"E você sussurra: "eu estou bem"
Porém eu vejo através de suas mentiras brancas
Mas essas paredes não falam
E se elas pudessem, elas falariam"
Millie.
Estou cara a cara com o reitor da minha univerdade e a sensação é um misto esquisito entre pânico e nervosismo.
Sendo sincera ele é bem mais baixinho do que aparentava quando o via passando pelos corredores e não tem sequer um único fio de cabelo na cabeça um pouco grande demais para sua estrutura. Os óculos e a barba grisalha e rala compõe a feição de poucos amigos e um pouco intimidadora.
-E a senhorita se propõe a substituir a carga horária das aulas normais para pegar a vaga da monitoria? Não acha que isso pode, de certa maneira, prejudica-la? -Ele indaga, enquanto observa algo no computador ligado na sua frente.
Compreendo que essa é uma pergunta pela qual existe apenas uma resposta certa, então falo o que acho que ele deve querer escutar.
-Não acho que me prejudicaria. Modéstia parte consigo acompanhar o ritmos das aulas mesmo tendo pouco tempo para me dedicar a elas. Uma prova disso são minhas notas, desde que comecei a estudar não tirei qualquer nota abaixo da média.
Ele me encara inexpressivo e eu disfarço engolindo em seco pois não sei dizer se gostou da minha sinceridade ou se me achou esnobe quanto a isso.
-Mas para fazer parte do programa de monitoria, ter boas notas no currículo não é exatamente o requisito mais importante. A disponibilidade e a forma como se porta a frente de uma turma inteira conta muito mais.
-Me considero uma pessoa organizada. Tenho um trabalho também e jamais deixei de cumprir minhas obrigações justamente porque tento ao máximo manter minhas tarefas sempre organizadas. -Respondo com segurança.
Ele inclina a cabeça um pouco para o lado e acena, parecendo pela primeira vez demonstrar alguma coisa.
-Certo. Irei conversar com alguns outros alunos que tiveram desempenhos parecidos com o seu na prova escrita e devo ter uma resposta no final do dia ou amanhã pela manhã. A senhorita pode se sentir a vontade para se retirar agora.
Dr. Murphy levanta e aperta minha mão, me acompanhando calmamente para a saída de sua sala.
Apenas quando nos despedimos e a porta é finalmente fechada que ponho a mão sobre o peito e respiro profundamente, mas sem saber se é de alívio ou preocupação.
Vou até o banheiro do piso superior e lavo minhas mãos e meu rosto na pia, tentando ao máximo me manter calma e respirar corretamente.
Ao menos posso dizer que foi melhor do que achei que seria!
Após recolher minhas coisas e me recompor, finalmente desço até o pátio externo onde vejo o carro de mamãe já parado na porta a minha espera.
Como a entrevista ocorreu no período da tarde depois da aula, tive que ficar então perdi a carona de Sadie e mamãe se propôs a me pegar.
-Eai querida, como foi? -Indaga ela ansiosa assim que entro e fecho a porta do quarto.
-Não sei. -Sou sincera enquanto dobro as mãos uma na outra ainda muito nervosa. -Ele não demonstrou muita coisa, acho que fui bem, mas não sei se fui o bastante.
Mamãe assente em compreensão e alisa ternamente o meu braço sobre a camisa de mangas longas que estou vestindo.
-Fique tranquila, eu tenho certeza que se saiu bem. É normal que ele não seja tendencioso, foi a primeira entrevista.
Respiro fundo e assinto, querendo muito concordar com ela. Sem querer olho para trás e me deparo com várias sacolas ocupando os bancos.
-Você foi às compras?
Ela abre um sorriso, mas mantém a atenção na estrada enquanto sai do acostamento.
-Mike e eu passamos em uma lojinha para comprar algumas coisas para o bebê. Você precisa ver, compramos cada coisa linda!
Tento sorrir apesar do enorme desconforto que sinto ao pensar nessa história de novo pois desde nossa pequena discussão na consulta de Victoria ainda não conversamos direito sobre nada.
-Anna deve estar atolada de trabalho sem mim. Você pode me deixar em casa e me esperar enquanto me arrumo? Podemos ir para a empresa juntas.
-Claro, já era o que eu queria fazer de todo jeito.
Ela continua sorrindo. Está feliz demais e novamente me sinto culpada por estar me sentindo estranha e desconfortável.
Estou tentando muito seguir o conselho da Dra. Green e deixar que as coisas sigam naturalmente. Esperar a bebê nascer para ver como me sinto, mas essa energia estranha que ronda cada vez que estou perto de Kelly ou de Victoria está se tornando algo cada vez mais difícil de lidar.
Seguimos o caminho em silêncio e apenas agradeço quando o carro para em frente ao meu prédio.
-Eu desço rapidinho. -Informo, mas vejo que ela já está retirando o cinto para me acompanhar.
-Vou levar apenas essa sacola para você ver o que comprei. -Diz ela ao abrir a porta traseira retirando de lá uma das sacolas da loja infantil.
Assinto, sem coragem de dizer que prefiro não ver, pois vejo em seus olhos a animação para que eu veja o que comprou.
Ela me segue em direção ao meu apartamento. A primeira coisa que faço para tentar fugir é deixá-la se acomodando na sala e vou até meu quarto tomar um banho rápido e trocar de roupa.
Enquanto a água escorre, me pergunto qual o meu problema. Era para estar tudo bem, mas me sinto inquieta e incomodada o tempo inteiro.
Quando saio do banheiro já vestida com o uniforme da clínica pego o celular e tudo só piora quando percebo que de novo Finn não mandou qualquer mensagem para mim e isso segue assim desde ontem pela manhã quando ele me desejou um bom dia seco e disse que estaria ocupado.
Mesmo querendo acreditar que seja verdade, simplesmente não entra em minha cabeça que em nenhum momento Finn teve um tempo livre que fosse para me responder, nem mesmo durante a noite que deveriam ser os únicos momentos em que ele e eu estamos desculpados o bastante para conversamos.
Graças a Deus tenho muito trabalho. Estudo demais e isso acaba me distraindo, mas não tira de mim a preocupação nem a sensação de que algo estranho está acontecendo e ele não quer me contar.
É como se eu voltasse no tempo e estivesse naqueles dois meses trás de novo onde a distância entre nós era exatamente como essa de agora.
Saio do quarto ainda encarando o celular, então me assusto ao me deparar com umas quatro roupinhas de bebê estendidas em cima do sofá enquanto minha mãe está sentada passando os dedos entre as peças completamente distraída.
Preciso de um segundo para engolir em seco e para digerir a imagem. Ela percebe meu retorno e me encara com os olhos rasos de água.
-Não são lindas?
Suspiro um pouco alto demais e não tenho outra alternativa senão assentir, mas evito olhar diretamente para as roupinhas.
-Sao sim.
Mamãe levanta e pega o primeiro conjuntinho cor de rosa nas mãos.
-Parece um sonho. Sempre imaginei cada roupinha que compraria para você e agora está de tornando realidade. As vezes eu mal posso acreditar nisso.
Ela agarra a roupinha, colocando-a em seu peito com emoção. A imagem né toca e eu venço o meu desconforto para me aproximar.
-Você merece. Mike também. Já são pais maravilhosos. -Soa um pouco contraditório, mas é a mais pura verdade.
Ela sorri limpando as lágrimas e me abraça.
-Queria que você escolhesse um nome.
Fico paralisada e sem perceber paro de retribuir o abraço.
-V-você quer.. que eu escolha o nome?
-Sim. -Afirma ela com certeza. -Eu percebo que você por alguma razão está de afastando, Millie, mas queria que participasse desse momento. Essa bebê vai ser sua irmã, nada mais justo que você escolher um nome para ela.
Não sei o que dizer. Simplesmente se forma um nó em minha garganta e eu paro em seco, a encarando.
-Claro que não precisa fazer se não quiser. -Ela diz quando vê que não esboço qualquer reação. -Vamos com calma, esperamos ela nascer e você diz se tiver alguma idéia, pode ser?
Ainda chocada demais e sem reação, consigo apenas afirmar com a cabeça.
Como posso escolher o nome da bebê que não é minha?
Não verbalizo minha dúvida e ela guarda o restante das roupinhas na sacola. Aproveito o momento para conferir se Winnie tem água e comida o suficiente e ponho a bandana na cabeça para sairmos.
-Estive pensando em fazer um jantar amanhã lá em casa. Não sei se você sabe mas é aniversário de Victoria e eu acho que seria bom para ela. -Convida enquanto estamos descendo as escadas.
Penso automaticamente em recusar, mas não me vem qualquer desculpa, nem mesmo Finn pois se ele vier, só aparecerá no sábado.
-Sim, pode ser. É uma boa ideia mesmo. -Me forço a responder e completo com um sorriso.
Enquanto ela guarda as coisas no carro de novo, um outro cardo para perto de onde estamos. A princípio apenas estranho, pois é um modelo muito grande e caro demais para alguém que mora em um dos prédios ao redor.
-Millie, vamos. -Mamãe chama, mas não me mexo ainda com a mão parada na maçaneta.
Demora cerca de alguns segundos e a porta do outro carro se abre. Quase caio para trás, mas mamãe é a primeira que esboça alguma reação.
-Finn? -Diz ela, completamente estupefata enquanto levanta os óculos escuros para cima da cabeça.
Olho para ele fechando a porta do carro de onde saiu exatamente do nada e só posso mesmo estar ficando maluca. Mamãe dá a volta e para ao meu lado enquanto ele vem em nossa direção, me deixando confusa e eufórica na mesma medida, com os olhos arregalados e suando inteira dos pés a cabeça.
Como isso é possível?
-Kelly, como vai? -Finn a cumprimenta, mas não tira os olhos de mim nem mesmo por um instante sequer enquanto ainda estou tentando descobrir se isso é real ou não.
-Vou bem. Achei que tivesse ido embora. -Mamãe nem disfarça seu incômodo.
Finn da de ombros despreocupado.
-Terminei algumas coisas que tinha para fazer e resolvi voltar mais cedo.
Noto cansaço em sua voz e reparo no semblante isso me assusta. Finn está abatido. Não do tipo que acabou de fazer uma viagem demorada, do tipo exausto, precisando urgentemente desmoronar no primeiro lugar que encontrar.
Quando ele se aproxima de mim e me abraça, comprovo meus pensamentos. Apesar de parecer tão calmo, seu coração bate muito forte e descompassado, ele respira profundamente perto do meu rosto, os braços quase não conseguem me apertar com vontade. Sinto seu cheiro. Um leve odor de suor misturado com algo azedo que só posso identificar como vômito.
Me afasto assim que posso e disparo sem me incomodar de que minha mãe esteja ouvindo.
-O que aconteceu com você?
Ele sorri franzindo o cenho como se não entendesse e tem que deixar o braço por cima do meu ombro para conseguir não cambalear, mas não está bêbado, apenas fraco demais.
-Nada. Eu disse que iria voltar e voltei. -Ele solta um grande suspiro e me encara. -Voce está de saída? Não quero atrapalhar...
-Não. -Seguro seu braço quando ele tenta se afastar e noto o quão instável ele realmente está. -Vem, vamos subir comigo.
-Millie, temos hora...
-Mãe, pode ir na frente. Eu chego em menos de meia hora. -Encaro implorando a ela com o olhar.
Mamãe não sabe o que dizer. Não gosta nada dessa situação, mas assente e se apronta para sair.
-Me ligue se precisar de alguma coisa.
-Ela não precisa. Vá com ela, você tem que trabalhar... -Finn de novo tenta se afastar mas não permito.
-Tchau mãe, daqui a pouco chego na clínica.
Não lhe dou tempo para me responder, passo um braço em baixo dos braços de Finn e praticamente tenho que arrasta-lo para dentro do meu prédio.
-Estou bem, meu anjo, não quero atrapalhar...
-Pare! -O interrompo zangada quando ele tenta se afastar de mim. -Você consegue subir as escadas?
Ele revira os olhos e assente, mas no primeiro passo que dá no degrau seu corpo oscila e ela tem que se agarrar ao corre mão. Nesse momento surge o meu síndico abrindo os armários de correspondência e eu peço sua ajuda para levar Finn até o apartamento.
Ele reclama, quase não colabora, mas enfim permite que o homem o ajude a subir os cinco lances de escadas.
Deus! O que está acontecendo? Finn passa um dia inteiro sem falar comigo e surge aqui de repente sem avisar e ainda nesse estado. Se estivesse bêbado eu ficaria furiosa, mas não está, o que me deixa infinitamente temerosa e preocupada.
Vou na frente e abro a porta do apartamento. Finn dispensa o síndico, mas consigo agradece-lo antes de fechar a porta.
-Você está exagerando. Eu estou ótimo. -Diz ele cambaleando até o sofá da sala.
Mal se senta e cai completamente com as costas batendo contra o encosto. Ele não está bem!
Winnie tenta pular em cima dele agitada e feliz, mas eu a dispenso levando-a para a varanda e fechando a porta.
Vou atônita para a cozinha, encho um copo com bastante água gelada e pego umas aspirinas.
Finn está estirado no meu sofá quando volto, com a cabeça jogada, mas os olhos bem abertos encarando o teto. Jamais o vi assim em toda minha vida.
-Tome. -Ofereco a ele o copo de água.
Finn olha para minha mão e pega, mas não bebe. Apenas deixa o copo em cima da mesinha de centro e me puxa para seus braços.
Caio sobre os joelhos e o abraço recebendo o peso de seu corpo exausto sobre o meu. Meu coração dói, sinto um aperto tão grande que nem sei como é possível.
-O que aconteceu, Finn? Porque você voltou agora sem me dizer nada? -Pergunto, precisando de respostas.
Ele não diz nada inicialmente. Me abraça fraco, mas percebo que no momento é toda força que ele tem é isso me destrói.
-Eu precisava de você. -Diz, baixinho em meu ouvido.
Fecho os olhos, mais uma vez tomada pela certeza de que há algo muito ruim por trás essa história.
-Eu não entendo. -Me afasto e seguro seu rosto com as mãos. -Você não falou comigo ontem, achei que...
-Sim, sou um idiota, mas podemos conversar sobre isso depois? -Ele me interrompe e segura meu rosto como faço com o dele. -Me deixe apenas olhar para você um pouquinho, está bem?
Eu deixo, mantenho meu rosto em suas mãos, mas enquanto faço isso deslizo os dedos entre nós e abro devagar os botões de sua camisa.
-Você precisa de um banho. Precisa descansar. -Digo. Ele assente, mas não diz nada.
Chego no final da camisa e afasto os lados. Toco sua pele sobre o tórax e não a sinto quente como antes, na verdade ele está totalmente frio e não sei se é possível, mas também noto que emagreceu um pouco em apenas alguns dias.
-Você está com fome? -Pergunto, o ajudando a passar a camisa pelos ombros.
-Morrendo. -Ele sorri, mas isso só me faz pensar na quantidade de tempo que faz que ele não come alguma coisa e porque está assim.
O ajudo a levantar do sofá e ele retira o restante da camisa pelos braços. Nem pergunto mais nada, focada apenas em faze-lo tomar banho e comer antes de qualquer outra coisa.
O levo para o banheiro e enquanto ele se encosta na parede, faço o trabalho de retirar seu cinto e a calça.
-Você trouxe alguma mala? Precisa trocar de roupa.
-Esta no carro, mas posso pegar depois, está pesada e...
-Não. Eu pego. Apenas tome um banho.
Entro no box e ligo o chuveiro saindo debaixo bem a tempo de a água não me molhar inteira.
Finn tenta parecer normal, mas ainda tem que se segurar nas paredes para conseguir chegar até embaixo d'água.
Contenho de novo o desespero para perguntar o que diabos está havendo com ele e apenas pego as chaves do carro no bolso de sua calça e corro para o estacionamento.
O carro que ele alugou dessa vez é bem maior que o anterior. Uma Range Rover modelo evoque branca e encontro a mala média preta jogada de qualquer jeito no banco de trás.
Consigo desce-la do carro, mas assim que faço isso, o cansaço provocado por essa situação completamente inusitada e assustadora me balança de vez e tenho que me segurar na porta para tentar controlar minha respiração e não chorar.
O Sr. Antony, o síndico que está parado no lado de fora do prédio, vê meu desespero e se aproxima pegando a mala da minha mão.
-Esta tudo bem, filha? Você está pálida.
Assinto, ainda muito nervosa e atordoada.
-Estou bem. O senhor pode me ajudar a levar essa mala até meu apartamento, por favor?
-Claro!
Ele de prontidão mais uma vez me ajuda enquanto fecho a porta do carro.
-Seu namorado está bêbado de novo? -Indaga quando estamos subindo as escadas.
Quem dera se estivesse! Era o que eu deveria responder, mas não estou entendendo o que está acontecendo, então apenas assinto com a cabeça ajudando o homem a subir a mala pesada.
-Um rapaz tão jovem, não deveria beber tanto desse jeito. Daquela última vez ele quase fez um escândalo porque eu não queria deixá-lo entrar para te esperar aqui dentro.
Sinto-me culpada por deixar que o homem ache que Finn tem problemas com bebida, mas como explicar algo que nem eu mesmo entendo?
-Ele vai ficar bem. -É tudo o que respondo quando alcanço a porta de casa. -Obrigada, eu acho que não iria conseguir subir essa mala sozinha.
O homem baixinho assente e ajeita o boné na cabeça.
-Se precisar de mais alguma coisa é só me chamar, vou estar lá embaixo.
Agradeço de novo e espero ele sair para entrar com a mala.
-Finn? Vou pegar uma roupa para você! -Grito da sala para informá-lo de que irei abrir sua mala.
Ele não responde.
-Finn?
Vou para meu quarto e o encontro já deitado em minha cama completamente nu e molhado, protegido apenas pela minha toalha que mal cobrem suas pernas. Está totalmente desacordado e deixou o chuveiro meio ligado, derramando água no banheiro, mas não me importo com isso.
Corro até a cama e retiro os cabelos molhados de seu rosto.
-Finn! Fale comigo! Está sentindo alguma coisa? -Sacudo seu ombro com toda força que consigo.
Ele pestaneja, mas não mantém os olhos abertos por muito tempo.
-Estou cansado. -Murmura baixinho. -Só preciso dormir um pouco.
-Isso eu percebi. -Tento mantê-lo acordado, mas ele apenas assente e novamente perde a consciência.
Lágrimas nublam os meus olhos, mas eu me contenho para não chorar de verdade. Puxo minhas cobertas debaixo dos travesseiros e protejo seu corpo inerte com elas. Não quero nem pensar nisso, mas é óbvio demais que esse cansaço não vem da viagem inesperada. Finn está completamente detonado como se não dormisse a dias e não comesse nada pelo mesmo período de tempo.
Tento ligar para Jack atrás de qualquer resposta, mas a ligação não completa indicando que o celular dele de encontra desligado.
-O que você fez consigo mesmo? -Susurro afastando o cabelo úmido grudado em sua testa. -Eu achei que estivesse tudo bem.
Ele não responde, mas se mexe passando o braço pesado por cima da minha cintura como se buscasse por mim em seu sonho.
Quase me rendo e deito ao seu lado, mas então lembro-me que tenho trabalho, portanto não posso passar a tarde aqui esperando que ele acorde, nem acho que isso acontecerá tão cedo e não gosto da ideia de faltar ao trabalho pois sei que Anna precisa de mim.
Penso rápido e encontro apenas uma solução para isso. Rasteio para fora da cama e ligo para Sadie, já no lado de fora do quarto, torcendo para que em seu trabalho ela possa atender o telefone.
-Millie, oi! -Ela atende e eu suspiro aliviada me sentando no sofá.
-Oi. Sadie, preciso de um favor muito importante.
-O que foi? -Fica tensa automaticamente.
Não tenho tempo para explicar, nem acho que ela entenderia algo que também não entendo, então só falo por cima.
-Quando sair do trabalho pode vir até meu apartamento? Finn chegou muito cansado e eu não tenho nada pronto. Vou pedir uma comida, você só precisa receber lá em baixo e deixar aqui na cozinha para ele comer quando acordar.
Escuto o barulho de passos como se ela estivesse se distanciando de onde está para falar comigo melhor.
-Finn está aí? Quando ele chegou? Não deveria vir apenas sábado?
Sacudo a cabeça, mesmo que ela não possa me ouvir.
-Também não sei. Ele não me disse nada, apenas chegou muito cansado e está dormindo. Eu preciso sair para o trabalho agora, mas agradeceria muito se você pudesse pegar a comida lá embaixo quando eu pedir.
Ela não engole a história, digo isso pois a escuto suspirar pesadamente preocupada.
-Eu faço isso Millie, na verdade tenho comida feita em casa, posso chegar e esquentar alguma coisa, não se preocupe. Largo daqui umas três horas e vou direto até seu apartamento, deixe as chaves embaixo do tapete.
-Obrigada. Eu...
-Não precisa agradecer. -Ela me corta. -Agora mexa-se, já está atrasada.
Mesmo assim agradeço de novo e desligo o telefone, mas antes de sair deixo Winnie retornar para a sala e pego minha bolsa rezando a Deus para quando chegar, que tudo isso possa ter uma explicação
--
Finn.
Não entendo o que está acontecendo, mas sou perfeitamente capaz de sentir as sensações. Primeiro vem o cheiro. Aquela mistura de gasolina misturada com o odor inconfundível de papel e madeira queimando, depois escuto os gritos. Desperto com um salto da cama, mas de repente já não estou no quarto e sim no jardim fora da minha casa.
As chamas já engolem tudo o que vejo ao meu redor. O calor abrasador frita meus pés descalços no chão e provocam suor por todo meu corpo.
-Finn! Por favor nos ajude!
Olho para a janela superior reconhecendo o grito que vem do interior da casa. Vejo Maddie socando o vidro tentando escapar do fogo que já alcança o teto da casa.
Entro em desespero e corro para o meio do incêndio. Estou desprotegido sem a camisa então tudo arde quando atravesso as portas lambidas pelo fogo em busca de salvar minha família.
Está tudo escuro e a fumaça tóxica me faz tossir perdendo todo o fôlego enquanto tento alcançar as escadas quentes que levam ao andar de cima.
Como isso começou?
-Maddie? Mãe? Millie? -Chamo por elas me arrastando pelos degraus escapando por um fio de não me queimar com o fogo que se alastra cada vez mais pelo chão e pelas paredes.
-Estamos aqui! Depressa!
Os gritos vão se tornando mais desesperados e mais distantes. A falta do oxigênio me faz me sentir fraco, minha consciência ameaça me deixar a qualquer momento, mas eu não desisto. Não posso desistir e deixá-las morrer.
-Estou indo! Não saiam do lugar! Estou indo.
Consigo me desvencilhar dos escombros em chamas que caem do teto. A adrenalina alimenta o restinho de consciência que ainda tenho e alcanço o piso superior onde as portas e as paredes parecem derreter com o calor insuportável que toma todo o lugar.
As maçanetas queimam minha mão quando as toco, então dou chutes contra as portas, fazendo as madeiras se partirem em vários pedaços. O primeiro quarto está vazio. Vou para o outro, mas sempre que entro não as encontro.
-Onde vocês estão? -Grito, querendo sobrepujar o ruído do fogo que me deixa pouco a pouco mais surdo.
-Aqui! Estamos aqui!
-Onde?
Corro pelos corredores tentando seguir as vozes, mas elas vão se tornando tão baixas e silenciosas que não faço a menor ideia de para onde ir.
-Aqui! Por favor, não nos deixe morrer!
É a última coisa que escuto antes de ser finalmente engolido pelo fogo.
--
Acordo com um sobressalto tão grande que meu corpo oscila subindo e batendo de volta contra o colchão. Me arrasto nele procurando pelo fogo e gritando apavorado, mas somente depois de alguns segundos percebo que não é real e que não passou de um pesadelo.
-Meu Deus, o que foi isso? -Alguem berra e abre a porta do quarto onde estou.
Olho depressa, ainda atordoado pelo pesadelo e me deparo com uma figura colorida e ruiva no encalço da porta me olhando assustada com uma colher enorme em formato de concha levantada na mão em uma posição de defesa.
Nos primeiros instantes eu e ela apenas nos encaramos. Ambos atônitos, com as respirações aceleradas e em alerta. Nada faz sentido e nem mesmo a reconheço, não sei onde estou, até que ela abaixa a colher e respira fundo.
-Caramba, isso foi um pesadelo?
Espremo os olhos tentando focar minha visão e tenho um súbito estalo interno que me faz perceber onde estou e quem é a pessoa que está me encarando. Só por último, dou-me conta do estado em que estou. Nu. Coberto apenas nas pernas por um lençol minúsculo e encharcado de suor.
Ela também parece perceber isso de repente. Fica vermelha, desvia o olhar de mim e desaparece do quarto, voltando segundos depois arrastando minha mala.
-Acho que é sua. Eu vou voltar para a cozinha. -Diz ela deixando a mala no cantinho da parede e saindo logo em seguida.
-Porra. -Arrasto as mãos pelos cabelos, ainda sentindo a angústia causada pelo pesadelo fazer meus membros tremerem instáveis.
É sempre a mesma coisa, estou de certa forma acostumado com isso, mas não significa que seja menos apavorante do que sempre é.
Tento me recordar de como vim parar aqui, mas as últimas horas parecem apenas um borrão mal desenhado na minha mente.
Sei que Jack comprou minhas passagens e falou com a empresa de alugueis de carros. Sei também que me fez voltar para casa e pessoalmente fez minhas malas antes de me empurrar no primeiro avião que encontrou.
O resto da viagem e o caminho que trilhei para chegar aqui não consigo sequer me lembrar. Parece que entre uma coisa e outra fui sugado por um buraco negro e vim parar nesse momento de agora, sentindo não só uma dor de cabeça excruciante como um tremor que se recusa a me deixar.
Levanto-me da cama apenas para constatar que estou fraco, mal sentindo minhas pernas trêmulas e meu corpo inteiro parece moído, como se um caminhão tivesse passado por cima de mim durante várias horas seguidas.
Vou para o banheiro tentar me livrar do suor. Minhas mãos sem forças estão tão dormentes que quase não as sinto, mas sinto o calor insuportável das chamas.
Quando termino me olho no espelho e pouco a pouco alguns flashes retornam à minha mente. O momento quando parei o carro aqui em frente. Em que vi Millie e Kelly quase saindo, mas há um novo corte nas lembranças e tudo do que consigo me recordar é do rosto dela assustado enquanto olhava para mim sem entender o que estava acontecendo.
"O que você fez consigo mesmo?"
Lembro que ela perguntou, mas não sei em que momento. Devo ter simplesmente apagado demais disso.
Sacudo a cabeça extremamente dolorida por me esforçar demais para pensar e me visto com o conjunto moletom que é a primeira coisa que encontro na mala.
Saio do banheiro e sinto o cheiro de alguma comida sendo preparada. Meu estômago me tortura, me recordando de que não faço nem ideia da última vez em que comi alguma coisa sólida.
A intenção é sair e buscar imediatamente a fonte do cheiro delicioso, mas paro na porta me dando conta de quem está do outro lado.
Sadie. Porque ela está aqui? E onde Millie está que me deixou sozinho com ela?
Foda-se! Estou com tanta fome que não me importo de ter que enfrentar a garota antipática, assim como também não me importa que ela tenha me visto acordando daquele pesadelo.
Assim que abro a porta uma bolinha de pelos se joga contra meus pés descalços e tenho que me equilibrar para conseguir me abaixar e pegar Winnie no colo.
A cachorrinha me lambe, totalmente inqueita, latindo e também mordendo suavemente meus dedos.
-Ela estava para me deixar louca querendo entrar dentro do quarto.
Olho para frente e vejo Sadie do outro lado do balcão da cozinha, mas não foco exatamente no seu rosto e sim na travessa que ela acabou de retirar do forno e que cheira como a última maravilha do universo.
-Esta com fome? -Sua pergunta me desperta.
Me fazendo perceber que devo estar com a maior cara de morto de fome, com os olhos arregalados e salivando. Para não perder o costume dou de ombros e ponho Winnie no chão, mas vou direto até o banco alto atrás do balcão.
-Onde Millie está?
Sadie bate a colher na travessa e da a volta na bancada deixando-a perigosamente muito perto de mim.
-Ela foi trabalhar e me pediu para vir fazer alguma coisa para você comer.
Quando diz isso paro de me concentrar vergonhosamente na comida e a encaro, me sentindo incomodado.
-Ela pediu? -Limpo a garganta. -Não precisava.
Sadie revira os olhos e pega um prato limpo no armário, junto com um par de garfo e faca.
-Bem, pode ser apenas impressão minha, mas sinto que precisava sim. Da para ver na sua cara que não come a algum tempo e agora entendo porque ela me ligou tão desesperada daquela forma.
Ela coloca o prato perto de mim para que eu me sirva e embora eu esteja realmente faminto, não consigo ignorar o que acabei de ouvir.
-Ela estava desesperada? Como assim? Porque? -Realmente não me lembro.
-Bem, é só olhar para você. -Diz ela apontando para mim como se fosse óbvio, quando percebe meu silêncio ela continua -Você ignorou as mensagens dela o dia todo ontem e a Millie nem sabe disfarçar quando algo a incomoda, então hoje você aparece aqui do nada e nesse estado...
-Fiquei cansado da viagem e ontem não tive tempo... -Tento, mas ela revira os olhos e eu me calo.
-Olha só, eu adoro uma fofoca, mas isso realmente não é da minha conta. Apenas saiba que vai precisar de uma desculpa bem melhor do que essa quando Millie chegar, porque ela realmente saiu daqui toda nervosa por sua causa.
Sadie dá a volta na bancada e serve ela mesma meu prato com a torta que retirou da travessa, mas agora estou preocupado demais para pensar em comer.
-O que está fazendo? -Pergunta Sadie quando me levanto para ir atrás do meu celular.
-Vou ligar para ela...
-Acho que agora isso é um pouco tarde demais! -A rabugenta vem até mim e retira o celular da minha mão. -Trate de sentar essa bunda na cadeira e comer alguma coisa. Millie confiou que eu te alimentaria e é isso que eu vim fazer.
Ergo as mãos em sinal de rendição pois ela realmente tem um jeito bastante incisivo de dar ordens e me sento de volta no banco.
-Você deve estar odiando fazer isso, não é? -Digo constrangido ao vê-la voltar a me servir.
Sadie ergue as sobrancelhas para mim e dá de ombros.
-Não foi assim que imaginei passar a minha tarde, mas sem problemas. Gosto de cozinhar e Millie é minha melhor amiga. Aguento coisa pior se ela me pedir.
Assinto, impressionado com a sua sinceridade, mas não resisto e puxo o prato para perto, devorando a primeira garfada de torta em apenas um segundo.
É impossível conter um gemido de satisfação. Ela poderia pelo menos cozinhar mal para que eu tivesse algo do que falar, mas está divino.
-Bom não é? -Ela percebe e me provoca arqueando uma sobrancelha.
Mastigo mais rápido e dou de ombros.
-Da para matar a fome. Você não cozinha tão mal, Sandra.
Dessa vez falo o nome errado sem querer, mas ela bufa e bate o pé no chão.
-Estou começando a me arrepender de não ter colocado um quilo de pimenta nessa torta!
Rio baixinho quando ela se vira para lavar a louça suja.
-De todas as pessoas lá naquela cidade dos infernos, Millie tinha que casar justamente com você? -Resmunga, como se eu não fosse capaz de ouvir muito bem.
-Sou filho do barão. Quer partido melhor? -Faço a brincadeira, mas nem eu mesmo acho engraçado e logo ocupo minha boca com mais da comida maravilhosa que ela me fez.
Sadie vira-se contra a pia e me analisa.
-Você esqueceu de dizer que a forçou a se casar com você. -Ela sorri cruzando os braços com deboche, mas assim como eu, logo percebe que a brincadeira não tem a menor graça e fica séria. -Desculpa.
Tento descontrair dando de ombros e paro de mastigar por um segundo.
-Tudo bem. Millie te contou tudo sobre nós dois, pelo visto.
Pela primeira vez vejo Sadie meio sem jeito enquanto concorda com a cabeça.
-Contou sim. Acho que me poupou dos detalhes, mas sei de quase tudo.
Também fico constrangido e assinto, sentindo o clima estranho e sério que nos ronda. A verdade é que eu não esperava que Millie guardasse segredo. Essa história também é dela, mas não posso mentir e dizer que me sinto confortável com outras pessoas sabendo de tudo o que aconteceu.
-Ela está se recuperando. Sei que está. -Digo, convencido a levar a esse assunto a ficar menos tenso.
Sadie concorda, mas me encara de um jeito esquisito que não entendo.
-Eu achei que você também estava. Naquele dia em que te conheci você parecia diferente, mas te olhando agora e depois de ver... Você estava tendo um pesadelo?
Fico parado olhando para ela por um longo tempo sem responder. Totalmente pego desprevenido, mas também sabendo que já é tarde para inventar alguma coisa.
-Sim. As vezes eu tenho.
-Ah. -É tudo o que Sadie diz e se vira para voltar a lavar a louça.
Ficamos em silêncio. Não me satisfaço com apenas um pedaço da torta e preciso comer pelo menos mais dois para ficar realmente satisfeito. Quando Sadie termina e vê a travessa comida quase pela metade se espanta e sorri cheia de si.
-Comeu bastante para alguém que nem estava gostando da minha comida, hein?
Acho graça desistindo da ideia de ser um chato e levanto, juntando meu prato, os talheres e tudo que sujei para lavar na pia.
-E ainda vai lavar a louça? Nossa realmente estou supresa. -Sadie brinca, dando com um pano de limpar a bancada em meu ombro.
-Eu sei fazer alguma coisa, sabia? Não faço é verdade, mas sei.
Ela balança a cabeça negativamente e irônica.
-Bem, já que já fiz minha obrigação acho que já posso ir embora.
Termino de lavar meu prato e a acompanho até a porta.
-Ei. -Chamo, bem antes dela sair. Fico meio sem jeito e passo os dedos entre os cabelos. -Eu acho que não fui muito sincero. Sua comida estava boa. Boa não, estava ótima, falei aquilo porque...
-Porque você gosta de ser chato e implicar comigo? Isso já deu para perceber. E quanta enrolação para me fazer um pedido de desculpas! -Completa ela rindo.
-Tudo bem. -Bufo fingindo impaciência. -Me desculpe e obrigado, Sadie.
Ela ergue as sobrancelhas e abre um sorriso vitorioso.
-Então você sabe meu nome barãozinho?
Faço expressão de tédio e mudo de assunto.
-Sei que andei enchendo seu saco, mas será que eu poderia pedir apenas mais um favor?
Ela junta as sobrancelhas de um jeito interessado e cruza os braços.
-Isso pode ser bom. Que favor você quer.
Respiro fundo e conto o pequeno plano que acabou de se formar na minha mente. Inicialmente Sadie fica um pouco surpresa e impressionada, mas no final das contas sorri e assente, concordando em me ajudar.
É uma corrida contra o tempo, então ela tem que sair um pouco apressada para comprar algumas coisas enquanto eu cuido de arrumar as coisas no apartamento.
Andei novamente pisando feio na bola e preciso mais do que qualquer outra coisa tentar resolver isso mais uma vez pois parece que é o que sempre faço. Merda atrás de merda e depois me vejo tentando limpar tudo.
Não demora muito e Sadie retorna com sacolas cheias do mercado e começa a me ajudar a preparar mais comida, dessa vez um jantar. É um exagero dizer que ajudo em alguma coisa pois no primeiro corte que faço errado na carne ela me dispensa da cozinha pedindo para eu ir me aprontar no quarto.
Visto mais uma das roupa que Jack pôs em minha mala, dessa vez escolho algo propositalmente mais arrumado. Calça social, tênis preto e camisa também social, mas cinza e fechada por botões.
Não que eu ache que a aparência irá me ajudar em alguma coisa, mas talvez assim Millie esqueça do que viu em mim quando cheguei aqui depois de ter passado um dia inteiro sem banho, ainda levando comigo o cheiro daquele galpão onde Matheo deve estar agora.
Quando penso no desgraçado, me sobe uma vontade muito grande de ligar para o Dr. Roberts e perguntar como andam as coisas, mas no último segundo me contenho.
Não posso pensar nisso agora.
-Terminei. Fiz fricassé de pato, que a Millie adora e tem uma garrafa de vinho no armário. O resto é com você, bonitão. -Sadie diz assim que saio do quarto, me olhando dos pés a cabeça aprovando o que vê.
-Certo. O cheiro está bom. Como posso te agradecer por isso?
Ela sorri divertida e nega com a cabeça enquanto retira o avental que usou para cozinhar.
-Não precisa agradecer. Faço pela Millie, já disse. -Se interrompe e muda de ideia. -Mas quer saber mesmo como me agradecer? Não estrague tudo de novo!
Sorrio sem jeito, mas assinto. Ela confere as horas no relógio do pulso e arregala os olhos.
-Ja vou para casa, Millie deve estar chegando a qualquer momento. -Ela para antes de sair e olha para mim ameaçadora. -Não estrague tudo!
-Ok, ok, já entendi! -Respondo achando graça, mas a verdade é que estou morrendo de medo por dentro.
Sadie sai logo em seguida e eu não consigo ficar sentado no sofá. Me sinto bem melhor do que antes, ter comido e dormido pelo menos aquelas horinhas me fizeram recarregar as energias, mas isso não quer dizer que esteja confiante ao que acho que estou tentando fazer.
Winnie fica me observando curiosa enquanto ando de um lado para o outro na pequena sala e parece se passar uma eternidade até que eu ouço o ruído de passos no lado oposto ao corredor.
Paro em seco e mais uma eternidade se passa até a porta se abrir e ela entrar. Sou consciente de que já a vi hoje mais cedo, mas estava tão fora de mim naquele momento que só agora parece que realmente estou aqui e estou vendo-a.
Millie congela na entrada, um pé ainda para o lado de fora e mantendo a mão na maçaneta como se tentasse decidir se é seguro entrar ou não. Está assustada esperando uma reação minha. Percebido isso pelo jeito estático, pela hesitação e por sua respiração que parece ter ficado suspensa de repente. Também está cansada. O semblante demonstra exatamente que teve um dia exaustivo. A mochila que ela segura com um ombro só parece pesada demais e a bata enorme que usa para trabalhar contém pequenas manchas de água, o que me faz pensar na quantidade de animaizinhos que ela deve ter ajudado a dar banho durante a tarde.
Não sei quanto tempo passa em que ficamos apenas nos olhando, mas ela faz o primeiro movimento ao voltar a respirar.
-Oi. Você está se sentindo melhor? -Pergunta temerosa, enquanto fecha a porta.
Sua preocupação me toca, tanto de um jeito bom quanto de um jeito ruim pois sei que ela passou a tarde inteira pensando nisso.
Quando não respondo ela de desfaz da mochila, colocando-a em cima do sofá com cuidado e retira a bandana estampada revelando os lindos fios curtos e claros de seu cabelo.
-Você fez comida? -Indaga de cenho franzido e farejando no ar com o nariz.
Limpo a garganta e tento parecer normal.
-Fiz. Quer dizer, pedi para Sadie fazer. É um jantar. -Indico a mesa que arrumei com os dois lugares e a toalha branca por cima do tampo de madeira.
Millie cruza os braços impressionada e inspeciona o apartamento, como se quisesse achar alguma coisa fora do lugar.
-Isso é estranho. Bem estranho. -Diz, arrastando os dedos por cima da toalha da mesa. -O que fez com Sadie para convencê-la a te ajudar?
Rompo a distância entre nós com cuidado e não me passa despercebido que ela me olha com atenção, talvez esperando que eu dê algum passo em falso, mas agora já estou bem o bastante para não ficar instável sobre as pernas.
-Ela só me ajudou. Eu pedi por favor, eu acho. Na verdade não me lembro. Posso perguntar isso para ela depois. -Paro a uma distância segura pois minha vontade é de agarra-la agora mesmo.
Millie assente e morde o cantinho da boca meio apreensiva de novo.
-Quero entender o que está acontecendo.
-Eu sei. -Engulo em seco e não resisto mais a me aproximar. Toco seu rosto e ela hesita, mas logo corresponde, me permitindo resvalar os dedos em sua pele macia. -Vou explicar quando estiver pronta para jantar.
-Porque você veio? -Millie insiste, tentando entender.
-Precisava de você. -Respondo de imediato pois essa é a única verdade.
Ela suspira cansada, mas se convence de que não vou dizer nada por enquanto.
Como não me aguento enfio a mão delicadamente por baixo de seu cabelo e lhe aproximo mais de mim. Queria apenas um abraço, mas isso se torna algo mais quando ela de bom grado passa os braços em torno do meu pescoço.
Toco seus lábios com os meus bem devagar. Rememorando o gosto e a sensação única de pertencer a esse beijo. Parece que não existe outra coisa pois tudo passa a ser tão irrelevante quando a sinto assim perto de mim. Ela é o meu eixo. O único momento em que me sinto verdadeiramente em paz.
Não acontece nada demais depois disso, pois Millie decide se afastar. Está corada e um pouco ofegante, mas novamente sinto uma hesitação vinda dela.
-Eu preciso de um banho. Estou com cheiro de cachorro molhado. -Sorri fraco.
-Não está. -Afirmo, mas me forço a me afastar. -Vou esperar aqui.
Millie assente e vai para o quarto sendo seguida por Winnie. Aproveito o momento em que ela está no banho para ajeitar o fricassé sobre a mesa, bem como o vinho que Sadie comprou.
Reconheço que ela saiu do quarto pelo cheiro gostoso de sabonete com um toque suave de jasmin que domina o ambiente muito mais que a comida, então viro-me, me deleitando com a visão maravilhosa que recebo.
Millie não se animou com a forma com a qual me vesti pois está usando apenas um pijama curtinho de seda azul. Eu sorrio, pois sua tentativa de não se arrumar foi completamente inutil, porque ela está tão linda que meu corpo inapropriadamente se anima e eu fico estasiado.
-Esta linda. -Elogio, de braços cruzados encostado no balcão alto da cozinha.
Ela olha para os pés protegidos por uma pantufa quentinha de plumas e dá de ombros.
-É o que eu uso depois que chego do trabalho. Comprei uns dez pares iguais a esse.
Quando ela anda para se sentar a mesa não resisto a tentação e aprecio a forma gostosa como as peças finas se grudam em seu corpo, especialmente na parte de cima. Nos seios empinadinhos, provavelmente nus embaixo da droga da seda.
Esse jantar vai ser mais difícil do que eu pensava.
Sirvo seu prato primeiro e ela observa tudo que eu faço com admiração e curiosidade. Acho que o clima está normal entre nós, até meio quente devido meus pensamentos pervertidos, mas tudo isso acaba quando me sento.
Millie nem olha para a comida. Põe os cotovelos sobre a mesa e indaga:
-Você vai me explicar agora?
Preciso respirar fundo antes de pensar em como começar. Ela não parece zangada, pelo menos não ainda e sei que isso mudará em pouco tempo.
-Fiz tudo o que você me pediu para fazer. -Começo logo me justificando e ela me escuta sem expressar nada. -Voltei a dormir em nosso quarto, até me consultei com aquele doutor que você me indicou, lembra?
Ela assente e fica desconfiada.
-Sim.... Você... Não gostou da consulta?
-Sim. Gostei. -Arrasto os dedos entre os cabelos. -Foi ótimo, quer dizer, foi melhor do que eu achei que seria.
Millie franze o cenho sem entender.
-E qual é o problema? Porque isso mudou de você estava indo tão bem?
Desvio o olhar e acho graça infeliz. Realmente eu também achava que estava tudo bem. Ledo engano.
-Recebi uma ligação terça feira a noite. Era o delegado. Ele tinha informações sobre Simon.
Não preciso olha-la. Sinto no ar o seu choque e o seu pavor.
-Acharam... Acharam ele? -Ela mal consegue respirar.
-Não. -Trato de explicar, mesmo sendo difícil. -Também achei que seria isso, mas não o encontraram. Pegaram Matheo.
Ela fica branca e se recosta na cadeira totalmente impactada.
-Matheo... como?
Sinto repulsa só em pensar no que o desgraçado fazia e nem quero repetir, mas sei que se não explicar, a outra parte da verdade se tornará muito mais difícil para ela compreender.
-Ele estava em um bordel. Acho que foi uma denuncia anônima e o delegado mandou uma equipe para fazer uma busca. Haviam garotas menores com ele. Era um esquema de prostituição, mas não conseguiram pegar mais ninguém, dois outros caras fugiram e a polícia, e eu também, acho que um deles pode ser Simon.
Millie fica sem expressão por um momento, mas logo seu rosto fica tomado pelo nojo e repulsa. Ela passa as mãos pelo rosto e pelo cabelo, mas como aconteceu comigo, não parece tão surpresa.
-Ele faz isso a muito tempo. Agenciou minha mãe quando ela... Trabalhava para ele. -Ela fecha os olhos para não pensar. -Mas garotas menores? Deus, isso é desumano!
Assinto em concordância, também em compaixão porque sei que esse assunto, principalmente se tratando de meninas menores, mexem com ela.
-As garotas foram resgatadas e a polícia está tentando fazer Matheo delatar os outros envolvidos. Temos certeza de que ele está escondendo algo e que Simon está no meio disso.
-E com "tentando fazer Matheo falar" você quer dizer que estão torturando ele? -Pergunta, mas sei que é uma retórica e que não preciso sequer responder.
-Você sabe como as coisas funcionam em Stoney Fork. -É apenas o que digo.
Vejo que ela fica dividida. Seu lado racional fazendo-a pensar no quanto isso parece cruel, mas também há um pouquinho do outro lado, onde ela sabe que isso não é mais do que ele realmente merece.
-Porque você acha que ele está encobrindo o Simon?
-Eis a questão. -Suspiro, exausto e puto só em ter que quebrar a cabeça para pensar nisso outra vez. -Mas é o que ele está fazendo. Sei disso. Matheo sempre foi leal ao meu pai, acho que essa lealdade agora passou para meu tio.
Sinto minha boca amarga em ter que admitir isso. Em ter que pensar que o bandido desgraçado esteve enfiado em minha própria casa a vida inteira e que meu pai sempre soube com que tipo de coisa ele era envolvido.
-Então... Com essa história toda foi impossível que você não se envolvesse não é? -Millie constata e se afasta um pouco da mesa.
Sei que agora é o momento em que vou decepciona-la outra vez. É comum que aconteça e sinto que de alguma forma, nós dois já sabemos o que vai acontecer.
-Eu não esperava que isso acontecesse. Quando aconteceu não pude não me envolver. Matheo sabe onde ele está.
Millie tenta entender, mas está em conflito. Não me olha mais e suas mãos tremem enquanto ela aperta os talheres.
-Me diga que você não machucou esse homem.
A pergunta me pega de surpresa e não deveria. Passo a mão pelo queixo pensando se existe uma forma menos pior de dizer a verdade, mas não há.
-Não. -Ela suspira aliviada, mas não me parece justo não continuar e eu continuo. -Mas foi por muito pouco. Eu quis fazer.
Ela não sabe o que dizer. Parece que minha resposta é pior do que se eu realmente admitisse que fiz alguma coisa. Millie levanta da cadeira, tento segui-la, mas ela me para esticando o braço entre nós.
-Eu... Preciso pensar. Me deixe sozinha.
Paro onde estou e não tenho outra escolha a não ser deixa-la ir se trancar dentro do quarto.
Mais uma vez como, sempre acontece, sinto o gosto amargo do remorso.
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