"Todo mundo sabe sobre meus sentimentos, mas de qualquer forma, eu sei que vou viver a isso. Se você conhecesse minha cabeça, iria me deixar sozinho, mas estou sempre sozinho porra. "
Millie.
Quando cheguei em casa, bati as costas contra a madeira da porta quase sem conseguir respirar. No entanto, não foi a corrida que tinha me feito perder o ar, foi tudo o que tinha acontecido naquela loja. Aquele garoto bondoso e gentil que eu não fazia a menor idéia de quem era. Minha cabeça ainda doía por causa dos puxões de Aidan, mas agora a dor era a única coisa a qual eu não conseguia pensar.
Tudo o que via eram aqueles olhos observadores na minha direção. Cheios de curiosidade e interesse, mas nenhum julgamento. Não me lembrava da última vez que tinha conversado com qualquer um que não fosse Romeo, alguém que não sabia quem eu era, ou que simplesmente não se importava.
Além daquela sensação, eu não sabia explicar porque meu coração estava tão acelerado, minha boca seca e minha pele arrepiada. Podia ainda sentir seus dedos no meu braço. Firmes. Mas tão gentis. Também era uma nova sensação. Ninguém tocava em mim. Mas apesar de eu ter gostado, foi aquilo que estragou tudo. Quando ele me tocou, me fez lembrar quem eu era de verdade. Que eu não deveria estar ali, que provavelmente se fosse outra pessoa em seu lugar teria sido expulsa ao invés de ter sido bem recebida.
No meio de tudo, engoli em seco. O gosto doce daquela torta deliciosa ainda estava na minha boca. Nunca tinha comido algo tão bom e se não fosse por aquilo, provavelmente iria para a cama sem comer mais nada.
Foi tudo o que eu precisava. Um gesto de carinho, de alguém que se importasse comigo e não soubesse quem eu era, mas a questão era que eu também não o conhecia. Nunca tinha o visto na vida. Me lembrei do que falou, que era novo na cidade e isso explicou muita coisa. A pele meio bronzeada, as bochechas ainda queimadas de quem ja tinha se esbanjado muito no sol. Era claro que ele não pertencia a Stoney Fork.
-Ah, até que enfim você chegou! -Lisa gritou. Me tirando dos pensamentos. Estava emburrada saindo do escritório do papai com as mãos nos quadris, impaciente.
Tirei os dedos dos lábios, mal me lembrando que estava os tocando. Me recompus.
-Desculpe, Lisa. Eu passei no centro e perdi a hora. -Expliquei, mas ela não ouviu. Já estava colocando a bolsa no ombro.
-Seu pai está dormindo, mas não tomou o remédio da diabetes. Ele tem que tomar, se subir demais vai dar um troço e eu não vou estar aqui para ajudar. -Avisou. Não estava nem aí.
As sensações boas que eu estava sentido sumiram rapidamente de mim. Assenti com a cabeça e cruzei os braços.
-Pode deixar. Eu falo com ele.
Sabia que não me ouviria também. Era teimoso. Mas eu já tinha extrapolado o horário de Lisa ali e ela nitidamente estava louca para ir embora.
Se despediu de mim com um maneio de cabeça e se foi, me deixando sozinha naquela casa. Com meu pai.
Consegui respirar fundo e joguei minha bolsa no sofá da sala. Era cedo ainda, meu pai estava deitado adormecido, a bolsa de comida enteral pingando a gororoba direto para a sonda em seu nariz. Achei bom não estar acordado, me pouparia das humilhações frequentes. Era tudo o que eu menos precisava.
Com sutileza, fechei a televisão e me aproximei. Desencapei uma das agulhas minúsculas que estavam ali em cima da mesa e puxei sua mão para perto. A que ele não sentia, é claro, então nem se moveu. Furei o dedo médio e uma bolinha de sangue se formou ali. Liguei o aparelho de medir a glicemia e esperei o sangue escorrer pela fita. Apitou quando deu o resultado. 479 mg/dl. Alto demais. Efeito de não ter tomado o remédio que Lisa havia pedido.
Bufei de impaciência por ele ser tão teimoso. Por recusar tratamento mesmo que sua situação não melhorasse nada. Parecia que queria morrer. Fui até o frigobar velho ali no canto. Retirei de lá o frasco com a insulina regular e enchi uma seringa com dez unidades do remédio. Era melhor que tomasse as pílulas, mas se eu o acordasse seria uma briga e eu não estava nenhum pouco disposta a enfrenta-lo.
Fui para o lado do braço morto, espremi a gordura ali no canto e enfiei a agulha, despejando a insulina nele. Como previ, nem se mexeu. Não sentia nada no lado direito do corpo.
Quando terminei pus um curativo pequeno no lugar da furada e juntei os materiais para o lixo. Aquilo era trabalho de uma enfermeira, mas eu já havia aprendido tudo, já que Lisa só fazia o básico do básico. Qualquer resistência do meu pai e ela cedia.
O ouvi murmurar durante o sono. Me virei para ver seu rosto contra aquele encosto velho e empoeirado da poltrona. O cenho estava franzido, os lábios meio abertos. Estava tendo um pesadelo. Soltou o nome da minha mãe várias vezes, praguejando e se sacudiu até parar e ficar mais tranquilo.
Não era a primeira vez que sonhava com ela. Já tinha presenciado antes, sempre eram pesadelos. Era impossível não me encher de pensamentos quando via aquilo. O que tinha acontecido com minha mãe era um mistério. As vezes eu pensava se ele seria capaz de ter mandado mata-la. Queria acreditar que não, mas eu não tinha como ter certeza. Me perguntava também se ela seria tudo isso que falam. Apenas uma prostituta de luxo que deu um golpe no prefeito.
A verdade é que eu sabia que nunca ia descobrir. Ela nunca iria voltar caso tivesse ido embora e também poderia simplesmente estar morta a muitos anos. Eu queria ter conhecido-a, embora por vezes a detestasse por ter me gerado e abandonado ali para sofrer. Queria ter minhas próprias conclusões, entender porque foi embora e me abandonou, se é que fez isso mesmo. Mas era impossível.
Saí do escritório quando meu pai ficou calmo. Não era assim que eu me sentia, estava bem, aquela torta havia me deixado saciada, era o que me salvaria o dia inteiro, mas ainda assim estava frustrada por não ter conseguido o trabalho. Talvez Ângela tivesse me ajudado, mas aquele garoto gentil estragou tudo para mim. Me fez me sentir uma garota normal quando eu sabia que não era. Talvez ele tivesse um parente distante que morreu naquele asilo. Quando descobrisse iria me odiar também então aquela sensação de ser cuidada não havia passado disso. Uma sensação passageira que eu deveria apenas esquecer.
Contudo, não foi o que aconteceu. Mesmo quando subi para o meu quarto, tomei banho e me deitei na cama, ainda estava pensando nele. Na forma como me olhou, como parecia ter se importado em eu estar faminta. Nas sensações que me trouxe quando se aproximou, quanto tocou em mim.
Minha pele estava super sensível, me lembrando daqueles dedos. Do toque suave. Eu não devia, mas tinha me encantado por ele. Era bonito. Diferente dos rapazes da cidade. Alto demais, bronzeado, levemente forte, mas também era um desconhecido e acima de tudo um homem rico. Era óbvio. Suas roupas caras e bem cuidadas deixaram isso muito claro, embora estivesse naquela loja quase abandonada.
Balancei minha cabeça, tentando dispersar meus pensamentos. Levantei da cama, inquieta, querendo ocupar minha cabeça. Naquela casa era impossível ter um pouco de paz, mesmo por breves instantes. As paredes escuras eram sufocantes, sem falar no barulho de respiração, os assovios. Um verdadeiro horror.
Eu me dedicava em deixar arrumada. O que eu podia fazer, fazia. Varria, limpava os móveis, mesmo que no instante seguinte já estivesse repleto de poeira de novo. O único lugar onde eu conseguia respirar direito era na pequena e capenga estufa na parte de trás da casa.
Antes era bem cuidada, protegida. Agora era apenas um lugar onde eu cultivava algumas plantas e flores, as que usava para criar os óleos para passar no corpo. Era boa em química, havia aprendido a extrair o sumo do jasmin para criar o óleo essencial.
Como a estufa ficava no lado de trás da casa, havia escapado das chuvas de pedras que ateavam contra nós antigamente. Os vidros, apesar de velhos, estavam inteiros e proporcionavam o sol que as plantas precisavam.
Entrei ali e inspirei o ar com calma, sentindo o cheiro doce do Jasmim enfestar meus sentidos. Era meu cheiro preferido, além de ser a flor mais bonita que eu possuía. A estufa era meu lugar sagrado, o que havia sobrado em meio a tanta destruição.
Fui para a mesa do meio onde os caules verdes estavam secando para poder começar a extrair o óleo. Eu sabia de todos os benefícios, além do cheiro maravilhoso que a fragrância trazia para a pele, havia um alto teor curativo, para não falar que era um hidratante natural, o que deixava minha pele macia.
Peguei um frasco cheio, coloquei a essência nos dedos e os levei ensopados até alguns pontos do meu couro cabeludo, onde ainda estava doendo devido a agressão de Aidan e comecei a massagear o local, tirando a tensão e a dor.
Foi ali que escutei o barulho de galhos sendo pisados no lado de fora. Fiquei tensa, pensando se havia fechado a porta da estufa, mas logo reconheço a voz de Romeo me chamando.
-Estou aqui. -Gritei para que me ouvisse.
Sua sombra grande apareceu detrás da porta de vidro. Ele entrou, veio direto a mim, o rosto torturado cheio de preocupação. A mochila ainda nas costas.
-O que foi que aconteceu? Você saiu para ir ao banheiro e simplesmente deu o fora da escola! -Perguntou, agitado. Colocou as mãos nos meus ombros.
Respirei fundo. O fiz sentar ao meu lado na mesa. Não quis contar o que tinha acontecido, mas entre Romeo e eu não existia segredos e isso nem sempre era algo bom.
-Fui ao banheiro. Maddie e Aidan apareceram lá. Começaram a conversar e perceberam que eu ouvi, embora eu tivesse escondida no box. Eles me encontraram, tentaram me afogar debaixo do chuveiro. -Falei com tanta calma que nem parecia que tinha acontecido comigo. Era o costume. Havia me endurecido aquele ponto.
A boca de Romeo se abriu em choque. Depois se fechou quando seu rosto ficou odioso.
-Desgraçados! E o que você ouviu para que fizessem isso com voce?
Hesitei em continuar. Romeo queria que o barão estivesse doente, fiquei com medo de sua reação quando descobrisse, mas como havia dito, não poderia haver segredos.
-Você estava certo. O barão está doente.
Mal terminei, um sorriso apareceu no seu rosto. Uma expressão de glória estampando seu semblante.
-Eu sabia... Só assim para o maldito parar de andar por aí como se fosse um rei. Mas eai? O que mais descobriu? -Ficou muito interessado, chegou mais perto de mim como se eu estivesse lhe dando a melhor notícia de sua vida.
Eu não me sentia da mesma forma. Talvez devesse. Era contra a soberania do barão, mas não conseguia ficar feliz com sua ruína.
-Só isso. Ela não entrou em detalhes, mas parece que é grave, não sei do que se trata.
Ele ficou desapontado. Esfregou o rosto.
-Bem, pelo menos está morrendo. Isso é bom. -Disse, sem culpa nenhuma.
Sabia que não adiantava discutir, mas sacudi a cabeça em recusa. Ele também não discutiu. Chegou mais perto, pôs a mão na minha.
-Eles te machucaram muito? Você deveria ter me chamado.
-Para você apanhar comigo? Não. -Rebati na mesma hora.
Romeo era grande, poderia ser bom de briga, mas era estourado demais. Isso fazia com que ele entrasse em desespero. As crises de convulsões apareciam nesses momentos.
-Acha que eu não podia dar conta do Aidan? Qual é? Sou maior do que ele. -Protestou, irritado com minha descrença.
-Você ia piorar as coisas. -Fui sincera. Apertei sua mão. -O ódio que você sente destrói você, Romeo, mas você não percebe isso. Além disso... Eu estou bem. Só vou ter que evita-los por um tempo, nada que eu já não tenha feito durante esses anos todos.
Não respondeu, mas concordou com a cabeça. Queria me proteger, eu sabia disso, mas não podia. Sempre que tentava, se metia em problemas, piorava em todos os sentidos. Apesar das forças físicas serem incomparáveis, mentalmente eu era muito mais capaz do que ele, o que me dava toda a responsabilidade por qualquer coisa que acontecesse com Romeo. Sempre era culpa minha.
-Por isso você veio para casa. -Concluiu, depois de ter ficado em silêncio.
-Sim. Não dava para voltar, me deixaram muito molhada e... Minha blusa... Estava rasgada. -Falei, minha voz me traiu e saiu baixa. Aquela humilhação tinha sido pior do que a dor física.
Quando Aidan tirou minha blusa, muitas lembranças horrorosas vieram na minha mente. Ser subjugada a um homem me trazia tudo de pior que poderia existir no mundo. Lembrei de Simon, meu algoz de anos atrás. Romeo sabia disso, abaixou a cabeça.
-Sinto muito. Se eu pudesse...
-Você não pode. Nem poderia. -O cortei, antes que falasse o que pensava.
Levantei do banco de madeira e fui para o outro lado da mesa. Toquei as flores, senti algo bom. As palavras seguintes simplesmente saíram.
-Comheci alguém hoje.
Romeo ergueu as sobrancelhas na minha direção. Ficou interessado e curioso.
-É? Quem?
Fiquei pensando se deveria contar, mas se não conversasse com Romeo com quem mais eu conversaria? May seria uma ótima opção, mas já não estava mais aqui também.
-Fui na loja de doces da dona Ângela. Ela não estava, quem me atendeu foi um rapaz. Ele não me conhecia. -Expliquei, me lembrando do rosto, dos cabelos livres e escuros jogados para cima. Pele bronzeada, mas ainda num tom claro. Bonito. Muito bonito.
-Millie? Te fiz uma pergunta!
Olhei de novo para Romeo, percebendo que havia deixado de prestar atenção no que ele dizia. Sacudi um pouco a cabeça e perguntei;
-O que?
Revirou os olhos, se recostando no banco.
-Perguntei quem era o cara.
-Ah sim. -Dei de ombros, me fazendo a mesma pergunta. -Não sei. Ele não se apresentou, foi uma conversa bem rápida na verdade, acho que ele não era daqui.
Romeo concordou com a cabeça, parecia um tanto aliviado com a minha afirmação.
-Bem, a cidade fica cheia de turistas nessa época, por causa da temporada de caça. Talvez por isso não te conhecesse, pelo menos não ainda. Logo vai ouvir as histórias. -Disse, parecendo satisfeito com aquilo.
Fiquei incomodada e cruzei os braços ligeiramente rígida, embora eu soubesse que era verdade.
-Talvez ele não se importe. -Dei de ombros.
Ele me olhou como se eu tivesse ficado maluca. Riu, balançou a cabeça.
-É difícil, quem não se importaria? Além disso, as pessoas são boas em inventar coisas sobre você.
-Pode ser, mas é tudo mentira. Alguém um dia vai perceber isso. -Rebati, subitamente irritada.
Não queria aceitar que o rapaz que havia me tratado tão bem fosse capaz de me julgar baseado no que os outros falavam, sabendo também que era o que provavelmente aconteceria.
Romeo mudou a expressão. Me olhou com pena. Levantou e veio até mim. Tocou meu rosto, erguendo meu queixo.
-Não se iluda, Millie. Você quer sempre enxergar o melhor das pessoas mas a realidade é que ninguém presta de verdade. É inocência sua acreditar que um cara iria querer se aproximar de você mesmo depois de ouvir o que as pessoas dizem.
Engoli em seco. Olhei bem para seus olhos verdes, estava sendo sincero, eu também já sabia disso, mas me incomodou. Doeu. De verdade. Tirei sua mão do meu rosto e me afastei, me sentindo suja, desmerecedora de qualquer tipo de contato.
-É isso que você acha? Que ninguém se interessaria por mim? Saber a verdade da minha boca, é isso? -As perguntas saíram. Me encolhi com medo da resposta.
Romeo deu de ombros. As vezes era difícil controlar suas emoções, para mim ele não sabia mentir.
-Só estou dizendo a verdade. Até hoje ninguém fez isso, porque esse cara seria diferente?
-Não sei. Talvez pelo fato de que ele me deu um pedaço de torta de graça. Foi gentil, Se ofereceu para me ajudar a conseguir o trabalho com a Ângela... -Parei, quase contando que o homem havia me tocado, mas percebi o quanto era desnecessário, desesperado e humilhante falar aquilo.
Romeo franziu o cenho, incomodado. Depois riu.
-Porque ele não te conhece, se conhecesse iria querer ficar longe de você.
Fiquei sem ar. Aquela verdade jogada na minha cara foi dura demais de ouvir. Mais uma vez eu quis desaparecer. Romeo percebeu meu estado, tentou chegar perto de mim, mas o parei com a mão esticada na sua frente. Estava lutando contra as lágrimas quando falei:
-Você não pode dizer isso assim, como se não fosse nada. -Espremi os olhos. -Nem todo mundo é ruim, foi bom para mim ser quem eu sou, sem medo de saber o que alguém estava pensando mesmo que por poucos minutos.
Ele respirou fundo. Passou a mão pelo cabelo. Estava arrependido pelo que falou comigo, mas o conhecia bem para saber que não ia voltar atras.
-Eu sei. Deve ser bom mesmo, só quero abrir seus olhos. Encarar a verdade é melhor do que se iludir com a menttira. A vida é desse jeito. A nossa vida. Somos eu e você. Só.
A algum tempo atrás eu apenas concordaria. Sabia que era assim mesmo, mas por alguma razão naquele momento algo dentro de mim se recusou a aceitar. Olhei para Romeo vendo seu rosto sério, de quem acreditava piamente de que era assim e pronto. Percebi tudo ali. Dei um passo para trás.
-Você está com ciúmes de mim? -Perguntei, direto.
Ele ficou tenso, mas balançou a cabeça rápido.
-Não. Não é ciúmes e só que...
-Porque você não pode sentir ciúmes de mim. -O interrompi, dessa vez cheguei mais perto. Determinada a deixar as coisas o mais claras possíveis. -Nós dois não estamos juntos desse jeito, nem nunca vamos estar. Somos irmãos.
Ele fechou os olhos. Depois mexeu no cabelo.
-Só que a gente faz coisas bem opostas do que dois irmãos fazem. -Disse, abriu os olhos e me encarou.
Senti meus olhos nublarem com as lágrimas. As imagens nítidas na minha mente. A dor e a desolação passando por todo meu corpo como uma recordação que eu sempre fiz questão de esquecer. Fiquei com tanta raiva que explodi, como nunca fazia.
-Isso é apenas reflexo do que passamos, não tem nada a ver comigo ou com você de verdade, somos outras pessoas quando vamos para a cama! Isso... Isso é errado!
Assim que falei, tapei a boca com as mãos trêmulas. Arrependida. Não deveria ter dito nada daquilo. Romeo andou para trás, os olhos alarmados, perturbados. A feição totalmente destruída.
-Romeo.. desculpe..
-Não. -Ele se afastou mais quando tentei chegar perto. Já estava chorando. -Eu... Eu achei que você quisesse, você nunca me disse que foi forçada e....
-Não fui. -Menti. Desesperada para fazê-lo parar de sofrer. Por minha causa de novo. -Eu quero, preciso disso tanto quanto você. -Agarrei seu braço. As lágrimas descendo pelos meus olhos. Era tudo mentira, mas eu tinha que falar. Não queria que se sentisse ainda pior.
Ele não se afastou. Limpou o rosto, concordando com a cabeça.
-Eu sei como é, Millie. Você não me procura, mas eu sei que precisa disso assim como eu. Deixaram a gente assim. Dependentes. -Murmurou. A voz num fio saindo de sua garganta. Os olhos, embora marejados estavam distantes, perdido em pensamentos.
-Um dia vamos superar. -Tentei ser otimista. Apertei sua mão para fazê-lo me olhar. -Voce vai se apaixonar por uma mulher boa, que vai faze-lo esquecer aquilo.
Deu um sorriso sem graça e sem vontade, tocou meu rosto dispersando uma lágrima que escorria ali.
-Eu nunca vou prestar para ninguém, Millie. E nem você. Já estou confirmado com isso. A única coisa que eu quero é... Estar ao seu lado. Vamos nos recuperar juntos.
Aquilo, ao invés de me deixar feliz, me deixou pior do que já estava. Era um peso grande demais para suportar, mas eu tinha que fazer. Era a verdade. Nós dois não poderíamos nos livrar das coisas do passado, ninguém que entrasse na nossa vida teria a capacidade de entender nossa relação. Ofeguei ao pensar naquele garoto, em como me fez me sentir durante aqueles poucos minutos. Não era a minha realidade. Eu tinha que esquecer o que quer que aquilo significasse.
-Você tem razão. -Eu me convenci a dizer.
Romeo concordou. Me puxou para seus braços onde me acolheu. Geralmente eu ficava dividida entre detestar seu toque e precisar dele. Era uma coisa cruel demais. Bem como ele também se sentia. Ele nãoão gostava do que fazia comigo, mas precisava. E essas duas coisas não combinavam juntas. Era nossa forma de viver.
Quando respirou fundo contra meu pescoço, senti a ansiedade e o mesmo temor paralisante. Foi me apertando contra seu corpo, mordeu meu ombro e eu gelei. Já dava para sentir a ereção batendo contra minha barriga. Não dava para evitar quando começava. Só tinha que acabar logo de uma vez.
Me afastei um pouco de seu corpo. Vi seus olhos já opacos me observando. Não havia desejo neles, apenas a necessidade. Estava entrando no personagem que sempre tinha que interpretar para conseguir o que precisava. Não havia beijos. Carícias. Nada. Naquele momento Romeo se transformava em outra pessoa e eu tentava também. As vezes conseguia. As vezes não.
Naquela ocasião em especial eu não consegui. Parecia que eu estava consciente demais de mim, das minhas vontades recém descobertas que não tinham nada a ver com o homem na minha frente. Tinha a ver com outro alguém, que eu nunca mais veria.
Engoli a ameaça do choro. Virei de costas e me ajoelhei, apenas levantei o vestido e me expus. Depois apoiei as mãos no chão. Era daquele jeito. Somente daquele jeito. Quis dizer a mim mesma que eu queria, que precisava, mas não era verdade. Nunca foi. Eu só precisava que Romeo acreditasse nisso para que não se sentisse pior depois já que o arrependimento sempre vinha, de uma forma ou de outra.
Seu corpo tomou o meu por trás. Sem preparação. Seco. Ardido. Fechei os olhos. As lágrimas se foram. Meus pensamentos também. Lá no fim havia a escuridão que me deixava amortecida, mas daquela vez demorei para encontrar aquele lugar. Fiquei sonhando acordada no meio daquele pesadelo. Via olhos escuros e gentis, senti o gosto de cheescake na boca e um toque suave no meu braço. Foi assim que consegui suportar.
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Finn.
Haviam tantas pessoas naquela festa que eu não conseguia focar no rosto de ninguém. Eram corpos e cabeças sem nenhum sentido para mim e eu estava lá, me atrevendo a passar por elas enquanto mãos apertavam a minha, batiam cordealmente no meu ombro. Palavras de insentivo eram ditas, mesmo que eu não prestasse atenção em nada e sorrisse sem vontade para todos os lados.
No meio da confusão, havia apenas um rosto pelo qual eu estava procurando. Aquele que não havia saído da minha mente desde que vi pela primeira vez mais cedo naquele dia. Tentei parar com isso. Não estava me reconhecendo, mas era inevitavel. Tinha que saber alguma coisa, ir atrás, vê-la de novo.
Demorou muito para que eu concluísse que não estava na festa. No fundo eu sabia. Uma garota como aquela que não tinha dinheiro para comprar nem um pedaço de torta, jamais cruzaria a cidade para vir até nossas terras. Quem estava ali, com certeza tinha aberto mão de uma boa grana para estar arrumado ou para pagar condução e vir. Aquela garota simplesmente não poderia fazer isso. Era claro que estava passando dificuldades, jamais faria aquilo.
As luzes no descampado no lado de fora da casa eram como holofotes em cima de um palco. Dava para ver bem a multidão em festa, as mesas ao redor do campo muito cheias de comida enquanto mais era preparada lá dentro. Só conseguia pensar se aquele pedaço de torta havia sido a única refeição daquela garota, com certeza era e se não fosse, era provável que não tivesse nenhum terço do que tínhamos naquele jantar.
Era um exagero desmedido. Pura ostentação de todos os lados. As pessoas se empanturravam como se nunca tivessem comido na vida, um banquete feito para os mortos de fome que acreditavam que mereciam estar naquela situação.
Tudo o que eu sentia ao ver aquilo era revolta. E ela crescia a cada segundo. Quando eu era criança, nem reparava nesses detalhes, mas já havia crescido e agora estava de volta ali encarando a realidade, e a realidade era de que meu pai havia se tornado rico e poderoso às custas dos outros. Enquanto as pessoas que confiavam em seu poder, viviam a mingua, esperando pelas mudanças que nunca vinham de forma positiva para elas.
O encontrei rodeado da nata rica que compunham a cidade. O prefeito, vereadores e mais uma porção de donos de terras, nenhum deles rico como meu pai, mas todos faltando beijar o chão por onde ele passava.
Estava imponente naquele terno cor de vinho. O rosto plácido e satisfeito como se não estivesse sendo corroído pelo câncer que lhe devastava por dentro. Hipocrisia pura e camuflada. Eu duvidava que qualquer um ali além da nossa família soubesse de alguma coisa.
Quando me viu, meu pai fez sinal para que eu me aproximasse. Sério, levantando apenas a aba do chapéu me dizendo que não era um pedido. Era uma ordem. Me despedi da senhora que estava me contando sobre a crianção de gado que estava fazendo e fui até lá entende-lo.
Os outros homens pararam de conversar quando cheguei, mas ainda balançavam os copos cheios de uísque, me olhando como se eu fosse uma presa fácil, todos achando que eu seria mais fraco do que meu pai. Esperavam que eu cedesse logo que assumisse aquela merda, estavam ansiosos por isso.
-Finn, esse aqui é o prefeito Hernandez e sua esposa Michele -Apresentou, fazendo menção ao casal na minha frente.
O cara, obseso e velho. Bigodes escuros. Olhos minúsculos atrás das lentes dos óculos que usava no rosto. O maior bobalhão que já havia visto na vida. Quis rir. Claramente era um fantoche mas mãos do meu pai, mas apenas acenei, apertei sua mão rechonchuda e suada. Olhei para a esposa. Uma mulher jovem, por volta da idade da minha mãe, mas esse não era o problema. A mulher era linda, cabelos longos e loiros, alta demais para o velho que poderia claramente ser seu pai. Claro que aquele tipo de relação era vista com bons olhos por todo mundo, mas para mim era nítido que estava com ele por dinheiro. Eu não era capaz de julga-la por isso. Não havia chance melhor de sobreviver naquela cidade se não se sacrificasse daquele jeito.
Fui gentil. Toquei sua mão, beijei o dorço.
-Prazer, Michele.
Meu pai chamou os outros caras e os apresentou como vereadores. Somente homens. Igualmente velhos e feios, igualmente acompanhados por mulheres que tinham menos do que o dobro de sua idade. Ridículo, para dizer o mínimo. Eles sim pareciam mais espertos, me sondaram. Eu não dei a mínima. Principalmente quando começaram a falar sobre a caçada que estava para acontecer nos dias seguintes.
Todos da cidade deixariam suas casas e iriam adentrar as florestas. Alguns tinham bangalôs dentro dela já prontos para isso, alguns mais pobres, a maioria, levariam cabanas. Antigamente isso parecia uma coisa boa. Havia cantorias, fogueiras, além de muita carne, mas só ali percebi o verdadeiro significado daquele acontecimento.
Era quando as pessoas tinham direito a comer carne de primeira. A vender o que sobrasse. Basicamente aquela única semana era o que salvava-os da miséria durante o ano. Mas para meu pai e para aqueles homens, era só diversão. Mais uma forma de comandar todo mundo.
Eu não comentei nada. Apenas ouvi as risadas e os absurdos, me obrigando a sorrir e fingir que concordava. Queria beber, encher a cara para esquecer o que estava vendo e ouvindo, mas a festa só fora abastecida com uísque e bebidas quentes. Nada de cervejas ou drinks. Ninguém bebia aquilo em Stoney Fork.
-Cerveja é coisa de amador. Quem gosta de uma bebida suave que não desce rasgando para esquentar o sangue? É esse o nosso diferencial, somos machos de sangue quente, por isso temos as mais belas mulheres na nossa cama! -Alguem comentou por cima das risadas. Virei o rosto, reconheci o timbre.
Se dispersando do meio das pessoas, vi meu tio Simon vindo em nossa direção. Minha mãe ao seu lado rindo com vontade do que falava, Maddie e Aidan também. Fiquei contente em vê-lo, mas estava diferente. Magro demais. Em geral parecia com meu pai, só que sempre foi mais brincalhão da família.
-Eai, garoto? Como está sendo sua volta a Stoney Fork? -Perguntou quando chegou, bateu no meu ombro. Sorrindo.
O abracei, socando seu ombro também. Havia sentido falta de seu bom humor. Dez anos sem vê-lo e aquilo não tinha mudado.
-Me adaptando. E você? A mamãe disse que estava viajando já tinha um bom tempo.
Ele deu de ombros. Olhou ao redor. Bebeu o uísque.
-Sabe como é, não dá para me prender em um único lugar. Aliás, estou noivo.
Aquilo me surpreendeu. Olhei para meu pai que agora já havia se distanciado dos babacas e estava olhando na nossa direção sério e crítico, como se não gostasse da chegada do meu tio. Minha mãe ainda sorria, foi Maddie quem falou.
-Victoria, venha aqui! -Empurrou Aidan e segurou na mão de uma mulher que estava atrás de si.
Mulher porra nenhuma. Uma garota. Fiquei em choque quando vi todos achando normal quando meu tio pegou na mão dela e a levou para os lábios, juntou seu corpo ao lado do dele. Sempre tinha sido mulherengo, era chefe da polícia então elas caiam matando, por isso mesmo achei que nunca ficaria sério com alguém, especialmente se esse alguém fosse muito, mas muito mais nova. Eu estava falando daqueles nojentos a poucos minutos para descobrir que meu próprio tio era um deles.
-Amor, cumprimente meu sobrinho. Filho do barão. -Ele falou para ela.
Foi a primeira vez que reparei de verdade. Era baixinha, olhos claros e castanhos. Cabelos castanhos também. Longos. Branca. Características muito familiares. Pensei naquele anjo que tinha conhecido mais cedo, mas não era ela, apenas era muito parecida, mas não chegava aos seus pés, mesmo com aqueles detalhes e sendo bonita. Não tinha a áurea boa. O olhar doce. Nada. Na verdade parecia estar fingindo aquilo tudo, como se quisesse agradar.
-Prazer, Maddie falou muito sobre você. -Disse Victoria, apertando minha mão. Os olhos brilhando e encantados, claramente a fim.
Eu não quis entender. Mas entendi. Era amiga de Maddie. Estudava com ela.
-Prazer. Bom conhecê-la.
Mesmo assim fui educado, mas estava confuso. Enjoado. Principalmente quando apertou minha mão e deslizou a unha na minha palma.
Meu tio a puxou de volta. Deu um beijo em sua boca. Só a largou quando meu pai mandou. Meu pai parecia irritado com aquilo e eu agradeci intimamente. Chamou-o para o lado e os dois saíram. Maddie, nossa mãe e a tal Victoria que queria se passar pelo meu anjo começaram a conversar, mas ela estava de olho em mim. Só me restou aquele babaca do Aidan, deu para ver que ia chegar perto para falar alguma coisa, mas eu fui mais rápido.
-Vou dar uma volta. -Apenas disse e me virei.
-Seus avós estão chegando, fique por perto! -Minha mãe gritou, mas eu não parei.
Queria fugir dali. Das pessoas que eu não conhecia, mas principalmente das que eu conhecia. Da minha família que tinha acabado de se tornarem estranhos para mim.
Cheguei perto da clareira onde meu pai havia me dito que eu ia embora a dez anos atrás. O ponto que dava para ver a cidade toda e era o mais distante de todos. Vi um vulto sair de dentro da escuridão e parei, pensando que já haviam me encontrado, mas era Jack, limpando pedaços que grama que tinham ficado grudados no terno.
-Cara, que merda você estava fazendo aí? -Perguntei quando o vi.
Ele riu, deu de ombros.
-Foi mal, a festa estava cheia demais e eu não te encontrei, sai um pouco para fumar um cigarro. -Explicou sacando uma carteira e um isqueiro. O terno grande demais, provavelmente comprado às pressas. -Voce quer um?
Franzi os lábios e balancei a cabeça. Todo mundo fumava. Isso eu já havia percebido também.
-Eu não. Nem você devia, isso é uma merda. -Recusei friamente.
Ele riu de novo, mas concordou e guardou aquilo de volta no bolso.
-É costume. Algumas coisas são inevitáveis.
-Onde a Ângela está? E o seu pai? -Perguntei, me sentando no banco de madeira que tinha ali debaixo da árvore.
-Estao por aí fazendo a maior propaganda da loja, eu já avisei que não ia adiantar de nada, mas não ouviram. -Brincou, mas estava falando sério.
-Vou falar com meu pai. Podemos ver um empréstimo, seus pais vão poder reerguer a loja. -Ofereci, me lembrando que já havia pensado nisso.
Jack me olhou como se eu fosse maluco. Sentou do meu lado e me empurrou.
-Mal chegou e já quer mudar as coisas? Calma aí, vai levar um tempo até você ser o barão.
Eu já havia contado sobre a doença do meu pai para ele, por isso o comentário. Estava achando que eu havia exagerado. Obviamente, quem visse meu pai daquele jeito nunca ia pensar o pior.
-Não sei, talvez não. -Fiquei sem coragem de explicar. Sem vontade, na verdade. -E... Digamos que eu não estou muito a fim de ser coisa alguma depois que ele morrer.
Jack arregalou os olhos. Agora sim, tinha certeza de que eu estava ficando maluco.
-Cara, seu pai vai pirar. Você está condenado a isso desde que nasceu.
-Você disse certo. Condenado. -Salientei, desgostoso de que aquele fato já fosse de conhecimento geral de todos. -Por isso estou pensando em recusar. É bizarro demais, eu não quero isso pra mim
Se alguém me pegasse dizendo aquilo seria o fim. Mas com Jack eu poderia me abrir. Ao invés de rebater ele abriu um sorriso, não conseguiu esconder.
-Finalmente alguém que pensa diferente. Não me leva a mal, não quero falar mal do seu pai, mas essa coisa já está ultrapassada. Essas pessoas merecem mais do que isso.
Fiquei impressionado. Achei que Jack fosse defender a situação, que estivesse alienado, mas vi ali que era uma das poucas pessoas que tinham uma visão aberta. Objetiva.
-Só preciso arranjar um jeito de escapar. Não seria fácil, apesar de tudo ele está doente. -Deixei meus ombros cairem. A doença sempre me vinha na mente, driblando a minha determinação.
Jack ficou em silêncio, chutou algumas pedrinhas com os sapatos e depois disse:
-Se ele tem pouco tempo de vida eu acho que você não deveria disperdisar com brigas. Fica perto, finge interesse. Quando ele morrer as coisas mudam, você vai estar livre.
Minha testa se encrispou quando pensei naquilo. Eu havia voltado à força, pensando que não havia solução e de fato compreendi que a única chance de liberdade seria quando meu pai morresse. Balancei a cabeça recusando-me a pensar assim. Não haveria nada de bom com a morte do meu pai e eu não podia pensar em liberdade quando estivesse vendo-o começar a morrer pouco a pouco. Eram coisas demais e estava tudo no começo ainda.
Quando não respondi, Jack empurrou meu ombro, me dispersando dos pensamentos.
-Relaxa cara. Uma coisa de cada vez, você vai ter tempo para pensar no que fazer. Agora me diz, achou o anjo caído por aí em algum lugar? A cidade em peso está aqui. -Sorriu, querendo me animar.
Neguei com a cabeça e soltei um suspiro exausto. Como se não bastasse ainda havia aquilo na minha mente. A porra de uma garota que eu não tinha tido nem cinco minutos de conversa.
-Ela não veio. Eu te disse, é pobre, muito pobre. Não poderia chegar até aqui. -O lembrei.
Jack deu de ombros, esticou as pernas para frente.
-Mais um motivo para você esquecer. As pessoas daqui não são confiáveis e se você acha que uma garota assim não iria se aproveitar da situação está muito enganado. -Falou com propriedade.
Tentei pensar, mas não consegui. Tudo o que senti dela foi doçura, medo, curiosidade. Nada de interesse.
-Ela foi embora, fugiu de mim. Nem sabia quem eu era, como poderia ser interesseira? Mesmo se fosse... Eu sou rico e...
-Caralho você está gamado demais. -Me interrompeu, rindo de deboche. -O que foi? Cansou da selvageria da Califórnia e quer experimentar uma santinha?
Me arrependi de ter contado a ele sobre minhas conquistas na Califórnia. Ouvi-lo falando daquele jeito me fez sentir desgosto de mim. Mesmo assim eu não podia ser tão idiota ao ponto de explicar algo que nem eu entendia.
-Nada a ver. Não é por isso que quero encontrá-la. Eu te disse, quero ajudar. Ela passa necessidade. -Reiteirei, querendo acreditar mesmo que era só isso.
Jack me olhou como se não acreditasse, mas maneou a cabeça.
-Bem, se você quiser ajudar todas as moças pobres daqui vai estar com um problemão. -Ficou mais sério quando disse. Ele entendia o que eu estava começando a entender sobre a dinâmica social de Stoney Fork.
Jack tinha dinheiro. A família se sustentava bem, embora não fossem ricos, mas dava para ver que a realidade não havia lhe passado batido.
-Vou começar por ela. Quem sabe assim faço minha parte. -Completei.
Jack levantou de novo e ajeitou o terno. Pegou um molho de chaves no bolso e me entregou.
-Pra que isso? -Indaguei, mas me levantei também.
-Ora, vamos rondar essa cidade no meu carro. Não é lá essas coisas, mas dá para o gasto. Em algum lugar ela deve estar, aqui não é tão grande assim, além disso metade das pessoas estão na festa. -Sugeriu, parecia ansioso em sair dali tanto quanto eu fiquei ao pensar.
Olhei em direção a festa. Minha família ali comemorando, mas meu pai e o tio Simon havia sumido. Era a deixa.
-Vamos nessa. -Chamei.
Jack bateu no meu ombro e conseguimos espacapar às pressas. Iria arranjar uma confusão com meu pai depois, mas não me importei. Tinha uma chance de encontrá-la e não iria disperdisar por nada.
O carro de Jack era um volvo simples de segunda mão. Os pneus cheios de lama por causa das estradas. Foi ele quem dirigiu, falando a todo momento sobre todos os lugares que conhecia e que estava acostumado a ir.
Fomos em todos eles. Bares, lanchonetes, praças, restaurantes, no pequeno shopping. Todos praticamente vazios e quem estava lá não era nem de longe parecido com ela, mas não desistimos. Horas se passaram, a noite ficou mais escura, as ruas praticamente desertas enquanto dissecavamos todos os arredores.
-Cara, agora só se a gente bater de porta em porta. Já cruzamos todos os limites, essa garota não deve sair de casa. -Ele disse quando estavamos de fato chegando no outro limite da cidade.
Eu me sentia tudo, frustrado, irritado, incomodado, menos cansado de procurar. Não era possível que eu não a encontrasse. De um jeito muito preocupante e bizarro, eu precisava fazer isso.
-Vamos por esse lado, ainda não fomos por ali. -Falei, apontando para outro lado do cruzamento. Um ponto escuro e mais afastado.
Jack olhou para mim e diminuiu a velocidade.
-Cara... Ali não tem nada. Só... Os destroços do Asilo, algumas casas mais para o final e... A casa do Robert Brown. As pessoas não costumam querer passar ali em frente. -Disse ele, temeroso.
Me lembrei do caminho. Havia passado pela casa quando cheguei e a vi, mas tinham mais outras casas naqueles arredores, mais distantes e mais simples, ela tinha que morar em uma delas.
-Não vai fazer mal se a gente for. Talvez a encontremos. -Indiquei de novo a estrada. Eu não ia insistir demais se Jack não quisesse.
Mas ele deu de ombros e mudou o carro de faixa. Os caminhos eram escuros e sombrios, naquela parte, a noite, parecia que não havia iluminação suficiente na rua, mas eu estava com o rosto quase grudado no vidro do carro, atento a qualquer coisa.
Jack ia devagar e isso proporcionou que eu visse a casa enorme e velha de Robert começando a aparecer mais a frente, meus olhos bateram ali com curiosidade e de repente tudo pareceu passar em câmera lenta naquele instante em que vi a porta da casa se abrir. Foi ela quem saiu de lá. Estava escuro, mas eu a reconheci e não acreditei. Não podia ser.
-Pare. -Pedi, sem desviar os olhos. -Pare o carro!
Jack fez o que mandei meio assustado, estavamos do outro lado da avenida, não chamamos atenção. A constatação era um buraco se abrindo no meu cérebro me fazendo ser capaz de ter um clarão tão grande que me senti zonzo. Eu tinha que verbalizar, principalmente quando Jack tocou o meu ombro.
-É ela. -Falei
Nem ouvi minha própria voz, mas escutei quando ele soltou um muchocho, um gemido. Esfregou a cara.
-Ela? Não pode ser ela cara...
Eu não respondi. Estava tão incrédulo quanto ele e precisava olhar mais. Ter a imagem completa para conseguir raciocinar. Ela estava saindo. Tão linda quanto eu me lembrava, só que agora seus cabelos estam amarrados em um rabo de cavalo. Usava um outro vestido branco sem mangas, mais velho do que usava mais cedo. Reparei até mesmo no rosto, meio vermelho como se tivesse feito esforço. A respiração cansada. Estava saindo, olhou para dentro daquela maldita casa e foi quando um cara saiu também. Os dois conversaram alguma coisa, ele a beijou no rosto e desceu pelo jardim descuidado. Ela ficou lá parada vendo-o entrar no carro, até quando saiu ela ainda ficou, mas olhou para o céu escorada naquela porta, parecia pensativa. Triste.
Eu não queria acreditar. Havia um alerta vermelho pulsando na minha mente. Era filha de Robert. Pior inimigo do meu pai. Aquela garota que em pouquíssimo tempo tinha me feito perder a cabeça era simplesmente inalcançável para mim. Ainda vidrado na imagem, percebi quando Jack se mexeu, olhou para mim com desconfiança.
-Cara, as pessoas falam que...
-Eu sei o que a porra das pessoas falam. -Interrompi antes que continuasse. -Eu... Não sabia quem ela era.
Ainda não acreditava. Estava ali diante dos meus olhos a prova. Ela morava naquela casa, provavelmente seu maldito pai estava lá dentro também. Ela cuidava dele? As coisas que Maddie havia me dito estavam na minha cabeça, agora mais fortes do que nunca. Houve uma movimentação interna. Ela se assustou e olhou para o interior da casa, tive vontade de descer daquele carro, mas não o fiz e ela entrou fechando a porta.
-Qual o nome dela? -Perguntei, sem olhar para Jack, ainda estava mirando a casa detonada.
-Millie. -Ele respondeu como se só agora estivesse tão obvio. -Eu nunca falei com ela, você sabe, é uma coisa complicada. Tem aquela história do Robert e da mãe dela.
Eu me lembrava de tudo. Ainda era criança quando o asilo explodiu, eu não tinha visto o cara ser preso, mas vi a revolta das pessoas principalmente do meu pai quando Robert voltou para casa já muito doente. Naquela época eu pensara na menina, mas nunca tinha ido atrás, fui embora para a Califórnia logo em seguida. Millie... Nome curto, forte, doce como ela. Ou como eu achava que ela era. Como poderia ter certeza? Não tínhamos passado nem cinco minutos conversando.
Jack colocou as mãos no volante e o apertou. Parecia não acreditar tanto quanto eu, mas eu precisava saber mais. Sabia que Maddie tinha raiva daquela família, poderia ter inventado ou exagerado os boatos.
-O que você sabe dela? -Perguntei o encarando. Eu estava suando sem razão nenhuma, ansioso, mas amortecido.
Ele maneou a cabeça, talvez pensando se deveria me dizer.
-Eu não sei de nada exatamente. São as pessoas que falam, cresci ouvindo as histórias e...
-Que histórias? -Insisti com mais firmeza. Quase com desespero.
Ele me olhou com uma espécie de pena. Eu odiei, mas sabia que eu não iria desistir. Contou o que sabia.
-Dizem que ela é igual a mãe. Se sustenta se prostituindo e se você parar para pensar... Faz um pouco de sentido, ela não tem emprego e o pai dela está muito doente, como eles sobreviveriam sem dinheiro?
Tentei raciocinar, achar o sentido nisso, mas não havia um. Sacudi a cabeça, passei a mão pelo rosto.
-Não acho que seja verdade. Ela estava faminta na loja, eu vi. Não era invenção. Além disso... Você viu o rosto daquela menina? Como poderia ser uma prostituta?
Jack riu amargamente. Balançou a cabeça.
-Pois é. É o que falam também, funciona como um disfarce, por isso atrai homens, no caso, clientes.
Senti raiva. Vontade de mandar Jack calar a boca, não falar daquele jeito sobre ela. Mas como eu poderia faze-lo? Como eu poderia ter tanta certeza? Só tinha visto uma vez na vida.
-Quem sabe foi isso o que ela fez. Foi lá na loja porque sabia que você ia estar, se fingiu de moça carente de propósito para te atrair. Parece que deu certo.
-Não. Não foi. Ela não sabia quem eu era! -Refutei. Daquilo eu tinha certeza absoluta.
Jack pegou no meu braço. Me formou a olha-lo.
-Acorda, Finn! Quem não conhece você? Quem nessa merda de cidade não sabia que você estava voltando? Por favor, não seja tão ingênuo a esse ponto.
Porra. Eu quis gritar com ele. Sair daquele carro, ir até lá e bater na porta. Exigir uma explicação, ver com meus próprios olhos a verdade. Era uma merda de situação. Mas comecei a me sentir meio idiota por não ter cogitado a possibilidade antes, por ter agido daquele jeito desesperado sem saber de porra nenhuma sobre aquela garota.
Me soltei de Jack, cruzei os braços.
-E aquele cara? Poderia ser um cliente? -A pergunta saiu amarga da minha boca. Eu não conseguia pensar direito. Estava morrendo de ciúmes e enjoado ao pensar que ela era mesmo uma puta.
-Não sei. Eles são amigos, acho que é o único que ela tem. Ele é filho dos donos daquele restaurante, passamos por lá quando viemos. -Hesitou, riu sem vontade. -O cara é doido.
Franzi o cenho sem entender. Ele explicou.
-Doido do tipo surtado mesmo. Toma remédio e tudo o mais... Eu não sei direito das histórias, eles são mais novos do que eu, não tive contato direto, mas até onde sei eles estudam com a sua irmã.
Fechei os olhos, encostando a cabeça contra o banco do carro. A cada segundo mais confuso, os pensamentos que já não eram concretos cada vez mais sem fazer sentido.
Jack ficou em silêncio por um tempo. Depois ouvi quando ligou o carro. Abri os olhos, ele estava se ajeitando no banco.
-Acho melhor a gente sair daqui. -Avisou, antes de dar partida. A pena ainda no seu olhar.
Eu não queria. Mas assenti. O que mais poderia fazer? O que eu poderia saber mais do que aquelas pessoas? Ele saiu, em determinado momento suspirou.
-Olha só, pode ser tudo invenção. Eu não me surpreenderia se fosse. As pessoas daqui sentem raiva, podem estar culpando ela sem razão. Mas também pode ser verdade, não temos comos saber.
Ouvi aquilo, mas não quis aceitar. Havia algo dentro de mim que me dizia que tinha muita coisa por trás daquilo tudo. Coisas que ninguém tinha se preocupado em saber e que poderia mudar tudo.
-Na verdade temos como saber sim. É até fácil. -Falei, surpreendendo muito meu amigo que me olhou preocupado.
-Se eu fosse você não se meteria nisso. Ok, ela é bonita, atraente, nitidamente é infeliz mas você seria um alvo fácil se tudo isso for verdade.
-Basta ela não saber quem eu sou. E pelo menos disso eu tenho certeza. Ela não sabe. -Conclui, o plano muito claro em minha mente, embora ainda não tivesse muito certo.
Ele balançou a cabeça. Hesitou, como se estivesse pensando em rebater, quando ele me olhou de novo já tinha entendido o que nem eu ainda tinha.
-Você vai atrás de saber por conta própria não é? E não vai dizer a ela quem é você de verdade.
Olhei para fora. As plantas se mexendo com a força do vento, o frio desolador daquela cidade. Minha cidade. Minha responsabilidade. Se eu ia ficar ali para sempre, tinha que fazer aquilo, descobrir as coisas por mim mesmo e não pela boca de mais ninguém. Se fosse verdade, eu esqueceria com o tempo, se fosse tudo mentira iria ajudá-la, mesmo que depois ela quisesse distância de mim quando soubesse quem eu era e que havia mentido. Um jogo difícil. Eu estava entrando dentro dele sem perceber.
-Sim. É o que eu vou fazer.
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