"Juramentos são feitos para serem quebrados.
Sentimentos são intensos
Palavras são triviais
Prazeres permanecem
A dor também
Palavras são sem sentido e esquecíveis
Aprecie o silêncio"
Millie.
-Não diga o meu nome em voz alta! -Odernou, do outra lado da linha.
A pequena impressão de que eu estava mesmo ficando louca ao ouvir aquela voz, se desfez, me dando completa certeza pois não era possível que Romeo estivesse mesmo me ligando.
-Meu Deus... É você mesmo? -Perguntei trêmula, ainda sofrendo com a sensação de falta de ar que de repente me tomou.
-Sou eu. -Disse ele com firmeza, mas aos sussurros. -Agora preciso que me escute, eu não tenho muito tempo. Você está em casa? Está sozinha agora?
Sacudi a cabeça. Atordoada, querendo voltar a realidade, sem entender nada que se passava. Como era possível que eu estivesse mesmo conversando com Romeo depois de meses em que ele estava desaparecido?
-Millie? Preciso que me responda agora! -Insistiu, quando eu não fui capaz de falar nada.
Tateei a parede ao meu lado buscando fôlego e sustentação. Chocada demais. Minha cabeça dando voltas e mais voltas sem chegar a lugar algum. A sensação era de que eu estava em um sonho confuso, tentando despertar mas não conseguia.
-Estou... Estou sozinha, onde você está? Como...
-Calma! -Me cortou, aumentando consideravelmente o tom de sua voz. -Apenas me escute. Não tenho tempo para falar muito, mas estou em Stoney Fork e preciso que você venha me encontrar.
A confusão em minha cabeça apenas aumentava conforme ele falava. Ele estava na cidade e queria me encontrar, mas como? Porque?
-O que aconteceu? Você está bem? Por Deus faz tempo que sumiu! -Gritei, apavorada, tentando me manter de pé tremendo inteira dos pés a cabeça.
Ele suspirou de forma audivel no outro lado, parecendo como eu tentar se acalmar. Eu reconhecia cada traço de sua voz e ele parecia acuado e assustado.
-Estou bem, mas não por muito tempo. Preciso que me encontre Millie, ainda hoje e na sua casa.
-Aqui? Você quer vir aqui? -Eu não acreditei.
-Essa não é a sua casa! Estou falando da sua casa de verdade!
Engoli em seco, sem conseguir responder. O pânico impedindo-me até mesmo de respirar corretamente.
-Não tenho muito tempo. -Repetiu ele, cada vez mais desesperado. -Apenas venha me encontrar em duas horas. Traga dinheiro, qualquer coisa que conseguir, mas principalmente, venha sozinha e não avise a ninguém.
-O que você está fazendo? Eu não estou entendo nada, por favor me explique! -Implorei, me agarrando com força ao móvel perto da parede.
-Vamos conversar quando você vier, agora não dá. Ainda posso confiar em você, Millie? Posso confiar que você virá e não contará a ninguém?
Fechei os olhos, reconhecendo seu medo e gelando por dentro. Tudo o que eu mais queria era vê-lo, constatar o que estava acontecendo, mas não podia. Havia prometido a mim mesma que se ele fizesse qualquer contato comigo, Finn seria o primeiro a ficar sabendo. E ele iria.
-Eu.. não posso ir. -Falei, com o coração apertado. Chorando muito por negar o pedido do meu amigo. -Fiquei onde está Romeo, eu vou posso tentar pedir ajuda e...
-Não, Millie! -Ele grunhiu. -Não tenho tempo a perder e não preciso de ajuda de ninguém além da sua. Preciso que venha aqui. Preciso que traga qualquer dinheiro e não avise a ninguém. Se você não vier posso estar morto antes do final do dia, está entendendo? Se ainda tem qualquer tipo de sentimento por mim, faça o que estou pedindo, ou..
-Eu vou. -Falei de repente, entre os soluços do choro desesperador. -Por favor se acalme! Não faça nenhuma besteira!
Eu conhecia Romeo bem demais para saber que aquilo não era um blefe e não podia sequer imaginar perde-lo por minha negligência, mesmo que agir daquela forma fosse completamente o oposto do que eu havia prometido a mim mesma.
-Em duas horas, Millie eu vou estar esperando por você. Por favor venha e venha sozinha. Eu preciso de você.
Ele desligou sem esperar por qualquer resposta minha. Tremendo, tentei retornar a ligação, mas a chamada foi automaticamente desligada como se o número nem mesmo existisse. Cedi aquela loucura e deslizei contra a parede sem conseguir controlar os tremores. Os medos. Os questionamentos.
Eram tantas perguntas que eu não conseguia me fixar em apenas uma delas para pensar direito. Romeo estava por perto. Queria dinheiro, mas para que? Para fugir? Ele estaria machucado? Escondido? Preso? Deus! Eu iria enlouquecer!
Doía ainda mais pensar em Finn. Na promessa que eu havia feito, mas como eu conseguiria cumprir se ele estava a centenas de quilômetros de distância e incomunicável naquela fazenda? E como poderia dizer não a Romeo e deixar que algo ruim acontecesse a ele? Mais uma vez tentei ligar para Finn, desejando mais do que tudo que dessa vez ao menos tivesse algum retorno, mas não tive nada além da voz eletrônica pedindo para que eu gravasse um recado.
-Finn... Quando você escutar esse recado, por favor volte para casa. Eu... Preciso de você aqui. -Falei entre os soluços na gravação.
Não sabia que horas ele receberia a mensagem, mas estava ciente de que ele voltaria assim que recebesse. Tinha que voltar. Eu precisava dele para ajudar Romeo, para impedir que meu amigo se matasse e ele precisava entender minhas razões.
As próximas horas passaram como em milésimos de segundos. Zanzei pelo quarto sem sair nem mesmo para comer alguma coisa, as palavras de Romeo zunindo em minha cabeça o tempo inteiro. Ele queria dinheiro, e parecia urgente.
Tudo o que eu tinha em mãos eram cinquenta dólares trocado. Nenhuma quantia a mais do que isso em dinheiro. Por um segundo pensei na quantidade que Finn guardava no cofre, mas sacudi a cabeça, me convencendo de que além de errado era imprudente levar mais do que aquilo. Eu ajudaria Romeo caso ele precisasse de algo, mas não podia ajudá-lo caso seu plano fosse fugir, especialmente sabendo que ele era culpado pelos incêndios. A única coisa que precisava era de tempo. Mante-lo em segurança até que Finn chegasse e me ajudasse em resolver essa questão. Ele ficaria com raiva e confuso, mas certamente com um pouco de sorte ele iria ouvi-lo. Finn era justo e se Romeo confessasse eu tinha certeza que Finn o daria o destino certo.
Abri a gaveta da nossa cômoda no closet e encontrei a coleção de relógios cromados que Finn possuía e me sentindo a pior pessoa do mundo, furtei um deles. Se vendesse certamente conseguiria uma boa quantidade de dinheiro para ajudar Romeo até que Finn chegasse e ele me perdoaria. Ele entenderia que eu não tinha tempo de pegar dinheiro no banco e precisava daquele relógio. Pelo menos era o que eu dizia o tempo todo a mim mesma.
Assim que me convenci de que não tinha outra escolha, enrolei o relógio dentro de uma camisa de algodão e enfiei tudo em minha bolsa. Em nenhum momento me senti preparada para fazer aquilo, mas eu não tinha outra saída.
Deixei Winnie fora do quarto e ela acompanhou minha euforia em descer para o andar de baixo enquanto eu solicitava um carro pelo Uber para me buscar. Estava quase no começo da tarde, consegui sair de casa sem chamar atenção uma vez que Mary parecia estar ocupada com o almoço e os empregados ocupados em seus serviços.
Fui para o jardim esperando a confirmação da minha viagem. Estava nervosa. Sentindo-me uma criminosa agindo na surdina com medo de ser pega em flagrante.
-A senhora vai sair?
Virei assustada em um rompante quando escutei a voz vinda atrás de mim. Era um dos seguranças que rondavam a propriedade. Ele parou perto do portão de acesso ao jardim e cruzou os braços, não parecia desconfiado, apenas curioso e eu ainda assim não consegui disfarçar.
-Eu.. sim. Preciso ir ver uma amiga. -Gaguejei, segurando a bolsa com firmeza como se ele pudesse enxergar o que eu carregava dentro dela.
-Tudo bem, peço para um motorista para levá-la e..
-Não! -Falei, quase num grito, o que alertou o homem. Sorri nervosamente, tentando inutilmente dissuadi-lo. -Desculpe, não é necessário. Eu já chamei um Uber e ela já está me esperando, mas obrigada pela gentileza.
O homem enfim demonstrou um traço de desconfiança erguendo uma das sobrancelhas ao me fitar, mas não insistiu e tampouco me deixou sozinha. Ficou esperando como uma estátua até o momento em que o Uber chegou. Sorri para ele de novo, recebendo um maneio de cabeça de quem nitidamente sabia que eu estava mentindo. Não fazia diferença, aquela altura se ele conseguisse ligar para Finn para avisar sobre minha fuga eu o agradeceria.
O motorista do Uber que já tinha recebido a localização da minha casa, fez o caminho sem me fazer perguntas, enquanto eu parecia estar embarcando em uma viagem no tempo. Faziam meses que eu não tomava aquele trajeto.
A última vez que tinha ido em casa foi no dia que papai levou o tiro e agora estava voltando por uma razão que eu não conseguia me decidir se era melhor ou pior.
As ruas foram se fechando, as casas sumindo ao entrar na parte da cidade onde ficava minha casa. Distante de tudo. Isolada do mundo. O lugar que me puxava não importava o quanto eu estivesse longe e o quanto fingisse que ele não existia.
Era como se eu tivesse criado raizes naquele lugar. Sempre voltava para ele independentemente da vida que eu levava fora de lá. Achei que já tinha me livrado daquele passado, mas estava absolutamente enganada.
Naquela área até mesmo a rua parecia mais escura. Era realmente como se fosse em um mundo paralelo onde viviam apenas as piores e mais dolorosas lembranças da minha vida.
O carro parou e eu esperei alguns minutos para conseguir sair de dentro dele. Postergando o momento em que me veria naquele lugar de novo. Respirei fundo incontáveis vezes sabendo que estava sendo assistida pelo motorista, mas não importava.
Quando enfim me senti mais preparada fiz o pagamento e desci. O ar gelado lambeu minha pele e eu vi a casa dos meus pesadelos.
Se achava que ela estava deteriorada antes, agora simplesmente parecia caindo aos pedaços. As paredes escuras estavam tomadas por heras enormes que iam do chão ao teto. A grama enorme, mal cuidada, insetos correndo por todos os cantos. Um cheio enjoativo e altamente familiar de sangue misturado com terra e sujeira.
Meu coração apertou ao ver o estado em que a casa se encontrava. Meu estômago revirou. Era tudo tão familiar, mas ainda assim tinha a capacidade de me assustar como se eu voltasse a ser criança.
As janelas presas por pedaços de madeira estavam fechadas e uma faixa amarela indicando que estava interditada devido uma investigação que nunca foi levada a diante pela policia encobria todo o perímetro. Era a cena de um crime. Um crime de tentativa de homicídio que todos ignoraram por que era contra meu pai.
Pisei na calçada tendo que driblar os pedaços soltos do concreto do chão. Tudo parecia depredado, baldiado, esquecido. Não dava para imaginar que uma família inteira tinha morado ali a anos atrás.
Assim que passei pelo pequeno portão de ferro do jardim, parei, de novo com o receio, com a intuição me mandando apenas dar as costas e fugir, mas eu fui em frente. Não foi nenhum pouco difícil saltar as barreiras do isolamento, de forma que em poucos segundos eu estava frente a porta, reparando que ela já estava aberta. Alguém já estava lá dentro. Romeo.
A madeira velha e inchada pela infiltração rangeu quando abri a porta. Parecia um agouro amaldiçoado. O som me fez estremecer, mas nada em comparação a escuridão do interior da casa. Como eu me lembrava, ela parecia viva por dentro. Eu senti o cheiro familiar do mofo, da poeira que sempre tentei varrer para debaixo do tapete, mas nunca consegui.
A casa ainda respirava aquele mesmo som horripilante. Era o vento de fora se afunilando por dentro das madeiras soltas que causavam os assobios. Quando criança eu imaginava que aquele som era provocado por fantasmas, mal sabia eu que de fato aquela casa estava repleta deles.
Parei no hall de entrada reconhecendo os móveis antigos coberto por lençóis encardidos da poeira. Quis dar meia volta. Fugir daquela loucura que me levava para o passado.
Dei um passo curto para frente querendo ver qualquer sinal a mais de perigo. Tudo o que eu ouvia era o silêncio e a respiração da casa. Tudo que eu via era a escuridão na parte de cima da escada. Resolvi fazer um teste, idealizando que aquilo poderia mesmo se tratar apenas de um pesadelo.
-Romeo? -Minha voz ecoou no vazio, não tive resposta, mas estranhamente me senti sendo observada.
Dei um passo para trás pelo pânico e meu corpo bateu contra algo duro. Uma mão grossa atravessou minha visão e tapou minha boca.
-Sou eu. -Era a voz dele. Atrás de mim. -Você veio sozinha?
Gelei por dentro. Fui incapaz de respirar naquele momento, apenas assenti com a cabeça e coloquei a mão em seu pulso num gesto de auto defesa embora eu soubesse que Romeo jamais me machucaria com intenção.
Ouvi sua respiração pesada, em seguida ele fechou a porta atrás de mim sem largar minha boca.
-Por favor, não grite. -Pediu de mansinho e enfim me soltou.
A coisa toda pareceu levar muito tempo, mas sei que na realidade não levou. Virei para trás e o encarei absolutamente chocada com o que estava vendo. Ainda que na penumbra causada pela casa fechada, eu ainda podia ver tudo muito bem e naquele momento desejei muito ser cega para não ver.
-Meu Deus... -Murmurei, levando a mão a boca. -O que você... O que fizeram com você?
Romeo estava irreconhecível e tive que piscar os olhos para ter uma visão completa dele. Havia perdido peso. Muito peso. Sempre foi magro, mas de um jeito atlético, mas agora nem isso. Usava as mesmas roupas de quando o vi pela primeira vez ou melhor, deveriam ser as mesmas roupas pois elas estavam em retalhos. Os sapatos cobertos por lama, a calça esgaçada como se ele tivesse sido mantido preso, a camisa que deveria ter um tom verde claro estava acinzentada respingadas com manchas quase pretas. Era sangue. O mesmo sangue seco que via em seus dedos, impregnados dentro das unhas. Os punhos ainda carregavam as pulseiras que ele usava para esconder as cicatrizes. Os braços magros e pálidos. Mas foi seu rosto que me paralisou completamente.
Em comparação ao corpo quase esquelético, seu rosto estava inchado. Os lábios arrebentados, o nariz torto como se tivesse sido quebrado. Os olhos de um verde tão intenso cobertos por olheiras e manchas que mesclavam tons de roxo e azul. Os cabelos tinham claramente crescido, tanto que ele prendia com um coque. Estava ensebado como se Romeo não os lavasse a meses.
Depois de uma análise completa tive certeza de que meu amigo tinha sido espancado. Ele não respondeu a minha pergunta, apenas me observou atentamente e se jogou em meus braços. Eu não me movi. Estupefata demais para faze-lo.
-Tive tanto medo de você não vir! -Ele chorou, agarrando-se a mim com toda força que seu corpo frágil conseguia. -Eu.. sabia que você não iria me abandonar. Sabia.
Sem me dar conta, estava abraçada com ele também. Fomos ao chão daquele jeito. Chorando igualmente, ele apenas aliviado, eu confusa, com saudade, mas acima de tudo preocupada pensando nos horrores que aquele garoto tao ingênuo deveria ter passado ao longos dos dias que passou desaparecido.
Abracei seu corpo reparando com os dedos cada diferença que sentia naquele abraço. Antes Romeo me sufocava, mas agora era como se ele tivesse perdido metade do tamanho e se transformado em um garoto. Eu conseguia sentir a dor dele. Ela era a minha assim como a minha sempre foi a dele.
Apesar da nossa amizade sempre ter sido problemática, ela era a única coisa que nos manteve vivos por todos aqueles anos. Eu só não sabia que as coisas chegariam aquele ponto.
-Fiquei tão preocupada com você. -Falei entre o choro, ainda agarrada a ele no chão sentindo seu corpo se sacudir inteiro com os soluços. -Você sumiu, achei que não te veria nunca mais.
Ele não respondeu. Estava tremendo demais, chorando demais para falar alguma coisa. Suas mãos se prendiam com tanta força na barra da minha camisa que eu não conseguia me mover então apenas deixei. Deixei que ele chorasse todas as lagrimas que parecia ter represado, toda a angústia que estava sentindo.
Deitei sua cabeça em meu colo e acariciei seus cabelos como fazíamos como éramos crianças. Nunca em uma situação tão ruim como aquela parecia ser. Meu amigo simplesmente estava destruído, muito mais do que já vi algum dia antes na vida.
Chorei baixinho. Eu precisava me manter no controle da situação nem que fosse apenas por fingimento.
Só depois de um longo tempo ele parou de chorar e de tremer. Como se tivesse ficado vazio de repente, mas não me soltou. Não ergueu a cabeça. Não mexeu absolutamente nenhum músculo.
-Romeo... -Tentei trazê-lo de volta para a realidade. -Não me arrependo de ter vindo até aqui, mas você precisa falar comigo. Precisa me explicar o que está acontecendo. Porque... Porque você incendiou as fazendas?
A pergunta não surtiu qualquer efeito nele. Ainda continuou imóvel em meu colo, mas respondeu.
-Veio aqui para me acusar então?
Sua voz era rouca. Sem força alguma nem mesmo para discutir aquilo.
-Sei o que você fez, apenas quero entender o porquê...
De repente ele levantou a cabeça e se afastou de mim sentou-se na minha frente abraçando as pernas magras se tornado ainda menor, mais frágil, mas seu rosto, ainda que demonstrasse todo o seu choro, era sério, quase rígido ao me encarar.
-Eu não incendiei nada. -Disse simplesmente.
Esfrguei a tempora com os dedos. Pedindo forças ao universo para ser paciente, embora eu estivesse cheia de angústia e desespero por dentro.
-Você não precisa mentir para mim. -Cheguei mais perto dele, tentei tocar sua mão, mas ele se afastou. -Vou te ajudar a se defender.
-Eu não fiz nada, porra!
Ele se transformou em um animal irado. Incontrolável. Levantou, começou a puxar os proprios cabelos.
-Lisa viu você comprando a gasolina, viu você em Miracle. Tudo bem admitir! -Tentei para-lo, mas não fui adiante, realmente com medo daquela reação dele.
Romeo parou e me encarou como se não reconhecesse a mim. Como se não acreditasse no que estava ouvido. Ele respirou fundo, esfregando o rosto com a mão suja.
-Eu comprei a gasolina. Armei um plano perfeito, ia incendiar aquela merda toda. -Ele veio, parou bem diante de mim e olhou nos meus olhos. -Mas eu não fiz.
Prendi a respiração, reconhecendo a sinceridade em suas palavras, mas não podia ser. O incêndio havia acontecido. Ele era o culpado.
-Como você pode ter armado um plano e não ter incendiado a fazenda se o incêndio aconteceu de qualquer maneira? -Indaguei completamente confusa.
Ele achou graça amargo. Sem humor nenhum e abriu os braços como se a resposta fosse óbvia.
-Porque aconteceu. Eu não incendiei nada, mas aconteceu. Esse foi o problema, Millie. Cheguei com os galões de gasolina e a porra toda já estava completamente em chamas, porque alguém já tinha feito o trabalho por mim!
Parei em seco. Tudo o que parecia ter de concreto em minha mente simplesmente virou uma bagunça sem precedentes. Uma desordem. Uma loucura. Mas meu cérebro agiu rápido, me deu um nome. Um rosto. Tudo.
-Simon. -Verbalizei, tendo imaginado sua feição horrenda na mente.
Romeo assentiu trancando o maxilar com força.
-Mas...não. Nao faz sentido. -Sacudi a cabeça. -Porque ele faria isso?
-Ele descobriu meu plano, fez antes de mim talvez por achar que eu ia recuar. Ele queria que eu fosse incriminado, preso, morto! -Grunhiu, cheio de ódio. -O filho da puta colocou fogo na própria fazenda apenas para me foder.
Fui até ele e toquei em seu braço, de repente me dando conta do que aquilo poderia significar
-Você... Você está todo machucado assim, foi ele ?
Romeo deu um passo para trás fugindo do meu toque e mais uma vez tentou arrancar os próprios cabelos, entrando em colapso com minha pergunta.
-Eu não consegui fugir. Ele me pegou bem a tempo. Eu lutei, Millie. Lutei para tentar mata-lo, mas ele estava com outros caras. Eles levaram meu carro, me encheram de porradas. Eu estava preso em um depósito todo esse tempo. Não sei porque ele não me matou.
Deus... Só podia ser um pesadelo. Um terrível pesadelo. Simon era pior do que um monstro.
-Porque ele te prendeu? Apenas para te incriminar? Porque não te soltou antes? -Indaguei, mesmo sabendo que talvez não seria uma boa ideia fazê-lo reviver aquilo, eu precisava de repostas.
Romeo deu de ombros num gesto de indiferença.
-Também não sei. Talvez fizesse parte de um jogo doente da mente daquele filho da puta. Consegui fugir ontem do depósito, consegui contato de um primo por um telefone público e ele me pegou na estrada. Foi do telefone dele que eu te liguei. Por isso mandei você vir pra cá. Simon já deve estar sabendo que escapei, é questão de tempo até que venha atrás de mim.
Ele se aproximou. Tirou do bolso da calça duas folhas de papel do dobrados e entregou para mim.
-Meu primo conseguiu me emprestar um dinheiro. São duas passagens para Indiana.
Fitei os papéis, reparando que eram de fato passagens. Duas passagens.
-Duas... Duas passagens? -Murmurei, incrédula e confusa.
-Sim. -Romeo juntou nossas mãos. -É uma para mim e outra para você.
Me afastei dele por impulso. Me dando conta de qual ser sua ideia. Ele queria fugir e me levar junto. Ele percebeu meu susto, voltou a dobrar as duas passagens e colocou no bolso.
-Você trouxe algum dinheiro? Temos que sair daqui em quatro horas, não vamos precisar de muita coisa, apenas algo para comermos e para pagar um hotel quando chegarmos...
-Para! -Gritei, sacudindo a cabeça de tanta loucura. -Eu não vou embora daqui e nem você.
Ele ficou lívido ao me ouvir, como se realmente não tivesse cogitado que eu diria algo como aquilo, porém se conteve. Fez uma expressão de completo desdém.
-Você não acha que esse jogo já foi longe demais? Não acha que já chega de nos enganarmos? Acabou pra gente. A nossa vida tem que recomeçar em outro lugar.
O encarei percebendo que ele de fato acreditava naquilo. Estava firme. Altamente decidido e eu desconfiava de que não havaria quase nada que eu pudesse fazer para que ele mudasse de idéia. O conhecia bem. Na verdade foi um alívio saber que ele não era culpado por nada e era exatamente por isso que tínhamos que ficar.
-Não precisamos fugir, Romeo. -Cheguei perto, colocando a mão em seu braço. -Vamos contar a verdade para o Finn, já está na hora de ele saber e ele vai nos ajudar. Você é inocente e...
Me interrompi, ao vê-lo rindo sem humor, parecendo ferver por dentro.
-Finn vai me ajudar? -Riu com escárnio. -Até quando você vai mesmo acreditar nisso? Achei que você lembrasse que eles são todos iguais, farinha do mesmo saco!
-Não! -Neguei com veemência. -Finn não é. Ele é bom e honesto, vai entender e vai te ajudar.
-É? E o que mais? Ele vai me deixar livre, pagar seguranças para me protegerem e vai denunciar o tio dele para a polícia no meu lugar? Quem sabe ele até não me pague uma mesada para que eu me sustente não é? -Fez uma pausa, me encarando como se quisesse abrir minha cabeça. -Acorda, Millie! A primeira coisa que ele vai fazer é me jogar atrás de uma cela de cadeia, isso se não entregar minha cabeça pessoalmente para o fodido do Simon!
-Finn não é assim! -Gritei, a única coisa que conseguia fazer, pois de verdade, eu não tinha argumentos que provassem minhas palavras, simplesmente sabia da índole de Finn, mas Romeo não.
Ele me olhou com claro desânimo. Decepcionado comigo, com minha insistência. Era uma expressão que eu já conhecia muito bem.
-Você o ama mesmo não é? -Foi uma acusação, não uma pergunta. -Esta cega, agindo como uma tola montando um castelinho perfeito, mas não se dá conta de que essa merda é de areia e logo vai desabar bem na sua cabeça!
Me afastei, magoada, sentindo cada palavra dele me ferir fisicamente. Romeo era bom em fazer aquilo mesmo sem perceber, mas naquele momento me dei conta de que ele percebeu. Fez exatamente com aquele propósito.
-Você não sabe como Finn é. Não o conhece. Ele me ama de verdade, me protege e me faz feliz!
Agora foi ele quem pareceu ferido com minhas palavras e só ali notei que havia pegado em um ponto delicado que não deveria. Não deveria deixar tão claro toda a felicidade que eu tinha tido com o homem que me amava enquanto ele estava preso sendo torturado pelo homem que havia destruído nossas vidas.
-Bom pra você. -Romeo engoliu em seco, sendo absorvido pelas trevas outra vez. -Bom que estava feliz esse tempo todo. Não duvido que ele te ame. Vejo a forma como você está aí, toda bonita, íntegra, montada na grana. Ao menos um de nós conseguiu vencer na vida.
-Você também vai. -Encurtei a distância entre nós, enquanto ele se afastava de mim cada vez mais. -Vai se curar, vai seguir em frente e será feliz...
Romeo achou graça, haviam lagrimas em seus olhos, mas sem qualquer tipo de emoção. Ele parecia... Sem vida.
-Ninguem é capaz de amar alguém como eu. Sou fodido da cabeça, não tenho jeito.
Queria enxugar as lagrimas do seu rosto, mas não me aproximei então limpei apenas as minhas. Aquelas palavras não eram dele. Eram de Simon. Era o que o desgraçado repetia todos os dias para nós dois e Romeo parecia crente de que eram verdade.
-Não deixe que o Simon vença. Ele queria isso, queria colocar na nossa cabeça que éramos indignos de amor e de carinho, mas não é verdade. Eu descobri a tempo e você também vai descobrir, não é tarde demais...
-É sim, Millie. -Ele me cortou, parecendo recusar cada palavra que eu dizia. -Para mim é tarde demais. Sou um monstro. Nem meus pais me amaram, ninguém nunca...
-Eu amo você. Sempre amei. -Consegui toca-lo e o abracei, sem ter seu abraço de volta. Seu coração batia forte como uma bomba prestes a explodir em meus ouvidos. -Você sabe que sempre foi meu melhor amigo.
Ele hesitou em silêncio. Ficou assim por um longo tempo antes de me afastar de si como se eu tivesse algum tipo de doença contagiosa.
-Nunca consegui te proteger dele. -Disse, andando para trás esmurrando o próprio peito. -Na verdade nunca consegui te proteger nem de mim mesmo. Você não quer ir embora comigo e essa é só a prova de que tudo o que vivemos foi uma mentira. Você me fez promessas, éramos nós dois para sempre, não se lembra?
Assenti, vendo-o tomar uma distância ainda maior de mim. Era culpa minha. Tudo culpa minha. Eu poderia ter evitado a destruição do meu amigo se no passado tivesse sido forte o bastante para tê-lo afastado de mim quando Simon se infiltrou na minha vida. Se não tivesse permitido que Simon acabasse com ele muito mais do que acabou comigo. Eu de fato havia prometido que seríamos nós dois para sempre. Era meu dever fugir com ele, mas não podia ter adivinhado tudo o que aconteceria no futuro. Não pude prever meu casamento com Finn. O amor que eu sentia por ele.
Era um impasse. O pior da minha vida. Ir embora com Romeo para salva-lo, ou me salvar ficando com o homem que eu amava. Não importava o quanto eu pensasse. Iria perder das duas formas.
--
Finn.
Era um inferno.
Aquela loucura de pessoas desesperadas por salvação enquanto eu tentava ajudar a todos a manterem seus lares era o mais alto retrato do inferno.
Dois malditos dias comparecendo a várias audiências na polícia, abrindo inquéritos, pedindo, implorando mais tempo e tudo parecia caminhar a passos lentos de formigas.
O estrago na fazenda de Louisville não se comparava ao que havia ocorrido em Miracle, porque não havia um só centímetro de área agrícola que não tivesse sido comprometido pelas chamas, pela fumaça tóxica e pela fuligem.
Descobri que Simon não havia adiantado porra nenhuma do trabalho e ele só estava acumulado, o que me fez ter certeza de que ele ligava uma merda para o que estava acontecendo em suas próprias terras.
Manfred, o capataz que era responsável pela área, foi simpático ao me receber em sua casa. Foi onde dormi durante os dois dias que passei virando Louisville de cabeça para baixo atrás de arrumar a bagunça que estava feita. Se bem que dormir era uma palavra forte demais. De dia estava ocupado demais com os afazeres, a noite não passava de duas horas de um sono exaustivo e instável acordando logo em seguida com a cabeça a mil sem ter descansado o mínimo que devia.
Aquela merda ia acabar comigo e eu acabaria com os dois desgraçados que estavam me fazendo passar por aquilo. Primeiro Simon. O irresponsável e inconsequente do meu tio. Depois Romeo, o maldito culpado pelos incêndios.
A única coisa que me tranquilizava eram as ligações que fazia com Millie nas poucas horas que a merda do sinal conseguia me deixar ao telefone. Ela estava preocupada, sempre me enchendo de perguntas que eu não sabia responder, mas só em ouvir sua voz e saber que ela estava bem me manteve forte para suportar o restante da loucura.
Estava mais uma vez junto com um advogado local tentando prolongar o prazo que tinha de evacuação em uma reunião com o chefe da polícia quando o sinal de telefone voltou ao meu telefone. Era cedo da manhã e recebi uma chuva de notificações, todas elas de chamadas que eu não havia recebido e eram de Millie.
-Com licença, preciso fazer uma ligação. -Avisei aos homens, alarmado demais para dar continuidade ao assunto.
Sai para o jardim, num ponto onde sabia que o sinal funcionava mesmo que precariamente e tentei completar uma chamada com ela. Quase consegui, mas no último instante a porcaria apitou acusando a ausência do sinal
-Porra! -Vociferei contra o aparelho.
Vasculhei cada uma das últimas notificações, até me que deparei com a gravação de um recado. Deixei o volume no máximo e escutei o que ela dizia.
"Finn... Quando você escutar esse recado, por favor volte para casa. Eu... Preciso de você aqui."
Medo me varreu inteiro ao captar o som de sua voz. Trêmulo. Dilacerante. Estava chorando e desesperada. Pensei em tudo ao mesmo tempo, nela machucada, sofrendo por alguma razão enquanto eu estava a milhares de quilômetros de distância.
Mal me dei conta de quando estava correndo para o depósito onde meu carro estava estacionado desde que cheguei a cidade. Mal me dei conta de me sentar atrás do volante e ligar o motor. Não sentia nada. Nem mesmo a culpa por estar de repente abandonando tudo. A reunião importante que deveria me concertar. Porque nada mais importava.
Dirigi feito um louco pela interestadual, ultrapassando todos os outros veículos na estrada pisando tão fundo no acelerador que minha perna não teve um descanso. Eram quatro horas de viagem que eu pretendia fazer o menor tempo possível.
Durante o trajeto enquanto passava pelas cidades vizinhas com boa cobertura de sinal tentei ligar para Millie de novo inúmeras vezes e agora era ela quem não me atendia. Cada vez aumentando meu desespero. Me dando certeza de que a porra que estava acontecendo era muito pior do que eu temia.
-Onde a Millie está? -Gritei ao telefone assim que minha mãe atendeu.
-Finn? O que... Eu não sei, acho que está no quarto. Ela não desceu ainda hoje e...
-Droga, mãe, vá olhar se ela está lá! Agora!
A escutei reclamar do outro lado e me esforcei para não xinga-la abertamente. Ela nem mesmo sabia se Millie estava em casa, caralho!
-Filho, a porta está trancada, bati, mas ela não abriu. Acho mesmo que...
Apenas desliguei a maldita ligação sem ouvi-la terminar de explicar, sabendo quer inútil demais para me ajudar. Fiz mais uma ligação, ainda voando com o carro. Dessa vez liguei para o segurança que havia deixado em casa, ele me atendeu na primeira chamada.
-Sua esposa saiu para ver uma amiga. -Ele explicou imediatamente, como se já soubesse o motivo da minha ligação.
Aquela frase aumentou meu pânico pois não explicava porra nenhuma. Millie não tinha nenhuma droga de amiga. Ela havia mentido, mas porque? Para onde foi?
-Isso faz quanto tempo? -Indaguei apertando o volante até os nós dos dedos ficarem brancos de tensão.
-Uma hora e meia, mais ou menos. Foi de Uber, não quis carona. Eu tentei avisa-lo, mas não consegui ligar.
Claro que não. Eu estava incomunicável enquanto a porra da vida virava de cabeça para baixo.
-Esta perto da minha casa agora? Preciso que pegue algo para mim e me encontre, estou a menos de meia hora de Stoney Fork.
Terminei de passar o comando para ele e acelerei ainda mais após ultrapassar a placa que indicava minha entrada na cidade. Todo tipo de pensamento torturava minha mente, havia uma coisa muito errada. Aquela gravação não foi atoa, Millie tinha saído de casa logo depois de me mandar então sua saída foi causada exclusivamente pelo que a estava apavorando.
Pensei em seu pai. Se tinha passado mal ou algo do tipo. Enquanto corria com o carro liguei para a clínica, recebendo a confirmação de que nada tinha acontecido e que Millie nem mesmo tinha estado lá naquela manhã.
Finalmente parei no posto de combustível perto da prefeitura no local exato onde havia pedido para o segurança me encontrar. Ele estava parado perto do carro e na mão segurava o que eu havia pedido que trouxesse.
-Aconteceu alguma coisa? Sua mãe está preocupada em casa. -Disse ele ao me passar a maleta.
Preocupada. Essa é boa.
-Espero que eu esteja exagerando. -Respondi apenas isso, enquanto abria a maleta em cima do capô do carro e pegava a arma lá dentro. Só hesitei meio segundo antes de pegá-la e colocá-la dentro do meu próprio carro.
-Devo segui-lo? Estamos indo para onde? -Perguntou ele, prontificando-se para ir comigo.
Não havia qualquer outro lugar na cidade em que ela pudesse estar se não em sua casa. E não estava sozinha. Eu tinha certeza.
-Sim. Vamos para a casa do Robert Brown.
Ele assentiu sem mais questionamentos e ligou o carro no mesmo momento em que eu liguei o meu. Rezei para estar errado. Para estar louco e não encontrá-la lá, mas em qualquer outro lugar e bem. Onde ela diria que aquela ligação não passou de uma brincadeira provocada pela saudade. Porra eu queria até que apenas brigasse comigo por ter perdido a cabeça e pegado aquela arma, ter deixado tudo para trás quando não tinha razões para me preocupar.
Mas algo dentro de mim me dizia que não era aquilo que eu ouviria dela naquele dia. Algo me dizia que eu estava caminhando para um precipício sem fim.
Tive absoluta certeza de que era lá que ela estava quando parei o carro em frente a maldita casa caindo aos pedaços. Podia sentir sua presença mesmo sem vê-la, assim como era claro que as barreiras impostas pela polícia ao redor da casa tinham sido forçadas na entrada.
-Prefere que eu entre com você? -Karl perguntou ao descer do carro. Olhando o lugar com a mesma repulsa que eu sentia.
-Entro primeiro, fique por perto e veja se não contra mais ninguém por aqui.
Era impossivel manter a calma, mas algo me fez ficar. Talvez fosse a necessidade de estar atento a tudo, preparado para tudo.
Cruzei a calçada depredada e entrei fazendo o máximo esforço para não fazer barulho, cheguei bem perto da porta e tudo desabou quando escutei a voz dela lá dentro.
-Romeo, por favor, não faz isso, eu imploro!
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