"Centenas de dias me fizeram mais velho
Desde a última vez que vi seu lindo rosto
Milhares de mentiras me fizeram mais frio
E eu não acho que possa olhar para isso da mesma maneira"
Millie.
A vizinha não estava mentindo quando disse que eu poderia bater em sua porta caso precisasse de alguma coisa. Na verdade isso nem mesmo foi necessário pois no dia em que fiz minha mudança oficial para o apartamento ela mesma,alarmada pelo barulho provocado pelos móveis se arrastando, fez questão de se prontificar a ajudar.
Devo admitir que sua insistência em estar presente inicialmente foi algo que me incomodou um pouco. Não pelo fato de que ela não seja legal ou prestativa, mas simplesmente porque não sou acostumada a ter pessoas ao meu redor dessa forma.
O estranho é que eventualmente me acostumei com isso e não só me acostumei, como passei a gostar de sua presença sempre alegre.
Em apenas alguns dias descobri que seu jeito meio maluquinho de ser era simplesmente espontâneo. Algo dela que não era nenhum pouco forçado e foi isso que me fez parar de temer e aceitar sua aproximação.
Conversamos no dia da minha mudança enquanto ela nos ajudava a desempacotar as comidas para a geladeira e a organizar meu quarto já com as coisas que eu havia comprado.
Não fui a única adora-la. Mamãe deu boas risadas de suas brincadeiras e notei que ficou muito mais tranquila sabendo que eu, querendo ou não, teria uma companhia muito presente naquele prédio.
Eu não quis me encher de esperança quanto a intensificar aquela relação pois nunca tive uma amiga de verdade, mas as coisas com Sadie foram tão naturais que não tive outra alternativa a não ser deixar que as coisas caminhassem por aquele caminho.
Foi durante a minha mudança que também tive a oportunidade de saber um pouco mais sobre ela e quase caí para trás ao descobrir que na verdade Louis e ela nunca foram namorados.
-É sério que você pensou isso? -Ela riu quando lhe contei sobre minha desconfiança. -Caramba! Louis e eu nos conhecemos desde crianças, seria quase um incesto se pensássemos em ficar juntos.
-Desculpe. É que vi vocês dois juntos e foi realmente o que pensei. -Expliquei, mortificada por ter tirado conclusões precipitadas.
Sadie riu ainda mais. Não soou ofendida, mas achava aquele pensamento ridículo.
-Não tem problema. Somos realmente muito próximos, mas como irmãos. Impossível rolar alguma coisa.
-Será mesmo? As melhores relações são de pessoas que são melhores amigos. -Mamãe também comentou, mesmo ela nem conhecendo Louis pessoalmente, só só por ter ouvido a história.
Sadie negou com a cabeça. Se esticando para guardar as novas vasilhas dentro do armário da minha cozinha.
-Serio mesmo, isso não vai rolar com a gente. -Ela afirmou, completamente segura. -Mas e você, Millie? Deixou algum coração partido lá no Kentucky?
Quando me perguntou isso, o sorriso desapareceu dos meus lábios e o clima pesou entre nós. Tudo ficava mais fácil quando ela falava apenas dela, mas quando o assunto vinha para mim, eu simplesmente não sabia como agir no começo.
Apenas sacudi a cabeça, apertando a aliança que eu ainda carregava no dedo com a mão.
-Fala sério, uma garota bonita como você não teve nenhum namorado deixado para trás? -Ela insistiu inocente, achando que eu era apenas tímida demais para falar.
-Millie teve um namorado, mas as coisas não deram muito certo. -Foi Kelly que explicou, vendo que eu não iria conseguir faze-lo.
Sadie ergueu as sobrancelhas entendendo e ficou envergonhada por sua insistência. Foi ali que comecei a notar que ela era bem perceptiva e ao contrário do que se possa acreditar, nunca invadia minha vida mais do que eu deixava. Inclusive nem mesmo comentou que me ouviu chorando no dia em que fui conhecer o apartamento.
-Foi mal. -Disse ela realmente arrependida. Depois abriu um sorriso. -Mas aposto que aqui as coisas vão mudar bastante! A universidade está lotada de gatinhos!
Apesar de tudo, eu ri quando ela começou a listar as várias experiências amorosas que teve ao longo dos anos. Ela é completamente livre e independente. Faz o que bem entende e com quem quer sem ter que se prender a ninguém exatamente.
As diferenças entre nós são absurdas, mas no meio de tudo ainda encontro muitas semelhanças.
Como eu, Sadie não tem muitos amigos. Reparei porque ela não fala de ninguém exceto de Louis. Liguei isso ao fato de que ela é muito diferente e as vezes as pessoas não gostam de quem é assim. Alegre demais e um pouco intrometida.
Foi mais uma razão pela qual gostei de sua companhia. Senti que como eu, Sadie precisava disso e nós duas, de um jeito quase esquisito demos certo.
Me adaptar a vida morando sozinha no apartamento foi bem mais fácil por tê-la morando a exatos oito passos de distância da minha porta.
Passamos boas horas jogando conversa fora, na minha casa e na dela. Descobri que apesar de seu jeito todo espalhafatoso, ela é extremamente organizada. Seu apartamento é do mesmo tamanho do meu, mas tem um ar todo artístico com flores e fórmulas desenhadas nas paredes que combinam perfeitamente com a mobília que ela mesmo pingou.
Seus pais são divorciados e apesar da boa convivência que ainda têm, Sadie não suportou viver de casa em casa e decidiu seguir seu próprio caminho quando fez dezoito anos e usou economias guardadas a bastante tempo para alugar seu apartamento.
Desde então ela mora sozinha, trabalha como estagiária em um laboratório de química e estuda, mas ainda tem muito tempo para se divertir.
Uma das coisas que faz para passar o tempo logo que acorda é dar uma corrida pelo parque e um dia desses insistiu tanto para que eu a acompanhasse que agora estou aqui sentada em sua sala de estar esperando ela terminar de se vestir para sairmos.
É a primeira vez que vamos fazer isso e para ser sincera não me sinto muito animada. Faço isso mais por ela e por Winnie.
Minha cadelinha não está se adaptando muito bem a vida aqui no apartamento. Tentei criar um ambiente agradável para ela na varanda, junto com a pequena horta gourmet que estou fazendo, mas Winnie ainda vem apresentando sinais de estresse comuns para um animalzinho que se acostumou a viver livre em Stoney Fork e agora se vê enclausurada num apartamento pequeno.
Sei que ela sente falta do gramado vivo, da terra e do vento porque eu também sinto. Por isso pensei que levá-la pelo menos uma vez no dia para dar uma volta no parque é realmente uma boa ideia.
-Prontinho, podemos ir! -Sadie surge saindo de seu quarto.
Não me contenho, pois ela escolheu um conjunto de moletom cor de rosa quase tão chamativo quanto seus cabelos enquanto eu estou vestida de legging e uma camisa branca, larga com furinhos na barra.
Saímos do apartamento e atravessamos a rua do nosso prédio para o parque em frente. O dia está bem bonito, o céu limpo sem nenhuma nuvem sequer. Antes de corrermos, Sadie me lembra de alongar e só então pegamos um ritmo pelo enorme calçadão.
A vista é realmente inacreditável. Tem o lago que praticamente separa metade da cidade e por cima da borda posso ver a enormidade que é esse lugar. Os prédios, as casas, apartamentos, uma fileira interminável de carros indo e voltando.
Nada nunca parece igual quando saio. Na verdade parece que a cada dia que se passa eu vejo coisas novas que antes me passava inteiramente despercebido.
O ar não é tão puro quanto no campo. Não há silêncio algum, mas estranhamente estou começando a apreciar a movimentação. A sensação de que nunca estou parada, que sempre há algo acontecendo ao meu redor e realmente sempre há.
-Esta cansada? Quer dar uma paradinha? -Sadie pergunta vendo o quão sem fôlego eu me encontro depois de menos de um quilômetro de corrida.
Ela nunca se cansa. Está acostumada. Mesmo que eu queira me adaptar, assinto e então paramos em um banco perto de um quiosque onde ela compra duas garrafinhas de água. Bebo quase a metade da garrafa e dou o restante para Winnie também beber.
-Eu pesei que quem morava no interior fosse mais acostumado com esforço físico. Vocês não são? Tipo, não tem que acordar às cinco da matina para capinar no mato ou algo assim? -Ela faz piada, ainda rindo porque estou realmente morrendo e toda suada.
Há um pequeno fundo de preconceito em sua fala. Não do tipo que é usado como algo para ofender, na verdade eu acho graça pois ela realmente não faz ideia do que está fazendo.
-Sabia que nem todo mundo do interior faz isso? -Brinco esticando o pescoço. -Na verdade a gente acorda a três.
Ela gargalha, se dobrando inteiramente, depois se senta ao meu lado.
-Vou sentir falta disso. Adoro correr, mas mês que vem as aulas recomeçam e aí vou ficar atolada. -Ela dá um leve empurrãozinho em meu ombro. -E você também tá? O primeiro ano da faculdade tende a ser um dos mais puxados.
Concordo, já pensando sobre isso. Sempre fui boa aluna e me dediquei mesmo tendo muitas outras obrigações, mas não posso negar que pensar em voltar para a sala de aula, conviver com vários colegas chega a me dá um frio na barriga.
-Louis não aparece desde ontem. Vocês dois brigaram de novo? -Mudo de assunto, principalmente porque não quero que ela volte a falar sobre a faculdade porque vai atacar minha ansiedade.
Sadie bufa e balança a cabeça negativamente.
-Não brigamos exatamente, mas Louis as vezes é muito chato então o mandei pastar para me dar um tempo. Ele se mete em tudo, agora está encrencando comigo por causa do Max.
Ah, o tal do Max. Ela está realmente encantada com esse cara e agora que Louis não está aparecendo, sou eu quem tenho que ficar ouvindo todo o lance que está acontecendo entre ela e esse garoto.
Acho que Louis gosta de Sadie. Ela claramente nunca parou para pensar sobre isso, mas eu reparei desde que os vi juntos pela primeira vez. Tudo o que ela acha que é uma preocupação de irmão infundada eu só posso crer que seja ciúmes.
-E porque você não encontra logo com Max e o pede em namoro se está apaixonada por ele? -Indago, percebendo que ela realmente vem perdendo um tempão para fazer isso.
-Pedir ele em namoro? -Ela soa completamente incrédula. -Claro que não, Millie! A gente só está ficando, além disso eu não quero namorar tão cedo. Deus me livre.
Acho graça quando ela faz o sinal da cruz em repúdio, depois balanço a cabeça. Só eu mesmo para pensar que as coisas aqui funcionam desse jeito. Duvido que existam tantos namorados quanto sei que existem todo tipo de casal não informal.
-Em Stoney Fork as coisas são totalmente diferentes, bem mais conservadoras. Uma garota não fica com um cara atoa ou ela se torna alvo de fofoca. Geralmente os namorados sempre se casam. -Explico, de repente me lembrando disso.
Sadie arregala os olhos e chega mais perto claramente interessada.
-Serio? Isso acontece ainda? Meu Deus, que diabo de cidade é essa que você morava? Onde fica? No século passado?
Sorrio, mas por dentro me sinto envergonhada e novamente um tanto deslocada. É incrível como o mundo aqui fora é diferente e você só passa a ter noção disso quando está longe daquela cidade.
-Achou isso esquisito? Lá ainda tem barões, pessoas mais influentes do que os próprios políticos.
Quando me dou conta de que estou falando demais e pensando demais também,me levanto deixando Winnie no chão.
-Vamos voltar?
-Ei espera aí! Você tem que me contar sobre esse lance de barão? Que coisa é essa? -Sadie insiste, segurando meu braço me impedindo de voltar a correr.
Começo a sentir os sinais da ansiedade me tomarem. A culpa por ter falado demais e por ter quase exposto toda a verdade. Sobre o que acontece naquela cidsdez sobre o que aconteceu comigo. Sobre eu ainda ser casada com um dessa barões.
Fico nervosa e meus dedos tremem tanto que acabo soltando Winnie. Sadie consegue agarra-la a tempo e toca em meu braço.
-Ei, tudo bem, não precisa falar nada. -Ela me abraça, mas me solta bem rápido notando minha falta de fôlego. -Vem, vamos voltar para casa.
Segurando em sua mão, ela praticamente tem que me atravessar pela avenida pois estou nervosa sem enxergar um palmo na minha frente. Subimos as escadas até nosso andar e só então ela me entrega a corrente de Winnie e abre a porta do meu apartamento.
-Desculpe, Sadie. Não sei o que deu em mim. -Digo quando me sento no sofá e ela me trás mais um copo de água da minha geladeira.
-Tudo bem, me desculpe por insistir.
Ela alisa meu braço, enquanto me olha atentamente bebendo água.
Me sinto envergonhada e mais esquisita do que o normal sabendo que sua cabeça agora está cheia de perguntas que ela não irá me fazer e que eu não tenho como responder ainda. Nesses momentos preciso ficar sozinha até conseguir me recuperar pelo menos parcialmente.
-Acho que vou tomar banho. -Informo na esperança de dispensa-la.
Sadie entende, assente e levanta do meu sofá.
-Fica bem, ok? Qualquer coisa me chama lá na frente.
Agradeço e lhe acompanho até a porta. Quando fecho me encosto e deslizo até o chão me perguntando até quando esses sentimentos e sensações vão estar alojadas dentro de mim.
Na maior parte do tempo consigo lidar com isso, mas sempre chega o momento em que as lembranças me invadem com tudo e me desarmam e não importa quem esteja a minha volta, sempre sinto o mesmo vazio perdurando dentro de mim como se eu nunca fosse de fato superar.
Vou para meu quarto e tomo um banho. Sadie não volta ao meu apartamento durante a tarde então eu faço qualquer coisa para comer e como sozinha com Winnie deitada em seu canto me observando.
Sei que Sadie fica preocupada e na espera de algum sinal meu para poder se aproximar, mas nao tenho coragem de encara-la hoje.
Estou arrumando pela terceira vez meu armário com as roupas quando meu celular toca. Um pequeno rastrinho de esperança se forma em mim quando escuto a chamada, mas me sinto boba e culpada por estar frustrada quando vejo que é apenas mamãe me ligando.
-Oi, querida, está ocupada? -Ela diz quando atendo.
-Oi, mãe. Não. Não estou.
-Certo. -Ela hesita e logo me deixa preocupada pois sempre que me liga está muito animada. -Você quer jantar aqui em casa? Mike saiu para ver o irmão dele que está internado, então eu vou ficar sozinha até mais tarde.
Sento-me na cama.
-O irmão dele está internado? Aconteceu alguma coisa?
-Não. -Ri sem vontade. -Ele dez uma vasectomia apenas, está tudo bem. Só queria passar um tempinho com você.
Reconheço seu tom de voz contido e sei que aconteceu sim alguma coisa que ela não quer me contar por telefone. É comum que me chame para jantar, mas vim evitando aceitar esses convites porque queria me adaptar melhor sozinha. Só que percebo que não é simplesmente um jantar que está em jogo nesse momento.
-Tudo bem. Você pode vir me buscar daqui uma hora, então?
-Sim, posso. Aviso quando estiver saindo daqui.
Concordo e então desligo. Talvez não seja nada além da falta que ela sente de mim, mas não deixo de ficar pensando no teor de sua ligação o tempo inteiro.
Me arrumo colocando um vestido leve e florido porque aqui raramente faz frio, mas ponho botas e preparo um casaco de reserva e prendo os cabelos em um rabo de cavalo.
Não queria encontrar com Sadie agora, especialmente para pedir um favor, mas resolvo bater em sua porta.
Ela atende depressa. Sorri para mim feliz e como se nada tivesse acontecido. É uma das coisas boas em sua personalidade. Quando sabe que estou triste ou na minha, Sadie simplesmente não força nenhum tipo de situação voltando ao assunto que me deixou assim.
-Oi, Millie! Está bonita, vai sair? -Ela deixa a porta aberta em convite para que eu entre. -Vem, estou fazendo comida. Chamei Louis para jantar aqui também.
Sinto cheiro de tempero quando entro. Sadie além de tudo também é uma cozinheira de não cheia.
-Mamãe me convidou para jantar com ela. -Respondo, me sentando em seu sofá de frente onde ela está na ilha da cozinha.
Sadie sorri ainda mais enquanto mexe nas panelas.
-Ah, que bom então, mas se voltar cedo aparece aqui. Louis vai gostar de ver você.
Sorrio e assinto enquanto levanto e vou até onde ela está.
-Posso te pedir um favor? -Ela assente, mesmo sem saber o que eu quero. -Não posso levar Winnie comigo porque os cachorros da minha mãe não gostam muito dela, queria saber se você pode dar uma olhada nela no meu apartamento. Só de vez em quando para ver se ela está bem.
Sadie limpa as mãos num pano de prato sobre a pia e concorda.
-Claro que sim. Pode ficar tranquila, eu a trago para ficar comigo aqui.
-Tem certeza? Realmente não precisa, Winnie é bem bagunceira e não quero que ela quebre nada no seu apartamento. -A lembro.
-Ela não vai quebrar nada. -Sadie ri. -Vou trazê-la para que ela não fique sozinha, pode ser?
Não consigo conceber como pode existir alguem como Sadie e como eu contra todas as possibilidades a encontrei justo quando estava precisando. Sei que sou egoísta, que em questão de confiança nossa amizade não é nada recíproca porque mal conto para ela como me sinto, mas eu a adoro de verdade, muito mais do que pensei que me permitiria sentir.
-Obrigada. -Vou até ela e lhe ofereço o primeiro abraço que vem da minha parte. Ela quase não pode acreditar, mas logo me abraça com força. -Obrigada por tudo.
-Não precisa agradecer ok? Somos amigas e vizinhas, é o mínimo que posso fazer por você me aguentar.
Acho graça, mas não é verdade. Sadie pode sim ser um pouco alegre demais para mim, mas é o contraste que eu tanto preciso e lhe admiro por isso.
-Vou indo. -Pego a chave do meu apartamento e lhe entrego. -Assim que eu chegar pego Winnie de volta e diga olá ao Louis por mim.
-Ele vai ficar para dormir então quando você voltar ele ainda vai estar por aqui.
Faço uma expressão irônica erguendo minhas sobrancelhas para ela. Sadie revira os olhos e me empurra.
-Nada a ver, garota. Vamos ver um filme e comer bastante, apenas isso.
-Sei. -Dou de ombros com desdém.
Saio de seu apartamento achando engraçado como ela não percebe que Louis é completamente apaixonado. Na verdade acho que ela sabe, só sente medo de estragar as coisas caso tente realmente ficar com ele. De toda forma espero que fiquem juntos. Os dois são muito fofos.
Recebo a confirmação que minha mãe já está me esperando lá embaixo então eu desço, encontrando seu carro estacionado em frente ao prédio. A primeira coisa que ela faz é me dar um abraço apertado, como se não me visse a muito tempo e isso só provoca em mim a curiosidade de entender o verdadeiro motivo desse jantar.
Não pergunto, esperando chegarmos em sua casa primeiro.
-E Sadie, como vai? -Pergunta ela, quando sai com o carro.
-Esta bem. Ficou com Winnie para eu poder sair.
Ela dá um sorriso nervoso e passa a olhar para frente. Isso é estranho pois raramente ficamos sem assunto. Reparo nela, gosto da forma como se veste, sempre simples, mas também muito elegante. Hoje está usando um conjunto bege de saia e camiseta junto com tênis brancos e confortáveis. Passou maquiagem, não muito, mas o bastante para que eu perceba que tentou disfarçar algo em seu rosto.
Ela entra com o carro por cima do jardim e sou recebida com festa por Ozzy e Sharon que pulam a minha volta, tentando de todo jeito lamber meu rosto.
-Eles estão demais! -Mamãe briga, enquanto tenta dispersar os cães para me deixar passar.
-São lindos. Senti falta deles.
Depois que ela os coloca na parte externa protegida pelas paredes de vidro, finalmente conseguimos entrar em casa. Como das últimas vezes em que estive aqui, tudo está na mais perfeita ordem, limpo e com o típico cheiro de desinfetante.
No começo achei que eles mantinham uma diarista para fazer a limpeza da casa, porém descobri que contratam uma mulher para limpar uma vez por mês e em todos os outros dias são eles mesmos quem se viram para deixar tudo em ordem.
-Venha, sente-se. Deixei um frango no forno e já vou nos servir. -Ela me chama para a sala de jantar.
Sento-me a mesa grande com lugar para quatro pessoas e a espero enquanto ela vai e volta da cozinha trazendo as travessas de comida.
-Você quer ajuda? -Indago, reparando que ela está toda agitada.
-Não precisa, já estou terminando.
E começa a soar cada vez mais estranho. Quando ela finalmente termina e se senta, me serve uma taça de vinho e eu recuso.
-Eu não bebo, desculpe.
Ela sorri e enche a própria taca.
-Não tem problema, sabia? Ao menos experiente. Esse vinho é bem suave.
Nunca provei, mas por alguma razão resolvi fazer isso. O primeiro impacto é azedo e horrível, queima um pouco minha garganta e eu faço uma careta arrancando risadas dela.
-Não fica mais doce no final? -Pergunta, esperançosa.
De fato depois do primeiro momento, fica gostoso. Tomo um pouco mais e ela gargalha.
Começamos a comer. Sua comida é realmente boa, já jantei aqui algumas vezes com ela e Mike, só que nessa vez em específico há algo em minha mente que não me permite apreciar totalmente a comida.
-Aconteceu alguma coisa? -Ela para de mastigar e me encara. -Sei que não me chamou aqui simplesmente para jantar com você.
Essa história de Mike ter saído para ver o irmão também não me convenceu e ela se entrega ao suspirar..
-Queria conversar com você. Pedi para Mike nos deixar sozinhas hoje a noite. -Explica, cheia de remorso por ter mentido. -Hoje mais cedo recebi uma ligação da Mary
Fico surpresa e um tanto em choque com a novidade. De muitas coisas que esperava, isso com certeza não estava incluída.
-E ela ligou para que?
Kelly deixa o garfo sobre o prato e para de me encarar por um momento.
-Ela me ligou para dizer que Maddie voltou de Nova York e as duas conversaram sobre o que aconteceu.
Agora fico confusa. Mary e eu conversamos sobre isso quando fui embora e ela havia me dito que ligaria para mim e não para minha mãe.
-E o que mais? Mary disse que me avisaria quando isso acontecesse... -Digo, completamente confusa e perturbada.
-Ela falou que não teve coragem. -Kelly segura o queixo, parecendo em conflito antes de continuar. -Parece que Maddie quis ver o resultado do exame e ela... Não reagiu muito bem.
Não preciso de mais nada para entender e por incrível que pareça, não me sinto nenhum pouco chocada, pelo contrário, acho que lá no fundo eu já tinha completa certeza.
-Então ela é realmente minha irmã. -Apenas constato o fato.
Mamãe assente, surpresa pelo quanto eu pareço calma. Ela gira o dedo em torno da taça de vinho.
-Pelo que entendi não foi fácil. Maddie brigou feio com Mary e agora ela está na casa dos pais de Eric porque não perdoa a mãe. -Olha para mim com uma expressão preocupada no rosto. -Sinto muito.
Realmente estou parada sem esboçar qualquer reação. Porque não sei como me sinto. Imagens são projetadas em minha mente a todo instante, principalmente da familiaridade que tenho com a histeria de Maddie e posso imaginar a cena em detalhes. Ela é minha irmã. O mistério finalmente foi resolvido, mas eu não sinto nada de novo. Nada muda para mim.
-Não sinta. -Digo, balançando a cabeça. -Eu não esperava que Maddie de repente fosse querer qualquer contato comigo.
Minha mãe estranha minha resposta. Vejo a confusão em seu rosto quando ela franze o cenho
-Mas você queria tanto descobrir a verdade... Achei que tivesse esperança que as coisas mudassem.
Assinto, porque em algum momento realmente pensei que mudariam. Só que agora percebo que não faz mais qualquer diferença o fato de que meu sangue e de Maddie estão interligados de alguma maneira. Isso não apaga o que passamos, o que ela me fez passar, e seu repúdio por mim apenas demonstra que no mínimo, Maddie sequer se arrepende do que me fez.
É uma sensação nova a que eu sinto agora. Mágoa. Claro que sou capaz de me por em seu lugar, consigo imaginar a dor que é saber que sua vida inteira foi uma mentira, mas se isso não serve para que Maddie evolua, eu não tenho obrigação alguma de ficar triste com isso.
-Bem, de qualquer forma é ela quem está saindo perdendo nessa história. -Mamãe diz, balançando a cabeça. -Ela não merece ser irmã de alguém como você.
Sorrio sem vontade, apenas por saber que ela diz isso na melhor das intenções. Apenas uma coisa nisso tudo me preocupa.
-Mary falou alguma coisa sobre Finn?
O rosto de Kelly muda, fica sério ao ouvir minha pergunta e nega com a cabeça.
-Não. Ela não disse. Eu também não achei que fosse uma boa ideia perguntar. Mary estava realmente abalada na ligação.
Compreendo e no fundo sinto um pouco de pena de Mary também. Talvez se ela tivesse aberto o jogo antes, muita coisa estaria sendo evitada agora, mas também entendo que ela não podia ligar contra Eric, que fez tudo para proteger os filhos daquele monstro.
Se não fosse uma tragédia, seria irônico que o aquele homem tivesse passado a vida criando e amando a filha do seu pior inimigo. Seu corpo agora com certeza deve estar se revirando dentro do túmulo.
-Você e ele não tem se falado mais? -Kelly pergunta, quando não me vê falando mais nada.
Por alguma razão hesito em responder. Talvez porque admitir para alguém seja ainda mais doloroso do que admitir para mim mesma. Aquela ligação de Jack só me fez perceber que Finn ainda não consegue falar comigo, ou o pior, talvez não queira.
-Não. -Confesso, sem olhar em seus olhos. -Jack me ligou para saber como eu estava e vez ou outra trocamos mensagens, mas Finn nunca ligou.
Mesmo isso sendo algo que eu deveria esperar, não deixa de doer. Sei que também não tenho ligado, mas só Deus sabe o quanto quis fazer isso, enquanto eu não faço ideia se Finn ao menos tentou.
-Acho muito estranho. -Ela diz, em tom de confissão. Também não me encara mais. -Até hoje não entendo como ele te deixou vir embora assim sem ao menos contestar. Quando o conheci vi o quanto ele era possessivo com você, queria te proteger até de mim e agora nem mesmo liga.
Não quero enveredar por esse caminho. Me faço as mesmas perguntas, mesmo já sabendo a resposta.
-Ele não soube lidar com a verdade. Acho que ainda não sabe. -É a única explicação que consigo dar. -Finn acha que eu estando longe vou sofrer menos.
Ela me analisa por um tempo antes de responder.
-Mas ele estava errado, não é? -Diz, baixinho. -Sei que essa mudança foi boa. Você está bem, mas isso não quer dizer que esteja feliz. São coisas diferentes.
Me sinto desarmada e não consigo me opor a isso, portanto apenas suspiro e assinto com a cabeça.
-Estou tentando, mas é difícil. -Assumo, me controlando para não chorar. -Fico bem, consigo me distrair, mas tenho a sensação constante de que está faltando algo, entende?
Ela concorda. Não só para dizer o que quero ouvir, mas sei que ela entende de verdade.
-Eu sei como é isso. Olhe só, -Da uma olhada ao redor indicando a casa. -Construi tudo isso com meu esforço, me reergui, aprendi a amar Mike e deixei que ele me amasse, mas em todos esses anos nunca fui tão feliz como sou agora que você está aqui e que me perdoou. Para mim também faltava sempre alguma coisa e era você.
Engulo em seco, mas deixo extravasar as lágrimas que reprimo. Não consigo nem pensar em ter que esperar dezoito anos da minha vida passarem para finalmente encontrar a felicidade genuína. E se eu for como ela? Se terei que esperar todo esse tempo também para me resolver com Finn? E se no meio de tudo, isso ainda não der certo?
Mamãe parece perceber que penso assim e arrasta sua cadeira até perto da minha. Me abraça enquanto eu não consigo parar de chorar. Estou evitando tanto fazer isso, mas sempre me encontro nesse estado, não importa o quanto tente me distrair e buscar motivos para sorrir.
-Sei que não sou a maior fã de vocês dois como um casal. Enxergo muitos problemas na relação que vocês tiveram e que ainda têm, mas tenho certeza de que se for de verdade vocês irão resistir ao tempo, filha e um dia voltarão a estarem juntos. -Ela diz por cima dos meus cabelos.
A abraço com força querendo manter a chama da esperança acesa dentro de mim. Há momentos em que de fato é uma chama e em outros como agora, não passa de uma pequena centelha brilhando no meio da escuridão.
Não digo isso a ela porque nem eu mesma quero que seja assim. Apenas choro até conseguir me recuperar parcialmente. Até me sentir seca de novo.
Ela me dá um sorriso e se afasta voltando a se sentar no lugar e comemos o restante da refeição em silêncio. Não é algo desconfortável, apenas necessário pois sinto que nem mesmo estou aqui.
Mamãe me convida para ver tevê enquanto comemos a sorvete de sobremesa, mas eu recuso tanto porque não tenho clima, como porque me sinto cansada e com dor de cabeça.
Assim peço para que me leve para minha casa e ela faz sem questionar minha decisão.
Quando chego, quase vou direto para meu apartamento, mas então me lembro que as chaves e Winnie estão na casa de Sadie. Tento por minha melhor cara de quem não passou a noite inteira chorando e vou até a porta de seu apartamento.
Antes mesmo de bater escuto o som de uma música lá dentro, bem como de risadas. Tento parecer bem quando Sadie abre a porta e me puxa para dentro.
-Ah, você chegou na hora certa! Estamos decorando minha árvore de natal!
Olho para o que está acontecendo na minha frente e sinto-me esquisita por ter simplesmente esquecido de que estamos a duas semanas das festas de final de ano. Sadie está usando um gorro de papai Noel com as mãos ocupadas desembolando um monte de luzes, enquanto Louis está sentado no chão tentando fixar a barra da árvore num suporte para mante-la de pé.
Os dois encaram meu rosto surpreso esperando uma reação minha, mas não consigo expressar nada. Somente quando sinto pequenas patinhas arranhando minhas pernas é que olho para baixo e pego Winnie no colo.
-Desculpe. -Digo, embaraçada por meu comportamento. -Eu nem lembrava que estamos tão perto do natal.
Louis levanta do chão depois de conseguir prender a árvore e sorri para mim.
-Tudo bem, Millie? Sadie fez o jantar, está com fome? -Pergunta ele.
-Ah, não, desculpe. Eu já comi, mas obrigada. -Olho para Sadie. -Winnie se comportou direitinho?
Sadie joga o bolo de luzes para o sofá e gargalha.
-Quem você acha que embolou todas essas luzes?
Encaro Winnie com carinha de anjo no meu colo e balanço a cabeça, sabendo muito bem do que ela é capaz de fazer.
-Desculpe, ela anda meio estressada sem ter o que fazer lá em casa.
-Meu Deus, sabe quantas vezes você já pediu desculpas desde que entrou por essa porta? -Louis levanta uma sobrancelha. -Um monte!
Ele e Sadie acham graça.
-Desculpe. -Balanço a cabeça rapidamente e os dois riem ainda mais. -Melhor eu ir embora.
-Espere. -Sadie me para. -O que aconteceu? Você não parece nada bem.
Eles param de rir, mas ainda me sinto desconfortável. Talvez por não estar no clima para brincadeira, mas sei que na verdade é por que acabei de lembrar que estamos perto do natal e consequentemente me vem a mente outra coisa. O aniversário de Finn.
-Não. Não aconteceu nada. Só estou cansada. Amanhã passo aqui para corrermos, quer dizer, você ainda vai querer correr comigo? -Me atrapalho inteira quando pergunto.
Sadie suspira, nitidamente sabendo que estou desconversando. Ela tem sido paciente com meu jeito, mas sei que em algum momento vai se cansar disso, principalmente porque sempre que estou assim me fecho ainda mais.
-Claro que eu quero correr com vocês amanhã. -Ela diz apontando para Winnie também e se aproxima de mim a fim de conversar sem que Louis se envolva. -Tudo bem, Millie. Vá para casa descansar, amanhã a gente conversa melhor, pode ser?
Assinto, mas duvido muito que amanhã mude de ideia em relação a me abrir com ela. Ainda assim a abraço e vou embora.
Solto Winnie pelo apartamento quando fecho a porta e fico um bom tempo me perguntando se devo fazer alguma coisa sobre o aniversário de Finn e se ele pelo menos lá fundo espera que eu faça.
--
Finn.
As festas de final de ano sempre representaram apenas uma coisa em minha vida: Diversão sem precedentes
Também é a época do meu aniversário e isso significava que as festas não se restringiam apenas aos últimos dias do ano, mas ao mês de dezembro inteiro.
Lembro-me de não fazer plano algum, de nem sequer convidar alguém para fazer nada, mas eu sempre estava envolvido em alguma coisa, as pessoas sempre apareciam na minha cobertura, faziam festas e me davam presentes. Eram dias regados a zoação, bebidas e garotas gostosas dispostas a se divertir sem se importar com o que iria acontecer no dia seguinte.
Agora isso não passa de um borrão da minha mente. Os registros daquela época, não muito tempo atrás, é como um filme no qual agora eu assisto totalmente de fora, sem me ver de verdade naquele garoto que só queria surfar, beber e transar a vontade.
Se passou apenas um ano e hoje sou um homem totalmente diferente. Voltar a Stoney Fork, além de tudo, me fez perder a essência de ser um jovem prestes a fazer vinte e três anos, pois por dentro me sinto como homem velho ranzinza e rancoroso.
Minha vida agora é regada pelos planos e pelas regras que criei para mim mesmo. Acordo já sabendo o que devo fazer, embora na maioria das vezes quase não suporto lidar com tudo e acabo desistindo no meio do processo.
Essa cidade, minha família e eu mesmo suguei todas as minhas energias e é por isso que não restou qualquer rastro de desejo em comemorar as datas festivas, muito menos meu aniversário.
Contudo, me convenci a ao menos fingir que me importo e é por isso que agora estou aqui sentando na mesa de um pub ao lado de Jack e Elijah.
O clima não pode ser pior do que este.
Estamos assistindo a uma apresentação de uma banda de pop rock local e já parei de contar quantas cervejas já tive que tomar para conseguir suportar estar aqui.
A banda não é nada mal. Cantam grandes sucessos dos anos dois mil e tem uma galera mais jovem curtindo o som mais a frente, agindo como se não morassem em uma porra de cidade tão retrógrada quanto esta.
Jack curte esse tipo de coisa. Vejo isso pela forma como ele canta cada uma das músicas e bate sua garrafa de cerveja com a minha em um brinde.
As vezes me esqueço do quanto ele também ainda é jovem. Claro que é apenas um ano mais novo do que eu, mas ele não está destruído, então consegue realmente se divertir em algo desse tipo e lá no fundo o invejo por isso.
Ele tem sido o alicerce no qual venho me sustentando a bastante tempo e hoje não sei se conseguiria dar um passo a frente sem ter sua ajuda. Tento não extrapolar de sua amizade nem de sua boa vontade, mas as vezes é quase impossível não recorrer a ele. Seja para me ajudar em algum trabalho, seja apenas para suportar meu vômito verbal quando já não aguento mais, seja para fazer com que momentos como este agora não sejam tão ruins quanto poderiam ser.
Elijah é mais tranquilo nesse aspecto. Vem se tornando um amigo leal além de ser meu advogado de confiança, mas não somos tão próximos quanto mim e Jack. Não sabe nem da metade das coisas que meu amigo e eu compartilhamos quando estamos realmente sozinhos.
Quando isso acontece, o foco das nossas conversas é única e exclusivamente Simon e a emboscada que todos os dias tentamos armar para pegá-lo.
Tenho ficado frustrado quanto a isso, pois até agora, quase um mês depois de todas as minhas descobertas, não consegui mais do que depoimentos que não me levaram a lugar algum e pistas falsas..
As vezes me sinto como um cão raivoso correndo atrás do proprio rabo e essa sensação só vai acrescendo a medida que minhas tentativas de arrancar a cabeça do meu tio são totalmente inúteis.
Tento tão deixar que isso tome minha cabeça, porém em cada lugar que eu vou e vejo qualquer criança, eu me lembro. Não sei medir em palavras o tamanho dessa raiva, mas ela é o que vem me alimentando juntamente com o sentimento que não consigo me livrar de jeito nenhum. A saudade.
Millie é parte integral de tudo o que ronda em meus pensamentos. Não consigo fazer nada sem me lembrar de seu sorriso, de seu abraço, da forma como ela olhava para mim como se eu fosse a porra da melhor pessoa do mundo.
Sinto falta especialmente disso. De me sentir menos pior só por saber que ela enxergava algo bom em mim.
-Finn, já é quase meia noite, você vai querer fazer um pedido? -Jack berra por cima da música chamando minha atenção ao colocar, -não sei como-, um pedaço de torta em cima da mesa.
Faço careta para seu gesto brega de me lembrar que estou prestes a fazer aniversário e sacudo a cabeça.
Ele levanta trombando da cadeira. Já encheu a cara e mal consegue se manter de pé sem tropeçar.
-Deixa de ser insuportável! É só fazer a porra de um pedido e assoprar as velinhas! Roubei essa torta da loja minha mãe só para isso! -Insiste, empurrando a embalagem com a torta na minha direção.
Seguro em seu braço o impedindo de cair e falo em seu ouvido para que ele escute por cima da música alta do ambiente.
-Não sei se você reparou, mas não tem nenhuma vela na porra da torta.
O idiota caí para trás na cadeira, por alguma razão morrendo de rir.
-Espera, dou um jeito nisso. -Elijah se prontifica.
Estou prestes a dizer que não, mas o idiota número dois também mais para lá do que para cá, retira do bolso um punhado de palitos de fósforos e espeta alguns deles sobre a torta que agora é apenas uma bagunça de creme por cima do pequeno prato.
-É sério que vão me fazer passar por isso? -Digo, reparando que agora a maioria das pessoas já estão se aglomerando ao meu redor enquanto cantam parabéns.
Dai-me paciência, senhor.
As velas improvisadas pegam fogo muito rapidamente e eu sopro antes que eles terminem com a maldita cantoria.
-Porra! Você fez o pedido? -Jack ralha comigo.
Dou de ombros e apenas afasto o pedaço de torta chamuscada para longe.
-Esses caras estão te enchendo muito o saco?
Viro-me reconhecendo a voz feminina que soa atrás da mesa onde estou sentado. Porra é uma maldição, pois sequer lembro do nome dela.
A menina que tenho certeza que devo conhecer de algum lugar levanta com uma garrafa de blue moon nas mãos e senta na cadeira vazia ao meu lado.
-Você quer um pouco? -Oferece, arrastando os lábios muito vermelhos por cima da boca da garrafa numa tentativa muito falha de sedução.
Fico puto por não me lembrar de onde a conheço, então não faço nada além de mostrar a ela que ja estou com uma garrafa de cerveja na mão.
-E aí Leslie? Como vai o papai? -É Jack que pergunta.
Sua intromissão é providencial, pois acabo de lembrar de onde conheço a tal garota. É Leslie, filha do prefeito. A moça com quem teoricamente eu deveria estar casado agora.
-Otimo. -Ela responde a ele secamente, depois volta a pestanejar seus longos cílios artificiais para mim. -Então é seu aniversário?
-Parece que sim. -De novo dou de ombros e evito o contato visual, pois sei bem qual é a dela e de verdade, não estou com saco para isso agora.
-Bem e para você está aqui enchendo a cara com os amigos certamente o casamento não anda mais tão bem como deveria não é? Soube que a Millie foi embora, vocês se separaram?
-Não. -Digo, bem alto. Acho que na verdade eu grito pois Jack ainda que esteja muito bêbado arregala os olhos para mim. -Ela está fazendo faculdade em Ohio, apenas isso.
Não sei porque eu minto, é claro que ela sabe o que está acontecendo, por isso faz cara de desdém e assente.
Ela é linda, não vou dizer o contrário porque estaria mentindo, mas sua presença aqui apenas me faz lembrar de minha irmã e não quero nem pensar em Maddie agora, além de Millie que ela fez o favor de trazer a tona.
-Humm. Eu adoro essa música. -Diz ela levantando da cadeira. -Você não quer dançar comigo?
Acho graça enquanto balanço a cabeça. Tem pessoas que são tão cara de pau que é difícil conceber que isso de fato está acontecendo.
-Vai na frente, daqui a pouco te encontro lá.
Não sei se ela percebe como estou sendo irônico, mas sorri e me manda um beijinho no ar enquanto sai rebolando o quadril generoso pelo salão.
-Agora ela vai achar que você vai mesmo. -Elijah acha graça e não me passa despercebido a forma como está vidrado na dança sexy que a garota está fazendo enquanto olha para mim.
-Deixa ela pensar. -Resmungo, me sentindo um pouco mais perverso do que o normal.
-Sabe o que seria engraçado? -Jack põe os pés sobre a mesa enquanto se estica na cadeira. -Se ela olhasse para cá e visse você beijando outra pessoa.
Elijah ri, já balançando a cabeça negativamente.
-Só temos nós dois aqui, você não está sugerindo que...
-Ela ia tomar um susto e ia aprender a lição! -Jack completa, e os dois começam a rir.
-Vai, cara. Vai dizer que você não tá afim? -Jack brinca, mexendo no cabelo de um jeito feminino encenado.
Eu rio, porque de fato penso no quanto Leslie ficaria com cara de quem não está entendendo nada se visse uma cena como essa. Eu beijaria Jack de zoação, mas realmente não estou no clima para esse tipo de coisa agora.
-Sinto muito, mas não vai rolar. Sou homem demais para isso. -Digo brincando, mas por alguma razão me sinto mal quando faço isso.
Jack acha graça de um jeito constrangido.
-Você não seria menos homem se beijasse um de nós. -Diz ele dando de ombros, levando a garrafa de cerveja para a boca.
Não sei porque isso agora virou um assunto importante, mas vou na onda.
-Então porque vocês dois não se beijam? Seria a mesma coisa. -Provoco.
Elijah faz sinal da cruz com os dedos. Jack olha para mim.
-Porque você não me beija? A Millie não se incomodaria se fosse eu.
Agora sim, sinto que a "brincadeira" começa a passar dos limites e eu reajo.
-Você está falando sério, porra?
Jack fica sério como se de repente estivesse sóbrio e me encara. O clima fica pesado, sinto que não vou gostar do que vou ouvir, mas então do nada o maluco cai na maior risada.
-Só estou brincando, cara! Relaxa. Eu não quero te beijar.
Esfrego a mão pelo rosto de saco cheio de tudo isso e levanto da cadeira. Jack percebe que não gostei de onde essa brincadeira chegou, levanta também e tenta me impedir de sair segurando minha jaqueta de forma atrapalhada.
-Me deixa em paz, porra! -Me solto lhe dando um ligeiro empurrão, mas por Jack estar tão bêbado, cai de volta na cadeira.
Elijah levanta para intervir.
-Cara, o que deu em você? Ele estava só brincando! -Defende, ao ajudar Jack a se levantar.
Ando para trás, minha cabeça explodindo com essa música insuportável, esse lugar lotado e pela minha falta de controle.
-Desculpa, eu... Vou embora.
Ignoro o que Elijah fala sobre eu não estar em condições para dirigir e saio do pub, sentindo como se fosse explodir caso ficasse mais meio segundo naquela agitação.
Respiro o ar da noite e ele queima dentro de mim quando saio para a calçada. Sei que passei dos limites, mas não estou com raiva de Jack pela brincadeira em si, mas por ele falar nela de novo. Por me lembrar que estou aqui fodendo a vida de todo mundo enquanto a única pessoa com quem eu queria estar agora está longe de mim.
Estou meio zonzo pela bebida, mas consigo achar meu carro. Chuto os pequenos cascalhos no meio do caminho até ele e paro um tempo antes de entrar para respirar fundo e recuperar um pouco da sobriedade antes de entrar e ir embora.
É nesse momento que meu celular vibra dentro do bolso e pode ser apenas efeito da minha mente conturbada que insiste em me pregar peças, ou se é o pequeno fio de esperança que tenho dentro de mim, mas de qualquer forma apenas sei quem é que está ligando a essa hora para mim.
Atendo tão rápido que não olho para a tela porque sei que se pensar demais não vou ter coragem de faze-lo.
Ninguém diz nada do outro lado quando atendo. Mas eu sei, reconheço e sinto em minhas veias o efeito de sua respiração quando escuto.
-Finn? -Ela fala e eu desmorono em cima do carro. Um misto de saudade, raiva e dor vai me dilacerando por dentro. -Você... Está bem?
Não consigo responder. Tem um nó enorme em minha garganta que me impede de falar, mas eu luto contra ele porque sei que se não disser nada ela vai parar de falar e eu não posso permitir porque ela precisa falar comigo. Eu preciso ouvir sua voz mesmo que seja por mais um segundo.
-Estou. -É tudo o que consigo dizer e sei que soo seco para ela.
Escuto-a suspirar. Um pequeno gesto de quem está arrependida de ter ligado. Bato com a testa no vidro porque não quero que se arrependa.
-Sei que é tarde. Eu não deveria ligar agora, mas só queria saber como as coisas estão e... Desejar feliz aniversário.
De novo não sei o que responder. Na verdade quero dizer tantas coisas, mas agora que ela está me ouvindo, tudo se apaga da minha cabeça, só consigo me concentrar em seu tom de voz, na imagem que minha mente projeta dela agora.
Posso vê-la sentada quietinha em algum canto do quarto com o telefone no ouvido. Posso senti-la tensa, com medo e hesitante. Posso até mesmo ouvir seu coração acelerado, posso ver seu rosto, o narizinho perfeito se contraindo conforme eu não respondo e a fica preocupada.
-Obrigado. -De novo é apenas o que eu consigo dizer.
Ela fica muda. Paro de ouvir sua respiração e a música alta atrás de mim volta a tomar minha mente.
-Onde você está? -Ela pergunta, provavelmente ouvindo a música também. -Você está ocupado?
-Não! -Berro que nem um maluco. -Eu... Sai, mas já estou voltando para casa.
Dou a volta no carro, mas não entro, com medo de que ela interprete isso como um sinal para que desligue.
-E você, está bem? -Pergunto para que continue a falar enquanto estou caçando as chaves no bolso.
-Estou com saudade. -Dispara, sem nem hesitar.
Paro com a procura. Paro inteiramente na verdade porque não me mexo mais. Escuto um soluço baixinho, sei que ela agora está chorando ou se controlando para não fazer isso.
-Eu pensei que... -Ela se interrompe quando um barulho atrás de mim se faz audivel para nós dois.
-Finn! Você está aí! -Viro-me, com desejo de matar a garota que vejo vindo correndo na minha direção. -Você disse que ia voltar para ficar comigo. O que foi já está indo embora?
Tiro o celular dos ouvidos, protejo a entrada de som com a mão, mas sei que é tarde demais. Sei que Millie ouviu.
Leslie para de andar ao ver a expressão mortal em meu rosto. Olha para o celular em minha mão e dá de ombros.
-Foi mal, vou voltar lá para dentro.
Só não grito com a idiota porque ela sai correndo de volta e porque pego o celular depressa para tentar consertar a grande merda que acabou de acontecer.
-Millie, isso que você ouviu...
-Tudo bem, Finn. Eu já estava indo dormir. Boa noite.
-Não! Não desligue! -Imploro, desesperado. -Millie? Responde, meu anjo!
É tarde demais. A conexão da ligação simplesmente cai. Tento retornar. Estou tremendo, a um fio de perder a cabeça, mas a ligação é automaticamente rejeitada indicando que ela desligou o telefone.
Arremesso o celular no chão e a porcaria inútil se espatifa em mil pedaços tamanha minha fúria. Se eu ainda não tinha estragado tudo, agora acabei de estragar.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.