"Quando você tenta o seu melhor, mas não tem sucesso.
Quando você consegue o que quer, mas não o que precisa.
Quando você se sente cansado, mas não consegue dormir.
Preso em marcha ré."
Finn.
O inverno está piorando cada vez mais em Stoney Fork.
Olho para o céu e nesse exato instante tenho certeza de que não vai demorar até que mais uma tempestade despenque em cima de nossas cabeças. No entanto, não estou preocupado com isso. Não quando estou vivendo um dos momentos mais estranhos da minha vida, encarando de novo a lápide que indica onde meu pai está enterrado e o buraco recém aberto onde o caixão do meu avô está sendo engolido pela terra nesse exato segundo.
Ele faleceu ontem durante a madrugada. Segundo a equipe médica, o infarto fulminante foi rápido e indolor, o levando dessa vida de forma quase natural tendo em vista sua idade já avançada. Ainda assim foi uma surpresa. Uma que ainda estou tentando digerir enquanto observo as pessoas ao meu redor se despedirem de mais um barão.
Não sinto tristeza. Apenas resignação. Já era velho demais e nunca tivemos contato o bastante para criamos laços afetivos muito fortes. Na verdade, sempre achei que assim como meu pai, meu avô me desprezava por minha forma de sempre ter pensado diferente deles. Pela minha vontade de ver e fazer com que a vida aqui tivesse outro sentido além de encher os bolsos da nossa família de dinheiro.
É o ciclo da vida. A única coisa da qual não podemos escapar é da morte. Alguns vão mais cedo e de maneira inexplicável, como Romeo e meu pai, outros tem tempo o bastante para viverem até seus últimos dias chegarem ao fim.
Me sinto perverso quando encaro o espaço entre as lápides. Quando penso e desejo mais do que qualquer coisa que mais um buraco seja aberto naquele lugar para enterrar de vez o Wolfhard que precisa estar morto. Meu tio Simon.
Minhas veias se enchem pelo desejo que tenho de ve-lo sucumbir ao inferno. De presenciar o momento em que seu corpo, já muito castigado por minhas mãos, seja engolido pela terra. Farei questão de pisar sobre seus ossos. De cuspir sobre sua lápide e de pedir que descrevam nela tudo o que ele realmente foi em vida:
Um animal. Um estuprador e um pedófilo desprezível.
Uma mão recosta em meu ombro e acaba me dispersando dos pensamentos sanguinários que tenho em minha mente. Olho para o lado e vejo minha irmã. Ela está abatida, mas não lembro de tê-la visto chorar em qualquer momento desde que chegamos ao cemitério.
Não digo nada a ela e ela também não me diz nada. Temos convivido assim nos últimos meses. Em silêncio, com acasionais encaradas, mas ambos não ultrapassam qualquer limite que nem eu mesmo sei como se formou entre nós. Ou talvez eu saiba, só ando meio ocupado demais para pensar sobre isso a bastante tempo.
-Finn, Maddie. Sua avó está no carro. Ela ja quer ir embora. Vocês vão nos acompanhar?
Maddie e eu nos viramos ao mesmo tempo quando ouvimos a pergunta de Jack. Ele está sob um guarda-chuva grande se protegendo da chuva que eu nem sequer percebi que já havia começado.
Encaro Maddie novamente e novamente não dizemos nada um para o outro, mas ela pega minha mão e vamos em direção a saída do cemitério para voltarmos para casa.
Minha família, ou o que restou dela, se divide em carros. Vou para o meu junto a Jack e Elijah porque não estou inclinado a prolongar isso indo para a casa dos meus avós e imagino que Maddie vá com eles, porém me surpreendo quando ela me segue e entra dentro do meu carro.
Desde que descobriu a verdade sobre nossa mãe e sobre não ser filha do meu pai, Maddie tem vivido com nossos avós. Isso até hoje, pois agora mesmo estou dirigindo até nossa casa e ela não faz qualquer sinal de que não deseja que eu faça isso.
-Decidiu voltar para casa? -Enfim pergunto, concentrado no caminho sob a chuva que se torna cada vez mais violenta.
Ela se mexe no banco do carro e percebo pela visão periférica que dá de ombros.
-Eu tinha que voltar um dia.
Pode parecer que ela não está nem aí, mas sei que fazer isso está demandando dela um esforço muito grande. Maddie é extremamente orgulhosa e até hoje se recusou a falar com nossa mãe, então apenas sei que sua volta agora não está sendo atoa.
Mary Wolfhard sucumbiu a depressão desde que me Maddie foi embora. Na verdade ela nunca foi feliz, mas parece que a rejeição de Maddie juntamente com tudo o que ela teve que passar na vida, finalmente cobraram o seu preço e a mulher agora não passa de um fantasma perambulando por aquela casa.
Sinto pena da minha mãe. Tentei melhorar as coisas desde que Maddie foi embora, mas não sou a pessoa mais apropriada agora para conseguir fazer qualquer coisa melhorar para ninguém, nem para mim mesmo. A deixei em seu canto e ela me deixou no meu. Nós dois estamos no limbo, sofrendo calados e sozinhos por nossas perdas recentes então não temos clima algum para consolar um ao outro.
E é assim que temos vivido. Praticamente apenas existindo.
Quando paro o carro, dispenso o guarda-chuva que Elijah me oferece e disparo para casa enquanto eles se ajeitam para não se molharem.
Quero fugir do embate que sei que vai acontecer entre Maddie e Mary, porque também sei que em algum momento terei de me envolver e não quero fazer isso agora porque esse problema é inteiramente delas, não meu e sinceramente, eu não me importo com o que vai acontecer daqui em diante.
Vou para o escritório. Procuro uma roupa limpa e seca, diferente do terno que estou usando agora, e entro no meu banheiro.
Odeio o cheiro de flores mortas de enterro. Odeio a sensação de ter acabado de enterrar alguém insignificante enquanto estou fazendo de tudo para enterrar quem realmente precisa estar morto.
Caçar Simon tem sido uma tarefa exaustiva e frustrante em todos os sentidos. Tem demandando tempo, esforço, me desdobrado ao meio e me enfurecido cada dia mais.
-Onde você está desgraçado? -Pergunto por entredentes com a testa sobre o azulejo do banheiros enquanto deixo a água cair pesada em minhas costas.
É o que mais venho me perguntando nesses últimos meses. Tentando ver onde errei. O que estou deixando passar para não conseguir pegá-lo.
Simon não tem tanto dinheiro assim. A única herança que recebeu do meu pai foi a fazenda queimada e um apartamento em Stoney Fork que já mandei revirar umas cinquenta vezes em busca de qualquer sinal, mas não encontro nada importante. Uma hora sei que o dinheiro vai acabar e ele vai ficar sem saída, mas quando? O que ele está fazendo agora? Onde está? Será que sabe que o próprio pai acabou de morrer?
Confesso que a morte do meu avô também serviu para que eu ficasse em alerta. Sei que ele e Simon tinham uma boa relação e estou esperando qualquer sinal de sua aparição para por minhas mãos sobre ele.
Só que essa é uma caçada que vem me cansando também. Nunca paro de sentir ódio, mas estou desgastado das tentativas em vão de encontra-lo. Se eu ao menos tivesse uma arma contra ele. Alguém com quem o desgraçado se importasse tanto ao ponto de dar as caras.
Mas Simon não se importa com ninguém além de si mesmo. E se não irá aparecer pela morte do pai, acho que não aparecerá por mais nada nesse mundo.
É questão de tempo.
Tento fixar a cabeça nisso e me acalmar.
Saio do banho e visto a roupa que peguei. Me olho no espelho e desprezo a pessoa que me olha pelo reflexo.
Jack diz que tenho andando desleixado. Deixei o cabelo crescer tanto que agora só consigo doma-lo quando o amarro e devo ter perdido peso, apesar de estar diariamente correndo ao redor da casa e me exercitando quando consigo. Não porque quero manter a minha aparência, mas porque descobri que correr acaba compensando as noites frequentes de insônia e me deixa acordado quando preciso estar.
Evito dormir a noite inteira pois na maioria das vezes sou presenteado com a mais variada gama de pesadelos. Nenhum deles fazem sentido, mas ela sempre está lá. Assim como o fogo que insiste em queimar tudo e acabar com minha noite de sono.
Lido com a saudade da melhor forma que consigo. Evitando pensar e quando penso, prefiro imaginar que enquanto estou aqui, ela está lá, provavelmente feliz e cheia de vida.
É a esperança que carrego. A única coisa que me motiva a não desistir de tudo. Millie está bem e precisa viver num mundo onde seu agressor não exista. Minha função é apenas essa. Terminar o que minha família começou. Por um ponto final em uma história que só destruiu pessoas inocentes. Meu pai já morreu. Agora Simon precisa seguir o mesmo caminho.
Assim que saio do banheiro, me deparo com a figura diminuta de minha irmã sentada no sofá do escritório. Ela me olha e tenta dar um sorriso. Parece ter envelhecido uns dez anos apenas em poucos meses e não me lembro da última vez que tenha visto ela usando qualquer cor de roupa que não fosse preto.
-Então aqui é o seu novo quarto. -Ela diz, apontando para as almofadas e cobertores que estão ao seu lado no sofá. -Não está mais dormindo em seu quarto?
Nego com a cabeça, estranhando esse momento pois como eu disse, faz tempo que não conversamos sobre nada.
-Gosto de dormir aqui. -Respondo, enquanto penduro a toalha que usei para secar o cabelo atrás da porta. -Ja foi falar com a mãe?
Maddie para de me encarar e nega com a cabeça. Se recosta no sofá e deixa o corpo todo estendido com as pernas por cima da minha mesa.
-Ela vai chorar e me pedir desculpas. Já sei disso. -Diz, dando de ombros novamente fingindo que não se importa. Ela me encara dos pés a cabeça. -Você está um lixo.
Paro e olho para ela com a cara fechada. Depois acho graça, devolvendo a sua gentileza.
-Você já se olhou no espelho? Não está muito diferente de mim.
Ela revira os olhos e atira uma almofada contra mim, mas eu escapo a tempo porque de repente não quero mais brincar.
Vou até minha mesa e me sento, fazendo o que faço de melhor. Abrir o computador e fingir que estou em qualquer lugar que não aqui.
Maddie fica. E sinto seu olhar sobre mim o tempo inteiro até que ela fala:
-Porque você deixou ela ir embora ?
Ergo o olhar para ela por cima da tela do computador, meio surpreso com a pergunta, mas não respondo.
Maddie bufa. Levanta do sofá e senta na cadeira na minha frente.
-Para com isso, Finn. Eu te conheço, sei que está destruído. Porque não liga para ela e...
-Maddie. -A interrompo. Irritado por não estar entendendo onde ela quer chegar. -Desde quando você se importa com o que eu faço da minha vida? Desde quando você se importa com a Millie?
Ela para com a boca aberta, prestes a dizer alguma coisa, mas se cala.
Não a entendo e não quero mais ter que ficar quebrando minha cabeça para tentar entende-la.
-Por favor, saia daqui. -Falo, voltando a olhar para a tela do computador.
Ela não sai. Fica me encarando por um tempo, o que me faz encara-la de volta. O rosto bonito e jovial da minha irmã fica vermelho como pimenta e ela parece não suportar mais o que vem segurando.
E de repente eu entendo. Reconheço os sinais. É a culpa, a consumindo por dentro.
-Estou arrependida! -Ela diz, alto, segurando o rosto com as mãos. -Estou muito arrependida.
Apesar de toda a surpresa de ver que ela finalmente está demonstrando alguma coisa, não quero presenciar nada disso. Principalmente porque agora estou me lembrando de todas as atrocidades que ela fez com Millie.
-É um pouco tarde para estar arrependida. -Digo, baixo e frio. -Você vai ter que conviver com isso agora.
Maddie limpa o rosto das lágrimas e me encara.
-Traga ela de volta. Vamos consertar tudo.
Acho graça amargamente e balanço a cabeça, incapaz de acreditar no que estou ouvindo. Se qualquer pessoa me dissesse isso, com certeza eu a chamaria de louca.
-Pra você é fácil assim não é? Depois de tudo, Maddie! Não foi uma ou duas vezes, você transformou a vida dela num inferno. Sua própria irmã! -Me exauto e ela chora ainda mais. -Agora você quer uma segunda chance, mas me diga. Está realmente arrependida ou só quer tirar esse peso das suas cotas?
-Eu não sabia que ela era minha irmã!
-Ah, como se isso fosse justificativa! -Vocifero. -Não se faz o que você fez com ninguém! Muito menos com alguém que nunca fez nada contra você!
Alguma parte de mim, sabe que estou sendo duro demais, mas a outra não se convence de que cheguei onde eu queria. Maddie é assim. Não adianta passar a mão por sua cabeça.
Ela chora ainda mais. Está tremendo agora. Não sinto vontade alguma de acalentar seu choro, nem de me aproximar dela. Acho que perdi aquela necessidade absurda que sempre tive de protege-la. Cheguei em um ponto que lavei minhas mãos.
-Você não pode se por no meu lugar, pelo menos por um momento? -Ela diz magoada, entre soluços. -Claro que não. Você passou a vida toda longe, vivendo como bem queria naquela cidade enquanto fui eu quem fiquei aqui sozinha esse tempo todo! Você está conhecendo esse inferno agora, eu estive vivendo nele a vida inteira!
Ela levanta. Começa a andar de um lado a outro enquanto despeja todo o vômito verbal que vem segurando e eu assisto, impotente e calado.
-Como você acha que eu me sentia sem você aqui? Você sempre foi minha única companhia, sempre foi meu irmãozinho, meu protetor. E você simplesmente me abandonou! Papai e mamãe sempre me deixaram sozinha depois que você foi embora, eu não tinha com quem brincar, era cuidada pela centenas de empregados, mas não tinha a atenção que eu queria! Da minha família! Eu sentia raiva o tempo todo! Achava que todo mundo era feliz menos eu! Fiz tudo aquilo com a Millie porque eu sentia necessidade de acabar com alguém! -Confessa tudo, sem o menor pudor, me encara sem a menor vergonha das atrocidades que está dizendo. -E fazer aquelas coisas com ela era fácil. Eu odiava que ela era sempre tão boazinha, tão perfeita! Nunca me entregou, nunca me enfrentou. Isso só me fez pegar cada vez mais pesado! Eu queria que ela reagisse, que mostrasse que poderia ser tão podre quanto...
-Ja chega! -A interrompo, não aguentando mais ouvi-la. Levanto, vou até ela e seguro em seus ombros para encara-la melhor. -Olhe o que você fez... Do que adiantou? Nunca conseguiu provar que Millie era o que você queria que ela fosse. Porque sim é boa. Um ser humano perfeito. Muito diferente de você. Diferente de mim. Diferente de qualquer pessoa nesse mundo.
A solto devagar e ela anda para trás sacudindo a cabeça em meio as lágrimas que insistem em cair.
-Então porque você a deixou ir embora? -Pergunta, realmente confusa com isso. -Você a ama, ela te ama também. Porque você não lutou por ela?
Sinto o peso corriqueiro balançar minha estrutura, mas não busco nenhuma resposta além da verdade em que acredito.
-Porque não tenho nada para oferecer para ela. -O olhar de Maddie endurece para mim. -Nem eu, nem você, nem ninguém nessa cidade. Acha que ela poderia ser feliz vivendo aqui? Não, Maddie. Não poderia. Cada um de nós acabou com ela de um jeito diferente.
-Você fala como se você tivesse feito algo terrível também. -Diz, diminuindo o tom de voz.
Acho graça amargamente e dou de ombros.
-Posso não ter feito nada diretamente, mas deixei que coisas acontecessem porque nunca quis abrir mão dela. Porque não quis enxergar o que estava diante dos meus olhos o tempo inteiro.
Viro-me de costas, esperando que ela não veja a dor que me invade e quase me derruba nesse instante. Sempre consigo controlar, mas agora está sendo mais difícil do que nunca.
-Você se sente culpado. -Maddie claramente chega a essa conclusão. -Você... Se acha culpado pelo que Simon fez.
Fecho os olhos e suspiro. É tão mais complicado do que isso. Apenas eu entendo como me sinto.
-Culpado não. Responsável talvez. Quero acertar as coisas e é por isso que não podia prende-la aqui e fingir que nada aconteceu. Preciso que Simon pague. Não posso viver sabendo que esse monstro está vivo e solto por aí.
Maddie toca em meu ombro e eu fico tenso, ainda me recusando a encara-la.
-Finn. -Chama e eu nego com a cabeça. -Olha para mim.
Suspiro , então faço o que me pede. Olho para ela. Fico surpreso quando recebo um abraço que não estou esperando.
-Ele tem que pagar. Você está certo. -Diz ela enquanto deita a cabeça em meu peito e me abraça com força.
Não sei como reagir, até porque raramente recebo qualquer gesto de compreensão ou apoio a não ser de Jack e isso vindo de Maddie é quase impossível de acreditar.
Só agora percebo que ela pode estar realmente arrependida. Não é fingimento ou apenas culpa, vejo que Maddie quer justiça.
-Posso ajudar em alguma coisa? -Ela ergue o rosto e me encara.
Eu nego e me afasto um pouco mais, entrando na defensiva.
-Não quero que se envolva nisso. Deixe comigo, ok? -Ela assente, mas sinto que não está totalmente convencida, então mudo de assunto. -Porque não tenta se resolver com a mãe? Ela está sofrendo desde que você foi embora.
Maddie dá um muxoxo e revira os olhos, de novo querendo ser indiferente a isso.
-Vou precisar de mais um tempo para conseguir conversar com ela. Eu entendo que ela teve que mentir porque papai... Quer dizer, Eric, não aceitaria que eu fosse filha de outro homem, mas quando ele morreu ela poderia ter me dito a verdade. Só contou porque Kelly apareceu e trouxe essa história a tona.
-Ela achava que você não a perdoaria. -Digo, na tentativa de apaziguar as coisas. -E pelo visto estava certa.
-Eu já disse, preciso de mais tempo! -Maddie exclama, sem paciência.
Estou prestes a dizer mais alguma coisa, quando alguém bate na porta.
-Tenho que trabalhar agora, Maddie. Vá descansar um pouco. -A dispenso, sabendo que é Jack lá fora.
-Você também precisa descansar. -Ela retruca, erguendo uma sobrancelha, mas depois dá de ombros. -Ok. Vou subir.
A acompanho até a porta e a deixo sair, enquanto Jack entra com a maior cara de quem não está entendendo nada, mas que sabe que interrompeu alguma coisa.
-Foi mal, não sabia que ela estava por aqui. -Diz ele ao fechar a porta.
Volto para minha cadeira e me sento. Suspiro alto, exausto da conversa que acabei de levar.
-Maddie está tendo uma crise súbita de consciência. Apenas isso. -Desconverso, sem clima de voltar ao assunto.
Jack entende e se senta na cadeira na minha frente.
-Não sei se você quer tratar disso agora, mas recebi uma ligação daquela construtora que nos mandou um e-mail na semana passada. O secretário do CEO falou comigo, eles estão interessados em investir no terreno de Miracle, querem trazer uma indústria de grãos para lá. -Ele diz, abrindo o notebook que traz dentro da mochila.
-É claro que quero tratar disso agora. -Afirmo, empolgado por que o negócio realmente me pareceu rentável desde o início. -Eles mandaram alguma proposta? Como vamos fazer?
Jack faz um gesto com a mão para que eu me acalme. Da a volta na mesa e me mostra a cópia do e-mail que recebeu.
-Eles não mandaram proposta ainda. Querem tratar pessoalmente com você ou com algum responsável, mas te adianto que não seria inteligente perder essa empreitada, ainda mais se levarmos em conta que Miracle não vai se recuperar tão cedo do incêndio então ter alguém interessado em construir qualquer coisa naquele lugar é a melhor coisa que poderia acontecer.
Assinto, sabe do exatamente que o incêndio que ocorreu em Miracle ainda me daria uma enorme dor de cabeça devido as extensas áreas que perdemos..
-Marque o encontro e mostre interesse. Vamos resolver isso o mais rápido possível. -Digo, mas Jack hesita e se senta de novo na cadeira. -O que foi? Algum problema?
Ele maneia a cabeça indeciso. Fecha o computador e me encara.
-Não é um problema, exatamente, mas tem um detalhe que pode mudar um pouco as coisas.
-Tenho certeza de que é algo que podemos resolver. -Digo com confiança, sem entender porque ele parece hesitante de repente. -Que detalhe é esse?
-Eles querem marcar um encontro na empresa matriz. A cede fica em Toledo, Ohio.
Quando ele diz eu engulo em seco, finalmente entendendo o tal "detalhe". Tento não parecer hesitante, mas é quase impossível.
-Toledo... -Repito, incrédulo. -A cidade onde Millie está morando.
Ele suspira e assente.
-Exatamente. É uma cidade grande, talvez não fique exatamente perto de onde ela mora...
Ele continua falando, mas eu já não presto mais a devida atenção. Só consigo pensar nela agora. Como isso é possível.
-Eu não posso ir até lá. -Interrompo, sem nem ouvir o que Jack está dizendo.
Ele fecha a cara automaticamente para mim.
-Finn, essa é uma oportunidade que não podemos perder...
-Eu sei. -Levanto. Me sentindo agitado e completamente desnorteado. -Não estou dizendo que vamos recusar a sociedade, estou dizendo que eu não posso viajar até Toledo. -Encaro bem meu amigo. -Você pode ir no meu lugar.
Jack levanta também. Já está todo negativo enquanto sacode a cabeça de um lado para o outro.
-Você está brincando, não esta? Você que é o dono, não posso resolver isso por você.
-Pode sim. Você é mais do que capaz, é meu braço direito, tem feito muito mais do que eu mesmo! -Rebato meio desesperado com sua negação.
Ele para e me olha com o cenho franzido. Puto de tanta raiva.
-Quando você vai parar com isso? Está fazendo isso só porque não quer vê-la por lá?
Sento-me na cadeira com força e jogo minha cabeça para trás. Está tudo girando e estou realmente sem clima para entrar numa briga.
-É exatamente o contrário Jack. -Assumo, de vagar e baixo. -Você acha mesmo que eu vou estar em Toledo e vou suportar não ir atrás dela? Estou tentando apenas evitar que isso aconteça.
O ouço suspirar de impaciência, depois senta na cadeira a minha frente e põe os cotovelos sobre a mesa afim de me encarar bem de perto.
-E porque? Qual o problema de vocês se verem? Não é como se você fosse morar lá para sempre.
Penso no que ele diz. Sei que tudo o que eu mais quero é vê-la outra vez e em teoria isso seria simples, mas na prática não é.
-Se passaram dois meses Jack. -O confronto, encarando-o de perto. -É tempo demais e ao mesmo tempo muito pouco. Talvez só agora a Millie esteja se acostumando com a vida que leva lá e esteja seguindo em frente. Se eu aparecer agora de repente vou atrapalhar esse processo, ela vai acabar regredindo. Você sabe que é isso que vai acontecer.
Ele escuta com atenção, parece ponderar, mas depois nega com a cabeça.
-Na minha opinião é você quem está com medo. Tudo bem, pode ser algo que vai deixá-la abalada no primeiro momento, mas você não acha que ela ficaria muito mais feliz se te vesse? Você não liga, não manda mensagem, não estabece qualquer contato. Parece até que você não se importa.
-Voce acha não me importo? -Pergunto, incrédulo ao ouvir esse absurdo.
-Eu disse que é o que parece. -Ele pontua. -Não importa que eu saiba que você se importa muito, porque eu não tenho nada a ver com isso. Mas a Millie vai acabar creditando cada vez mais que você não liga e aí, quando você decidir fazer alguma coisa, pode ser tarde demais.
Parece uma maldita sentença. Uma que não quero ouvir, nem acreditar que seja real. Millie me conhece, ela deve saber que estou fazendo isso por acreditar ser o melhor para ela. Deve saber que mesmo assim eu me importo. Muito.
-Você pode encontrar com ela. -Sugiro, recebendo imediamente uma negação. -Não vou te obrigar a fazer nada, Jack. Não posso e não é direito meu, mas você poderia fazer isso. Pode encontrá-la, ver como ela está, se ela precisa de alguma coisa.
Ele fecha a cara e vira o rosto para o lado. Ainda irredutível, mas perdendo que no fundo enxerga que tenho razão.
-Você está sempre me envolvendo nisso. Sempre sou eu quem tenho que ligar e falar com ela porque você não tem coragem para fazer isso. -Diz, estressado. -Uma hora você vai ter que fazer isso por conta própria.
-Ainda não é o momento. -Digo depressa e desesperado como estou, resolvo apelar. -É a última vez que peço para fazer isso por mim.
Ele bufa. Esfrega o rosto e como imaginei, desiste.
-E o que eu digo quando ela perguntar por você? Porque vai ser a primeira coisa que ela vai fazer quando me ver.
Sua certeza me desconcerta. Seria mais fácil para mim acreditar que Millie não permanece tão preocupada comigo, mas a conheço bem demais e sei que Jack tem razão.
Me encosto na cadeira e suspiro.
-Diga que estou bem. Só ocupado com as coisas aqui.
Ele revira os olhos pois sempre digo a mesma coisa.
-Então vou mentir. -Constata. -Tudo bem, se é assim que você prefere.
Não. Não é assim que eu prefiro. Mas isso nunca é sobre mim e como só eu posso compreender como me sinto, eu afirmo para ele.
-Não quero que ela se preocupe atoa.
Jack faz uma expressão de decepção, mas não rebate meu comentário, apenas levanta.
-Vou ligar para a empresa. Avisar que estou indo amanhã para a reunião, se eles concordarem em receberem a mim ao invés de você, eu pego um avião cedo.
Não tenho palavras nem cara para agradece-lo, por isso não faço mais do que assentir com a cabeça. Para Jack, isso é o bastante e ele recolhe a mochila para sair, mas antes de faze-lo ele vira e me encara.
-Você tem até amanhã para decidir mudar de idéia.
--
Millie.
-Mas isso é um absurdo! -Mamãe diz, completamente revoltada. -Quem essa garota pensa que é para vir até aqui simplesmente jogar essa responsabilidade toda para cima de você desse jeito?
Ela levanta da cadeira da mesa de seu escritório e anda de um lado ao outro enquanto expressa toda sua incredulidade e raiva.
Não sei o que dizer e é por isso que, após explicar tudo para Sadie, a trouxe comigo para o trabalho a fim de obter sua ajuda em relação ao que acabei de contar, porém pela expressão perdida que vejo em seu rosto agora sei que ela também não faz ideia do que falar, então eu tento.
-Victoria não tem como cuidar do bebê. Ela está desesperada e...
-E isso justifica? -Mamãe me interrompe, me dissecando com o olhar. -Você não tem absolutamente nada a ver com isso. Não é problema seu!
Eu não estava esperando uma festa da parte dela exatamente, mas tampouco esperava tanta revolta como a que vejo agora.
A verdade é que não ensaiei como diria isso, apenas precisava de ajuda para pensar e achei que ela me ajudaria a chegar em uma decisão, só que pelo visto, eu estava enganada.
-Eu não vou admitir que você faça uma coisa dessas. -Ela continua. Agora está retirando o jaleco de médica e pegando a bolsa em cima de sua mesa. -Quero encontrar essa garota, vamos, irei dar uma boa situada nela pois é disso que ela está precisando.
-Kelly, não acho que seja uma boa ideia. -Sadie finalmente intervém. Ela levanta e faz minha mãe parar antes de abrir a porta. -Você está com raiva, se acalme primeiro.
-Você não pode estar concordando com isso, Sadie! -Ela aponta para mim. -Diga a Millie que isso é uma loucura!
Sadie me encara com o mesmo olhar confuso que vem expressando desde que lhe contei tudo e nega com a cabeça.
-Não concordo. -Diz, baixinho. -Mas acho que vocês precisam conversar melhor. Escute o que Millie tem a dizer.
Mamãe olha para mim. Parece que tem uma bomba prestes a explodir e por alguma razão isso me deixa completamente desconcertada. Como uma criança recebendo o primeiro puxão de orelha da mãe na vida. Ela vem para perto de mim e segura minha mão.
-Não me diga que está pensando em aceitar isso, filha. Por Deus, me diga que nem ao menos cogitou a possibilidade! -Implora, ao me encarar.
Sendo justa, não cogitei, mas até agora não me veio qualquer outra alternativa então apenas tento expor a ela como me sinto.
-Se eu não ficar com o bebê algo terrível pode acontecer com ele. Não quero que isso aconteça.
Ela suspira derrotada, decepcionada com minha resposta.
-Você não pode pensar assim, querida. Não é como se fosse culpa sua. Você não deve nada a ninguém. Nunca deveu.
Quero e acredito nisso, porém não é simplesmente assim que tudo acaba. Levanto-me meio sem ar com as duas ao meu lado me encarando o tempo todo.
-Não acho que devo alguma coisa para Victoria, mãe. Não estou fazendo nada por ela, por mesmo por pena. Estou fazendo porque simplesmente sou incapaz de permitir que isso aconteça com uma criança. É apenas um bebê.
-Não é apenas um bebê, Millie! -Kelly rebate e Sadie tenta conte-la apoiando a mão sobre seu ombro. -É uma vida. Uma vida que vai custar a sua, você não percebe? Vai custar seu tempo, seus esforços, a carreira brilhante que você quer ter como bióloga. Você vai viver em prol de um bebê que não é seu. -Ela nitidamente engole em seco e sua expressão fica tomada por desprezo. -Um bebê dele. Do homem que fez coisas horríveis com você...
-Por favor não. -Imploro, tapando meus ouvidos. -Nao fale dele.
Sadie vem até mim e me abraça vendo o quão perturbada fico com esse assunto.
-Tudo bem, Millie. Acabou. -Ela sussurra docemente enquanto acaricia minhas costas. -Vamos embora se você quiser.
Eu quero dizer que sim. Para irmos embora e quase faço isso, mas minha mãe se aproxima.
-Me desculpe, amor. -Diz ela com rosto assustado e a voz cheia de remorso. -Eu não devia ter trazido aquele monstro para o assunto, me perdoe.
Tento ficar mais calma, porém não é tão fácil fazer isso. Quando ninguém sabia eu conseguia me proteger dos efeitos que Simon ainda projeta sobre mim, agora que contei para quase todos a minha volta, me sinto mais vulnerável e detesto os olhares de pena que recebo.
-Só preciso que você entenda mãe. -Digo, a um passo de chegar ao meu limite e deixar que o desespero me tome por completo. -Ou me ajude a encontrar outra saída.
Ela esmorece e senta-se sobre o tampo da mesa segurando o rosto entre as mãos.
-Tenho medo, filha. -Confessa, abraçando o próprio braço. -Sei que você tem a melhor das intenções e as pessoas se aproveitam disso.
Sadie alisa meu ombro e assente.
-Eu sei que não tenho nada a ver com essa situação e ainda nem sei se acredito que tudo isso possa ser real, mas sua mãe tem razão, Millie. -Diz ela, realmente preocupada. -Só te conheço a alguns meses e já pude perceber que você as vezes quer abraçar o mundo com as pernas.
Meus olhos lacrimejam e sinto vontade de chorar ao ouvir isso, porém me mantenho firme até onde posso pois ceder agora não vai me fazer chegar a lugar algum.
-Victoria não está tentando se aproveitar de mim. Vocês não entendem porque nunca viveram naquela casa, nunca tiveram que conviver com Simon ou aquela família. Victoria é imatura, foi irresponsável por ter feito o que os pais dela queriam ao se envolver com ele, mas ela também é inocente, uma vítima. Nunca soube de nada...
-E você, Millie? -Kelly me interrompe. Os olhos já cheio de lágrimas. -Será que existe vítima maior que você nessa história? Você fala como se fosse mais velha, mais madura que a Victória, mas você não é. É tão jovem quanto e só agora está reconstruindo a sua vida.
A encaro, compreendendo sua preocupação e seus temores. São os mesmos que os meus. Não estou pronta para isso. Talvez nunca esteja, mas algo me vem em mente. A mesma coisa que vem me alimentando desde que Victoria apareceu ontem.
Me aproximo dela e pego em suas mãos.
-Eu sei o que é ser rejeitada. Sei o que é crescer achando que sou culpada por todo mal que me cerca. Passei a vida achando que ninguém me queria, que eu era apenas um peso e todos os dias todas as pessoas faziam questão de me lembrar quem eu era. -Controlo-me, a um passo de cair em prantos. -Sei que você não tem culpa por ter me deixado, que fez o melhor para mim e me deixou com May, mas isso não apaga o que eu tive que viver sozinha. E se eu tenho certeza de uma coisa é que não consigo viver bem sabendo que vou deixar outra criança passar por isso se eu posso impedir.
Mamãe chora, esconde o rosto com o braço e se afasta de mim. Sadie não diz nada, mas me olha com aquela expressão de choro preso na garganta. Está tentando ser forte por mim.
Sei que toquei em um ponto sensível, mas não vi outra alternativa para fazê-las me entender, apesar de ter ciência de que jamais irão compreender totalmente.
Ficamos sem dizer nada por um longo tempo e mamãe não volta a me encarar, agora consumida pela culpa que a fiz sentir. Quero ir até ela, abraça-la e pedir desculpas, porém sei que não menti. Jamais a culparia pelo que aconteceu comigo, mas aconteceu e isso nunca vai mudar.
Depois de um tempo, ela parece conter mais as lágrimas e volta a olhar para mim. Está com o rosto inchado, uma expressão cansada, mas diferente. Sei que tem algo em sua mente e eu me preparo para escutar.
-Eu fico com ele.
Sadie e eu nos olhamos, mas acho que nenhuma de nós acreditamos no que ouvimos.
-O que? -Preciso ouvir de novo para ter certeza.
Ela respira fundo e ergue o rosto de maneira decidida.
-Eu fico com o bebê. Irei adota-lo, como deve ser.
Pelo impacto de sua decisão, inicialmente eu não consigo reagir. Estou chocada e é como se minha mente se esvaziasse de repente.
-Kelly... Tem certeza? -É Sadie que pergunta, tão estupefata quanto eu.
Mamãe me encara e pondera.
-Não é a situação ideal, nem é como eu imaginei que poderia ser, mas sim. -Afirma com segurança. -Mike e eu sempre sonhamos com um filho, mas devido as complicações que tive no ultero, nunca pude ter outro bebê e não me sentia segura para adotar uma criança. Queria achar Millie primeiro, agora que já reencontrei...
-Você... Seria capaz de fazer isso? -Pergunto, a cortando no meio da frase. -Quer dizer, você acabou de dizer que não era responsabilidade minha. O bebê é do Simon! -Preciso lembrá-la.
De novo ela pondera, mas está tão mais calma que isso me faz pensar que está agindo apenas por culpa. Pelo peso que carrega por ter me deixado, embora não fosse por querer.
-É como você disse, Millie. Esse bebê não tem culpa. Vai ser estranho no começo, mas tenho certeza que vou ser capaz de ama-lo, darei o meu melhor. O que não pude dar para você.
Eu deveria ficar feliz, com a sensação de um peso a menos, mas estranhamente não é como me sinto. Estou mais para angustiada, com algo apertando meu peito. Me sento na cadeira tentando conter os tremores que de repente tomam minhas mãos.
-Millie, você está bem? -Sadie chega ao meu lado e levanta meu rosto com preocupação.
-Sim. -Minto. -Só... Estou surpresa.
-Você acha que estou fazendo isso apenas por culpa? -Kelly pergunta e Sadie sai da minha frente para que possa olha-la. -Acha que não sou capaz de amar esse bebê?
Por um instante não sei o que responder porque também não sei como me sinto. Ela apenas continua.
-Não, Millie. Claro que nunca me perdôo por ter te deixado para trás, especialmente depois que eu soube tudo o que você teve que passar sem mim. -Ela fecha os olhos e uma expressão de dor toma seu rosto. -Quero compensar isso sim, mas também desejo ser mãe outra vez. Sempre fui a sua mãe e você sempre foi meu amor maior, mas nunca tive a experiência completa. Nunca pude cuidar de você quando era bebê. Por isso sei que amarei essa criança independentemente de onde ela venha. Mike e eu estamos preparados e ele vai ser um pai maravilhoso. Faremos com que esse bebê seja muito feliz.
Me emociono, não apenas por confiar no que ela está dizendo, mas porque parece de repente que ela está arrancando algo de mim e sei que isso não faz o menor sentido. Tudo o que eu deveria era ficar feliz, mas porque eu não fico?
-Tudo bem. -Dou um sorriso consternado. -É melhor assim, vocês com certeza estão prontos para isso.
Sadie respira com alivio e se senta na cadeira ao meu lado agarrando minha mão. Ainda me sinto esquisita e não consigo encarar Kelly por alguma razão que não entendo.
Ela anda até mim e se ajoelha na minha frente.
-Confie em mim, querida. -Diz, agarrando minha mão. -Farei isso por você também. Para que você entenda que não tem que passar por nada disso sozinha. Eu estou aqui agora, sou sua mãe e nunca vou te abandonar outra vez.
Nos abraçamos e eu fecho os olhos tentando buscar o alívio e recuperar o controle do que estou sentindo. Nada me vem. Está tudo absolutamente confuso dentro de mim.
Talvez eu não queira admitir, mas lá no fundo, por algum mínimo segundo que seja, eu cheguei a imaginar que era capaz de fazer isso e me peguei pensando em coisas que jamais pensei antes. Ter uma família. Um bebezinho para cuidar e proteger, para amar sobre todas as coisas do mundo, mas mamãe tem razão. Eu não posso fazer isso. Não é responsabilidade minha e se ela precisa e quer tanto, que seja imensamente feliz com a nova filha.
Não voltamos para o trabalho o restante do dia. Ela aproveita o pouco movimento na clínica, deixa outro médico de plantão e me pede para visitarmos Victoria no hotel onde ela está hospedada.
A vejo confiante, ansiosa para contar tudo a Mike e ter sua reação, mas ao mesmo tempo sinto-a na defensiva e dura, pronta para enfrentar qualquer coisa.
Eu não faço ideia de como me sinto. Na verdade fico muda durante todo o trajeto que fazemos no carro enquanto estamos indo ao hotel de Victoria. Sadie tenta puxar assunto, tenta me tirar da bolha em que entrei, mas não consigo me livrar da sensação esquisita que tenho dentro de mim.
Victoria estranha nossa chegada repentina. Ela está toda descabelada devorando um saco de batatas fritas com a barriga enorme do lado de fora porque a camisa do pijama mal a cobre quando chegamos em seu quarto.
Ela chora quando conto que mamãe irá ficar com a bebê e isso só me faz me sentir ainda pior do que me sinto.
-Estou disposta a ajudar você, menina, mas temos que fazer tudo isso direito e da melhor forma possível. -Mamãe explica, enquanto Vicky tenta se recuperar da notícia.
Ela limpa as lágrimas e assente, os dedos ainda sujos com o óleo das batatas.
-Sim, eu vou fazer o tudo que me pedir. Desculpe por essa situação, apenas não posso ficar com ela.
Mamãe não parece ter pena, Sadie sim. Ela se afasta, novamente parecendo conter o choro.
-Primeiro de tudo, você vai entregar as chaves desse quarto e vai me acompanhar. Ficará em minha casa, vou por seu nome no meu plano de saúde para que tenha acesso as últimas consultas e a um parto seguro. -Kelly explica para ela, analisando Victoria criteriosa. -E vamos cuidar da sua alimentação, por Deus, você está quase tendo um bebê, não pode estar comendo tantas porcaria assim!
Victoria afasta o saco de batatas para longe e assente com firmeza.
-E tem mais uma coisa, talvez seja a mais importante delas. -Mamãe volta a falar, encarando-a seriamente. -Assim que ela nascer, você volta para sua casa em segurança, vou garantir isso, contanto que deixe tudo absolutamente legalizado para que eu possa adota-la e você deve prometer que não vai aparecer novamente. Se queremos que essa criança cresça longe de todo o mal e a destruição que a cerca agora, você não pode se arrepender do que está fazendo.
Nesse momento, Vicky olha para mim, quase como se quisesse minha opinião sobre isso. Não posso intervir, pois nem mesmo digeri o que está acontecendo ainda.
-Escute o que ela disse, Vicky. É melhor assim. -Digo baixinho e resignada.
-Eu não voltarei. -Victoria afirma. -Depois que ela nascer, é inteiramente de vocês.
-Minha. -Kelly a corrige, quase sendo dura demais. -Millie não tem qualquer envolvimento com isso, terá uma irmãzinha em poucos meses, mas apenas isso e eu quero que você esqueça o nome da minha filha de uma vez por todas. Entendo seu desespero e entendo o que está fazendo, mas não posso esquecer que você também foi uma das pessoas que fez da vida da Millie um inferno...
-Mãe, tudo bem. -A interrompo, sem entender o porquê de tanta antipatia.
Ela me repreende com o olhar de quem sabe o que está fazendo e volta a falar.
-Não quero que ninguém saiba que fiquei com a menina. Se precisar, invente que a perdeu de alguma forma, mas não fale jamais que veio até aqui nos procurar.
Apenas quando ela explica, tenho uma epifania e compreendo o que isso significa.
Mamãe está com medo de que venham atrás da garotinha. Sendo mais específica, o pai dela. E essa era uma das razões pelas quais ela não queria que eu ficasse com o bebê.
O clima pesa entre nós como uma bomba atômica e Victoria também entende o que isso quer dizer.
-Não vou falar. -Ela diz, pálida pelo medo. -Ninguem sabe que estou aqui. Vou inventar alguma coisa, não se preocupe.
Mamãe pede para que ela se arrume para partirmos. Quando ficamos sozinhas no quarto enquanto Victoria arruma a mala no closet, eu pergunto:
-Você não acha que Simon pode aparecer por causa do bebê, acha?
Sadie se junta a nós, lívida pelo assunto que iniciei. Mamãe pondera, fica com um olhar fixo de quem está pensando, mas também que mostra toda sua fúria e insegurança.
-Por amor a menina, com certeza não. Para causar um caos, pode ser. -Diz ela, fria e resoluta. -Nos resta ter esperanças de que Finn o encontre primeiro e acabe de vez com esse pesadelo.
Ela me olha e sinto um frio na espinha ao entender do que está falando, mas não sei dizer se quero ou não que isso aconteça.
Se não acontecer, jamais nos veremos livres de Simon. Se acontecer, Finn se tornará um assassino. Por minha causa.
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