chamada de luta. Era uma briga entre homens, onde apenas os punhos eram necessários. Nenhum dos dois parecia minimamente interessado em se esquivar ou se defender dos ataques um do outro, aceitando cada soco em seus rostos. Estava claro, não só para os dois, como também para Bravo, que aquela briga seria decidida quando um dos dois cedesse primeiro e ambos estavam dispostos a não fraquejar nem por um momento.
“Isso é... Isso é... Isso é que é ser um homem de verdade!”. Pensou Bravo consigo mesmo, assistindo a luta com a sua alma ardendo com aquele exemplo de masculinidade. Se lembrava de Dyna, ele era exatamente daquele jeito, nunca defendia, nunca desviava, aceitava todo e qualquer tipo de ataque de braços abertos só para contra-atacar com toda a sua “hombridade” logo em seguida.
Bravo ansiava por uma briga como aquela e seu desejo logo foi atendido quando o resto da tripulação surgiu correndo e gritando atrás de si, brandindo espadas e escopetas. Gritou animado e pulou na direção do bando, lutaria contra pelo menos quatro ou cinco piratas completamente sozinho e desarmado. Nem de longe isso seria uma desvantagem para Bravo, pelo contrário, aquilo era bom! Ao menos daria uma pequena chance de que seus inimigos pudessem, pelo menos, arranhá-lo.
Pelo canto de seu olho, Helmer viu seu companheiro se atirar no meio da briga e o respeitou silenciosamente por não interferir em seu duelo com Barba Negra. Sorriu e logo em seguida recebeu um belo soco no rosto, que fez seu nariz sangrar.
— Pr’onde ocê pensa que tá olhando, seu vagabundo pestilento?! — Disse Barba negra, com os punhos erguidos e saltitando sem sair do lugar. — Sua briga é comigo, seu vagabundo miserável!
— Ah, acho bom que tenha aproveitado esse soco. — Respondeu Helmer, cuspindo sangue no chão de madeira do navio e voltando para a posição de luta. — Porque essa foi sua primeira e última chance de me derrubar, seu velho filho da puta!
E, com uma troca de insultos, retomaram a briga. Para cada três socos que Helmer acertava o pirata no rosto, o pirata lhe devolvia dois. Estavam praticamente em pé de igualdade àquele ponto, seus narizes sangravam e, nos breves intervalos que tinham, aproveitavam para cuspir um bocado de sangue. Numa dessas pausas para cuspir sangue, Barba Negra acabou cuspindo dois dentes.
— O que foi, vovô? Sua dentadura é tão de baixa qualidade quanto seus socos? Seu velho!
— Ora, seu...! Eu vô te ensinar a respeitar os mais velho, seu saco de pulgas fedorento!
Após mais uma breve troca de insultos, voltaram a se socar. Dessa vez, ambos acertaram ao mesmo tempo com tanta força que fez com que Helmer recuasse meio passo. Já Barba Negra estava com as pernas tremendo, cambaleou para trás e, por pouco, não perdeu seu equilíbrio. Ainda estava pronto para continuar brigando até o pôr do sol se fosse preciso.
Felizmente — ou infelizmente, se alguém perguntasse para qualquer um dos dois — a briga não precisou durar até o pôr do sol, pois foram interrompidos por Cabelos Dourados, que, não subira na proa, apenas se apoiou na beirada da mesma, deixando seu rosto aparecer entre as colunas de madeira.
— Ei, ocês dois, será que ocês podem acabar a briga logo? — Disse a menina, olhando para os lados. — Alguém precisa pilotar essa coisa, sabiam?
Como se Fandora tivesse ouvido o que a menina dissera, soltou um rangido e, de repente, tombou para a esquerda violentamente. Era evidente, com os dois capitães brigando e o resto da tripulação guerreando contra um incrivelmente empolgado Bravo, não havia ninguém no timão para controlar o navio voador e o mesmo começara a cair em queda livre sem um piloto.
— Puta merda! — Gritaram Helmer e Barba negra ao mesmo tempo e partiram na direção do timão, se empurrando para decidirem quem iria pilotar o navio, o real capitão ou o capitão usurpador. E, nesse empurra-empurra, Fandora continuava a cair.
Nas montanhas geladas do Norte, Shurit havia apontado seu galho mágico para o alto, criando o desenho de um floco de neve de seis pontas curvadas, o sinal que só deveriam usar quando encontrassem Folgo.
O lobo estava desacordado no chão e Auram e Shurit estavam sentados num tronco caído, conversando enquanto a ajuda não chegava. Só agora Auram se deu conta do quão exausto estava depois da luta e respirava pesadamente. Mesmo que todas as suas feridas tivessem sido curadas magicamente depois de seu “renascimento” — como Shurit havia batizado — seu cansaço permaneceu a atormentar seu corpo.
— Então quer dizer que esse cachecol é mágico? — Perguntou Shurit, de volta ao seu estado normal, parecendo uma criança da idade de Auram novamente. Segurava uma das pontas do cachecol e o esfregava entre o polegar e o indicador. — Para mim, me parece um pano normal.
— E é. — Respondeu Auram, as inscrições em seu cachecol brilharam em dourado e a ponta que Shurit segurava se soltou de sua mão. Fez movimentos ondulantes para cima e para baixo e então, quando as inscrições se apagaram, apenas os ventos fortes o moviam. — O que o torna especial é o que está escrito nele. Se não fossem estas palavras antigas, seria só mais um pedaço de pano comum. Ele vai sujar, se encardir, feder e se desfazer com o tempo, como qualquer cachecol. Mas, graças a essas inscrições, ele possui uma mágica capaz de se tornar tão duro quanto qualquer armadura. Apenas contra ataques. E só se ativou dessa forma, depois que eu me lembrei de meu nome. Da língua do meu povo. Como você diz, depois que eu renasci.
— Então, como chegaram à conclusão de que seu nome era Auram?
— Acho que foi Seal quem tentou traduzir, mesmo ele sendo tão velho e inteligente, ele não conhece tão bem desse idioma e, pelo visto, foi um erro de tradução quando viu a palavra “Astram”, que foi a única palavra que conseguiu identificar.
— E o que está escrito?
— “Herói Escolhido das Estrelas, levante a sua Espada e reúna Luz, você deve vencer a Grande Escuridão”. Acho que é algum tipo de profecia do pessoal da Floresta Celestial. E aqui. — Auram segurou a outra ponta do cachecol. — Aqui diz “Astram, que a nossa amizade possa ser seu escudo, Ib”.
— E quem é Ib?
— Uma... Amiga preciosa. Não acredito que havia esquecido dela até pouco tempo atrás. Ela provavelmente me daria um soco se soubesse disso, haha...
Shurit riu junto de seu amigo, mas sabia que a risada de Auram era uma risada triste. Não conseguia imaginar como era esquecer de uma parte tão grande de sua vida. Perder as memórias de sua infância, de seu lar, de seus amigos e de sua família. Jamais poderia entender o que Auram estaria sentindo, tudo o que lhe restava a fazer, naquele momento, era lhe emprestar o ouvido para ouvir sua história e conhecer melhor a pessoa de quem nada sabia, mas já o considerava uma pessoa importante em sua vida. Queria saber tudo sobre ele, para que pudesse guarda-lo para sempre em suas memórias.
E Auram lhe contou tudo o que se recordava. De como, desde que nascera, sob a brilhante Estrela Mundial, uma espécie de profecia havia caído em seus braços, mas que, sinceramente, ninguém na Floresta Celestial sabia dizer exatamente sobre o que se tratava. Mas, graças a tal profecia, recebera o seu nome.
O povo da Floresta Celestial era um povo antigo e supersticioso e cheios de tradições. Os homens eram treinados como guerreiros quando chegavam aos seis anos e as mulheres treinadas como magas, sacerdotisas e videntes aos três. Então profecias, adivinhações e coisas do tipo eram bastante comuns e sempre levadas a sério.
Seu treinamento de guerreiro começara assim que fez seis anos e treinava ao lado de seu veterano e melhor amigo, Ningirsu, que era incrivelmente popular na Floresta por ser o guerreiro mais habilidoso da Floresta inteira. Mesmo sendo apenas três anos mais velho que Auram, conseguia botar no chinelo qualquer adulto com anos e anos de experiência, com seus poderosos e velozes golpes de lança. Certo dia, fora capaz de vencer três adultos de uma vez só apenas usando uma lança de madeira. Quando começava a lutar, nada o conseguia fazer parar. Nada exceto uma pessoa, sua irmã, Ib.
Ib tinha a idade de Auram e, na verdade, começou seus treinos como sacerdotisa aos dois anos de idade. Por algum motivo que não entendiam na época, Ib era, de alguma forma, especial. Seria a sacerdotisa que herdaria o Cajado Sagrado, um artefato usado em rituais e cerimônias que era passado de geração para geração. Aparentemente, a mãe de Ib fora a última portadora por direito de tal Cajado e, por isso, ela seria a herdeira. Mas não entendiam o que havia de tão especial naquela coisa retorcida. De qualquer forma, tal responsabilidade fazia com que seus treinos fossem ainda mais severos.
Por treinar com seu irmão, acabou se aproximando bastante de Ib e logo, os três se tornaram inseparáveis. Ningirsu amava sua irmã acima de tudo, afinal, ambos eram órfãos e a responsabilidade de cuidar e zelar por sua irmã caiu sobre ele. Ele a protegia e estava sempre em cima dela, para se certificar que nada nem ninguém pudesse machucá-la, chegando a ameaçar de morte adultos que a olhavam diferente. Mas Ib sempre esteve a seu lado para lhe conter — para a sorte dos adultos.
No fim de seus treinos, os três sempre iam brincar no lago, no Bosque Sagrado. De alguma forma, aquelas águas azuis e calmas pareciam curar o cansaço e as feridas adquiridas depois de um longo dia de treino. Ningirsu sempre pegava algum peixe no lago e preparava uma bela refeição para os três e não era raro que dormissem no pé de uma grandiosa árvore que ficava em frente ao lago. Aquela árvore era quase como um quarto integrante do grupo, pois ela sempre estava com eles, lhes oferecia sombra fresca, frutas gostosas e apoio. Chegaram a batiza-la de Imduk, que significava “guardião” ou “protetor” em sua língua.
Auram contou vários detalhes de seu dia a dia por lá, sobre os livros que lia de uma época tão distante e seus heróis, os Mekk Knights, principalmente sobre Blue Sky e do quanto sonhava um dia poder ser como ele. Contou sobre a barreira mágica que envolvia a vila e que ela não só protegia a Floresta Celestial, como também a tornava praticamente invisível para o mundo de fora. Contou sobre o Deus das Estrelas que adoravam. Contou sobre sua cultura e seu povo. Lhe disse de quando ganhara o cachecol de Ib, que a mesma havia feito com suas próprias mãos e abençoado com sua magia em seu aniversário de nove anos. Sobre os dias calmos e os dias tortuosos. Sobre seus pais e seus amigos. Sobre as alegrias e as tristezas. Mas, a maior de todas as tristezas, veio quando Auram tinha dez anos, na noite em que as Mekkstruosidades atacaram.
Ninguém sabia dizer o que eram ou de onde vieram. Nenhuma profecia ou adivinhação os havia avisado de sua chegada, apenas surgiram numa noite. Não sabiam nada sobre eles, apenas uma coisa ficara óbvia logo de cara: O único objetivo daquelas Mekkstruosidades — alcunha que Auram lhes dera — era a destruição total do vilarejo, da Floresta e do Bosque. Seus números eram avassaladores e devastaram cada um dos guerreiros e magos. Destruíram a barreira que protegia a Floresta e deixavam um rastro de destruição por onde passavam.
As criaturas em muito se assemelhavam a insetos gigantes, com olhos vermelhos que brilhavam no escuro da noite. Se moviam como se fossem uma única criatura viva e poderosa e nem mesmo Ningirsu fora páreo para eles, embora tivesse sido o responsável pela destruição de grande parte deles. Ib, ainda inexperiente em combate, ficou focada em fornecer suporte para seus amigos enquanto lutavam. A cacofonia de insetos parecia nunca ter fim.
Auram viu seus pais serem mortos na sua frente e, quando estava prestes a se juntar a eles no outro mundo, a barreira mágica de Ib o protegeu. Mas, quando um estranho homem com um terno preto surgiu a sua frente. A mão direita estava no bolso e a mão esquerda portava um relógio de bolso dourado, Auram ficou completamente sem reação. O homem olhava para o seu relógio e sorriu para Auram, logo em seguida, enfiou sua mão na barreira mágica sem esforço algum, mesmo que a barreira lhe queimasse os dedos e o braço, isso não parecia incomodá-lo nem um pouco. O indicador do homem tocou-lhe a testa e, depois disso, foi escuridão.
O humano não se lembrava de nada depois daquilo, apenas flashes de acontecimentos, aparentemente, desconexos. Gritos desesperados de uma garota, sons de lutas intermináveis. Pessoas gritando seu nome. Seu corpo sendo carregado por alguma coisa. Água, floresta, céu azul, céu escuro, cavalos, pássaros, uma voz que lhe dizia algo sobre “brincar um pouco com esse mundo”. E, por algum motivo, a letra “N” não saía de sua cabeça.
Quando toda aquela comoção de eventos se encerrou, estava sentado nos portões de Fandar e fora levado para dentro por Rafale em um estado quase catatônico. Ficara dias, semanas, sem dizer uma palavra sequer, por não saberem como chama-lo, Seal leu a palavra “Auram” erroneamente escrito em seu cachecol e daquele dia em diante assim ficou conhecido. Depois disso, passou os três anos seguintes junto dos Fur Hire, vivendo em Fandar como um forasteiro. Também contou de seus constantes sonhos com o Bosque e que, só agora, sabia quem eram aquelas duas pessoas que tanto via. Não mencionou Ikelos em momento algum, era como se as duas garotas nunca tivessem existido.
Completou dizendo que aqueles três anos em Fandar foram tão maravilhosos quanto seus dez anos na Floresta Celestial, conheceu inúmeras pessoas e viu os fenari pela primeira vez. Fez ótimos amigos que levaria em seu coração até o fim de seus dias, assim como irá levar Ib e Ningirsu consigo de hoje em diante e por isso precisava encontra-los logo. Assim como o restante dos Fur Hire ainda desaparecidos.
— Bom, se me perguntar. — Disse Shurit depois de ouvir toda aquela história atentamente. — Eu diria que Ib e Ningirsu nunca o deixaram. Eles estiveram sempre com você, aqui. — Apontou para o coração de Auram. — Os amigos de verdade nunca nos deixam. Não importa quantos mares, não importa quantos céus os separem, nossos amigos sempre estarão conosco de um jeito ou de outro. Você tem ótimos amigos Auram. Ou eu deveria te chamar de Astram agora?
— Ah! É verdade. — Auram coçou atrás de sua cabeça, sem jeito. Agora tinha dois nomes, por qual deveriam se referir a ele de hoje em diante? Não precisou pensar muito para chegar numa resposta. — Pode me chamar de Auram, acho que... Já estou bastante acostumado com esse nome e aposto que acabaria confundindo todo mundo quando a gente voltasse, né. Então Auram está bom para mim.
— Se já pararam de tagarelar. — Disse uma voz rouca e fraca que vinha de debaixo deles. Folgo se ajeitou no chão coberto de neve e apoiou o cotovelo no chão para melhor olhá-los. — Eu gostaria que me levassem para comer, estou faminto.
Por toda a floresta, o restante dos Fur Hire estavam espalhados em grupo procurando e, quando avistaram o sinal enviado por Shurit, trataram de correr o mais depressa que podiam para alcança-los. Um fenari wylde é muito perigoso para que duas crianças pudessem lidar com ele sozinho e por isso, a pressa se fazia necessária. Wiz e Seal eram os mais rápidos e, por isso, avançaram na frente. Wiz sabia que os gêmeos seriam perfeitamente capazes de segui-la, mas o que ela não sabia, era que aquelas montanhas escondiam uma armadilha bem perigosa na forma de, aparentemente, uma criancinha inocente que cantava uma canção triste, enquanto a neve fazia com que ela se parecesse com uma miragem.
A criança vestia um quimono azul, com emblemas brancos nas mangas que se assemelhavam a flores congeladas, tinha cabelos negros com duas presilhas redondas e brancas, como um floco de neve, em cada lateral perto do rosto. Sua franja escondia o olho esquerdo, mas não parecia exalar malícia alguma. Wiz, claramente desconfiada, mas, ao mesmo tempo, preocupada por encontrar uma criança tão pequena sozinha numa floresta tão fria a fez baixar a guarda e se aproximar.
— O que você está fazendo aqui sozinha, garotinha? — Perguntou Wiz, se aproximando cada vez mais a cada passo. Sua preocupação com a garotinha era grande, mas sua cautela era ainda maior, então dava passos hesitantes.
— Eu acho que me perdi moça. — Disse a garotinha, sua voz soava como a de uma menina normal, mas havia algo estranho nela. Wiz não conseguia dizer o quê. — Mas está tudo bem, o frio vem comigo. E eu venho com o frio.
Assim que aquelas palavras terminaram de sair de sua boca, a ventania ficou incrivelmente intensa. O vento soprava gelado na direção de Wiz e toda aquela neve ocultou sua visão. O frio parecia lhe congelar até os ossos e, de fato, talvez estivesse, pois Wiz notou que seu corpo começou a se transformar em gelo aos poucos, começando pelos pés e mãos, imobilizando-a no lugar e impedindo que ela erguesse seu cajado ou usasse a concha para chamar por ajuda.
Seal, diferente de Helmer, jamais seria capaz de machucar uma garota e, por isso, quando alcançou sua companheira, seu soco atingiu o chão na frente da garotinha ao invés de acertá-la. Levantou-se uma nuvem branca com o impacto de tal incrível soco, cegando a menina tempo o bastante para que conseguisse libertar Wiz e afastá-la da ameaça, retirando-a de sua quase prisão de gelo e saltando para longe.
Quando a distração teve fim, a criança avançou na direção dos dois com uma agilidade incrível, nem parecia mover suas pernas e sim flutuar. Mas fora recebida com um projétil bem na sua testa, o que a fez cair imóvel para trás.
— Em cheio! — Disse Donpa, de estilingue em mãos, enquanto se aproximava correndo junto de sua irmã. Pouco depois, Beat, Avance e Emilia também se juntaram a festa. Vindos de todas as direções, cercando a menininha.
— Ela está morta, desu? — Perguntou Beat, enquanto se aproximavam cautelosamente da menina, deitada no chão, completamente imóvel.
— Bom, eu usei uma pedra, então é bem provável que sim. — Respondeu Donpa.
— Vocês já a viram por aqui? — Perguntou Seal, se dirigindo para Avance e Emilia, que acenaram negativamente. Claramente não pertencia aos Nekroz e muito menos àquela floresta que conheciam tão bem quanto a palma de suas mãos.
De repente, a nevasca voltou com toda a sua força. Não, voltou dez vezes pior e dessa vez parecia que surgia a partir do corpo da menina, girando em uma espiral, subindo diretamente para o céu. O tornado se expandia, cobrindo uma vaga porção da floresta e os cercava com ventos tão intensos que cortavam e toda aquela neve atrapalhava deixou a todos cegos. E, depois de um tempo, quando enfim a neve abaixou e o vento se cessou como se nunca tivesse existido, não havia mais ninguém na floresta além de Avance e Emilia, até mesmo a garotinha misteriosa havia desaparecido. O casal de Nekroz tentou usar a concha para contactá-los, sem sucesso. Então dispararam o sinalizador. Dois sinalizadores seria o bastante para que Shurit percebesse que algo estava errado.
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